Quando a voz das ruas solapa a democracia: um breve ensaio sobre o populismo penal midiático6/29/2018
Com muita alegria recebi o convite dos amigos do Sala de Aula Criminal para colaborar com algumas reflexões sobre as ciências criminais e assim tentar travar um debate para que possamos avançar, ou quem sabe aclarar, algumas ideias que insistem em ficar em um campo nebuloso do Direito. Para isto, me propus a colaborar quinzenalmente neste espaço trazendo algumas questões que têm me angustiado e por conseguinte inquietado.
Pois bem, passado o primeiro momento de apresentações e de dizer ao que me proponho neste espaço, passemos então à reflexão desta primeira semana. Gostaria então de refletir um pouco sobre a questão do populismo penal midiático. Como propus no título deste ensaio, gostaria de começar fazendo uma provocação em quem por ventura venha a ler meus devaneios: um Poder Judiciário que ouve a voz das ruas faz bem para a democracia? Antes de começar a responder esta pergunta, gostaria de falar do caso Aaron Persky. Aaron Persky é um juiz estado-unidense que judica(va) no estado da California, mais precisamente no Condado de Santa Clara. Em 2016 o juiz Persky condenou o nadador Brock Tuner, da festejada Universidade de Stanford, à uma pena de seis meses pelo cometimento do crime de estupro sob o fundamento de que um maior tempo de encarceramento teria um grave impacto na vida do réu[1]. Ato contínuo à sentença, começou então uma campanha contra Persky pedindo o seu recall, instituto permitido no Estado da Califórnia, onde após eleições o povo decide se um juiz deve ou não continuar no cargo[2], e que por fim levou na última semana o afastamento do juiz de suas funções em uma votação onde 59% da população foi a favor da deposição contra 41%[3], fato que não ocorria desde 1932. Pois bem, superado o primeiro momento que era apresentar um caso concreto que me fez refletir a questão aqui posta, passemos então a analisar mais precisamente o que propus no título que é o populismo penal midiático, mas acho até que podemos ir mais além e não restringir, podemos ao invés de fazer somente um recorte ao populismo penal, falar afinal sobre um populismo judicial midiático, eis que não importa a área onde tal populismo se operacionaliza, ele ao fim sempre será praticado pelo judiciário em prol dos anseios populares e/ou empresários morais afim de atender portanto as expectativas sociais em um determinado caso concreto. Penso ser por bem, deixar de maneira clara e explícita que o objetivo deste texto não é discutir se o juiz Persky acertou ou não nos fundamentos de sua sentença, mas sim, se podemos simplesmente substituir os juízes a partir de sentenças que frustrem as expectativas sociais. Superado portanto o que pode se denominar como a parte introdutória deste ensaio, passemos aos fundamentos que constituem à nossa crítica ao caso do juiz Persky. Em síntese o que temos é um juiz que fora destituído do seu cargo pelo simples fato de proferir uma decisão que frustrou as expectativas sociais, isto tudo na terra que se diz a mais democrática do mundo. Cabe aqui destacar que no estado da Califórnia os juízes são escolhidos através de eleição pelo povo do condado onde exercerá a sua judicatura, o que já nos faz lembrar os ensinamentos do saudoso professor Ronald Dworkin[4], que em sua obra uma questão de princípio já nos adverte no sentido de
Da afirmação de Dworkin podemos extrair que: quem julga jamais pode sentir-se em dívida com a comunidade; e quem julga jamais pode extrapolar os limites que lhe é dado pela lei. Ilustrando o caso Persky, podemos extrair que algo encontra-se muito errado no sistema de justiça norte-americano, pois temos um dado concreto de um juiz que fora afastado de sua função jurisdicional por decidir contra os anseios da população. Certamente o leitor que chegou até aqui deve se perguntar agora: mas o que isto tem a ver com o Brasil? Pode se afirmar que tudo !! Com o início do século XXI e o boomda internet no Brasil, passou a se experimentar diversas formas de publicizar a atividade jurisdicional, com isto nosso país criou de maneira pioneira a tv justiça, que passou a transmitir ao vivo as sessões do plenário do Supremo Tribunal Federal e a partir daí, juntamente com o que temos defendido como marco temporal de criminalização da política[5], temos percebido uma crescente escalada de argumentos puramente pautados em critérios subjetivos e morais e sobretudo em argumentos que utilizam sempre o clamor social como fundamento das decisões judiciais, que culminam certamente no ativismo judicial. Lenio Streck de há muito vem denunciando e combatendo o ativismo judicial. Para se ter uma base compreensiva do que é trabalhado por Streck, temos que ir a um conceito fundamental trazido pelo professor, que é o de solipsismo, que pode ser entendido como sendo[6]
