Artigo do colunista Iuri Victor Romero Machado no sala de aula criminal, vale a leitura! "A imparcialidade do julgador não é uma escolha política, mas uma imposição constitucional e convencional. Está prevista no artigo 5º, inciso XXXVII, da Constituição Federal, que veda tribunais de exceção, e é reforçada pelo artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual toda pessoa tem direito “a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei”. A Corte Interamericana, em reiterada jurisprudência, consolidou que não basta que o juiz seja imparcial, é necessário também que pareça imparcial". Por Iuri Victor Romero Machado O princípio da imparcialidade judicial constitui um dos pilares do devido processo legal. É o que garante que o Estado não se converta em inimigo do réu, mas atue sob os freios institucionais do contraditório e da ampla defesa. No entanto, é precisamente esse pilar que vem sendo relativizado — não apenas por setores abertamente punitivistas, mas também por vozes que se reivindicam garantistas.
O mais recente e emblemático exemplo dessa contradição está no artigo “Uma justiça em que os réus escolhem os (seus) juízes?”, de Lenio Streck e Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay), publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 29 de junho de 2025. Em defesa da atuação do Supremo Tribunal Federal nos julgamentos decorrentes dos atos do 8 de janeiro, os autores afirmam que “o próprio STF já disse que réu não escolhe seu juiz. Seria a negação da justiça. Seria o fracasso do sistema judicial. Seria algo como o rabo abanar o cachorro.” A ironia caricata da expressão não esconde o abandono de princípios antes inegociáveis, como o reconhecimento de que “o juiz que é parte não pode julgar” — algo que os próprios autores, em momentos anteriores, defenderam. Em artigo anterior, publicado no JOTA, em janeiro de 2022, Streck e André Karam Trindade advertiam que “o grande desafio continua sendo desconstruir o mito moderno de que o juiz busca a verdade real” e reiteravam que a imparcialidade do julgador é “um direito fundamental de todo cidadão”. Esse artigo não pretende defender réus. Pretende, sim, defender princípios. Afinal, se o garantismo é um compromisso com a forma, não pode ser moldado conforme a ocasião. Por não se tratar de mera retórica, pertinente perguntar: “O que é o garantismo senão a exigência da legalidade para todos?” O que está em disputa, portanto, não é apenas uma posição ideológica, mas a própria coerência entre teoria e prática no discurso jurídico brasileiro. A imparcialidade do julgador não é uma escolha política, mas uma imposição constitucional e convencional. Está prevista no artigo 5º, inciso XXXVII, da Constituição Federal, que veda tribunais de exceção, e é reforçada pelo artigo 8.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual toda pessoa tem direito “a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei”. A Corte Interamericana, em reiterada jurisprudência, consolidou que não basta que o juiz seja imparcial, é necessário também que pareça imparcial. Nesse ponto, o contraste entre os dois artigos de Lenio Streck é revelador. Em “A garantia da imparcialidade como direito fundamental”, escrito com André Karam em janeiro de 2022, os autores sustentavam que “o juiz não pode tudo, nem mesmo para ‘combater a corrupção’ – que tampouco é sua tarefa!”. Denunciavam a atuação inquisitorial, invocando a necessidade de afastamento do juiz que extrapola suas funções, e defendiam a objetividade dos critérios de suspeição. Afirmavam, ainda, que “a verdade real não ultrapassa o plano da ficção. Ela é uma verdade inalcançável, ontológica, essencialista.” Contudo, no artigo publicado em 29 de junho de 2025, Streck e Kakay se afastam dessa coerência teórica, relativizando o princípio da imparcialidade quando afirmam que “a própria tese [da parcialidade de Moraes] é desmentida pelos próprios réus” e que, se eles não reconhecem o crime, não haveria vítima e, por consequência, não haveria suspeição. Essa “lógica” é perigosa por duas razões: primeiro, porque transfere o parâmetro da imparcialidade do juiz para a narrativa dos réus (para reconhecimento dos fatos), o que é inadmissível; segundo, porque instrumentaliza a jurisdição conforme o tipo de acusado, o que viola frontalmente o princípio da isonomia. O argumento de que “réu não escolhe juiz” ignora que não se trata de escolha, mas de recusa fundamentada diante da ausência de imparcialidade aparente. Como discuti em análise sobre o caso Hauschildt vs. Dinamarca, a Corte Europeia de Direitos Humanos adota uma leitura substancial do princípio da imparcialidade, segundo a qual qualquer juiz que suscite uma dúvida legítima quanto à sua neutralidade deve se afastar da causa, posição que é adotada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. A legitimidade dessa dúvida, inclusive, não precisa ser comprovada de forma objetiva, bastando a percepção razoável de um observador externo sobre a parcialidade, o que reforça a centralidade da confiança pública na administração da Justiça (MACHADO, 2020). A decisão de Moraes de permanecer na relatoria dos casos do 8 de janeiro, mesmo sendo apontado diretamente como vítima em diversas denúncias e tendo aparecido como sujeito de depoimentos acusatórios, rompe com o standard mínimo de imparcialidade objetiva e subjetiva. Ao ignorar esse aspecto, Streck e Kakay normalizam a fusão entre o papel de vítima, juiz e parte interessada. Como aponta Luiza Oliver, o modelo de Justiça em que o juiz atua como vítima, instrutor e julgador da causa compromete de forma estrutural a imparcialidade exigida no devido processo legal. A autora traça um paralelo entre os casos de Sergio Moro e Alexandre de Moraes, destacando que, quando as regras mudam conforme o réu, a legitimidade do sistema de justiça entra em colapso. Se a imparcialidade era um princípio inegociável quando o acusado era Lula, por que deveria ser relativizada quando os réus são bolsonaristas? O garantismo não é -nem pode se transformar em- uma estética do discurso ou em um simulacro moral que só se aplica aos réus por quem temos apreço. Quando Streck e Kakay escrevem que “a Justiça penal é para Lula e para Bolsonaro”, ignoram que a crítica não é sobre o mérito dos réus, mas sobre a forma pela qual são julgados. É precisamente nesse ponto que a defesa dos princípios revela sua força. O juiz pode até ser severo, pode ter opiniões duras, mas não pode ser vítima e julgador ao mesmo tempo. O fato de Moraes ter tido o nome pichado, ameaçado ou citado pelos réus não o transforma automaticamente em parte, mas a presença de ataques pessoais e o destaque de sua figura como alvo central dos atos de 8 de janeiro devem, sim, suscitar