Logo, a partir de Streck e passando por Dworkin e alinhando até o momento os dois conceitos aqui trazidos ao caso Persky, podemos perceber que existe um grande dilema que é o fato de um juiz ficar pressionado para decidir de acordo com os anseios populares, tanto é assim que a nossa própria Constituição em seu art. 95, II garante à magistratura a inamovibilidade do cargo, justamente para garantir a imparcialidade dos juízes para decidirem. Certamente Lenio Streck é quem mais trabalha na temática da decisão judicial e suas consequências para o Direito brasileiro, e a através de suas lições é que aprendemos que a partir do segundo pós-guerra o Direito passa a ter um caráter autônomo que jamais havia tido até então, trazendo como consequência desta autonomia um caráter normativo para a Constituição. A partir do solipsismo como conceito básico trazido por Streck, aliado aos fenômenos como tv justiça e a própria criminologia midiática que desaguou numa crescente escalada da criminalização da atividade política, podemos perceber que a partir dos primeiros anos do século XXI temos experimentado uma escalada no que é chamado de ativismo judicial que é definido também por Streck como[7]
O ponto trazido por nós é que justamente este ativismo tem se acentuado exponencialmente porque o judiciário tem deixado de ouvir a voz do Direito para ouvir a voz das ruas, atendendo tão somente aos desejos e anseios sociais, fazendo com que por vezes se perca todo o viés democrático que tem que ser observado na prestação jurisdicional para simplesmente satisfazer o gozo da plateia que urra em ver jorrar mais sangue de um pretenso algoz. Interessante reflexão sobre o processo que atende aos anseios sociais nos é trazida pelo professor português Rui Cunha Martins[8]quando afirma que
Portanto e já começando a caminhar para a conclusão, podemos perceber que processos que atendem a pautas de expectativas sociais são completamente prejudiciais à saúde de qualquer democracia, sobretudo a nossa que é uma democracia tão jovem que está prestes a completar trinta anos. Podemos perceber que nas últimas duas décadas está havendo um crescimento exponencial de decisões que usam como fundamento o clamor social e a voz das ruas como fundamento principal para se cometer todo o tipo de arbítrio e barbaridade em nome sempre das “boas intenções”, afinal depois de Sartre, o inferno sempre será o outro. Em nome do clamor social temos visto o número de prisões preventivas crescerem exponencialmente ainda que na última década tenha sido promulgada a lei 12.403/11 e mais recentemente implementadas as audiências de custódia, em nome das expectativas sociais temos visto processos midiáticos que mais lembram as cruzadas contra determinados grupos de pensamento divergente do senso comum, em nome da voz das ruas o nosso Supremo Tribunal Federal rasgou a Constituição passando a permitir prisões após decisão de segunda instância (HC 126.292/SP). O caso Aaron Persky como provocação à este ensaio é justamente para nos fazer refletir: queremos um judiciário sério e democrático ou que jogue para os torcedores como bem ensinado por Lenio Streck?[9]Será que podemos simplesmente destituir os juízes por decidirem de maneira que não nos agrade? Imaginemos pois se aqui no Brasil a moda Persky pegasse, não haveria mais tribunais. A prestação jurisdicional se pauta justamente pelo seu caráter antagônico aos anseios sociais, como aprendemos com Streck, o Direito é um remédio contra maiorias, a função de julgar por vezes será dizer não ainda que o mundo inteiro grite sim, e da mesma forma que as expectativas sociais não podem determinar como será uma decisão judicial, elas também não podem ser usadas como mecanismo para afastar juízes por não decidirem conforme a pauta do povo, juízes não são políticos e muito menos podem fazer políticos. Como tentaremos demonstrar nos próximos ensaios, os juízes devem decidir tão somente por princípios e deixar de lado todo e qualquer juízo moral e/ou político sobre determinada matéria. Ao fim, algumas pessoas devem se perguntar mais uma vez: mas o que um caso dos Estados Unidos tem a ver com o que vivemos no Brasil, sobretudo quando aqui temos um dispositivo na Constituição que protege os magistrados? Certamente em algum momento já fomos confrontados sobre a possibilidade de o sistema de justiça norte-americano ser melhor que o brasileiro. Em outros tempos a barganha, a justiça negocial eram vistas como coisas quase utópicas de serem feitas no direito brasileiro e hoje o processo penal caminha a passos largos para esta modalidade sistêmica, para tanto é só observamos o crescimento de delações premiadas que vêm sendo feitas nos processos da operação lava-jato e todas as outras que surgiram a partir daí. Como Lenio Streck já advertiu[10]: o canibalismo jurídico ainda vai gerar uma constituinte, e caso isto aconteça hoje sabe-se lá se não inventam uma forma de controlar os juízes e criam um mecanismo para caça-los? Não que os juízes estejam uma maravilha e decidindo como manda a Constituição mas a solução apresentada recentemente na Califórnia só demonstra com a pós-modernidade vem criando espaços de irracionalidade que nos remete à tempos primitivos onde pessoas tentavam cortar as cabeças das outras. Pensamos que a única reforma possível do judiciário é a de criação de uma teoria da decisão a partir dos critérios estabelecidos pela crítica hermenêutica do Direito, fora disso, continuaremos caminhando para a barbárie. Talvez seja a hora de irmos em Nelson Rodrigues e refletirmos quando ele afirma que toda a unanimidade é burra, afinal como é sempre salutar lembrar de Agostinho Ramalho: quem nos salvará da bondade dos bons? Em nome desta bondade Ingo Müller vai demonstrar que o judiciário alemão legitimou Hitler quando deveria tê-lo expulsado, o fim da história todos sabemos: milhões de judeus mortos e uma guerra sangrenta que vitimou ainda outros milhões de pessoas. O que procuramos defender aqui é a necessidade de se resolver problemas democráticos com mais democracia, somente assim poderemos evitar ainda mais novos dias de barbárie. Jefferson de Carvalho Gomes Advogado Mestre em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis Especialista em Criminologia, Direito e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes Professor e Coordenador Adjunto da Pós-Graduação em Processo Penal e Garantias Fundamentais da ABDConst-Rio Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura (RDL) [1]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/06/1780947-estudantes-de-stanford-protestam-contra-pena-branda-para-estuprador.shtmlAcesso em: 11 de junho de 2018. [2]Para tanto conferir portal criado para divulgar a campanha de recall contra o juiz Persky: https://www.recallaaronpersky.com/Acesso em 11 de junho de 2018. [3]https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/06/juiz-e-deposto-na-california-por-dar-sentenca-leve-a-nadador-por-crime-sexual.shtmlAcesso em 11 de junho de 2018. [4]DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes Ed., 2015, p.17. [5]Recentemente, em nossa dissertação de mestrado, foi defendido que a partir da chegada do ex-presidente Lula e sua plataforma política ao poder, passou-se a criar uma criminalização da atividade política, usando como base de sustentação o conceito de empresários morais trabalhado por Pierre Bourdieu em "O Poder Simbólico", bem como a criminologia midiática de Zaffaroni, Nilo Batista e também do professor capixaba Raphael Boldt. [6]STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito. 2017. p. 273. [7]STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva. 2014, p. 589. [8]MARTINS, Rui Cunha. https://www.conjur.com.br/2014-mar-02/entrevista-rui-cunha-martins-professor-pesquisador-universidade-coimbra [9]STRECK, Lenio Luiz. https://www.conjur.com.br/2018-jan-22/streck-paradoxo-munchhausen-lula-mpf-ganha-moro-perde [10]STRECK, Lenio Luiz. https://www.conjur.com.br/2016-jun-09/senso-incomum-cuidado-canibalismo-juridico-ainda-gerar-constituinte Comments are closed.
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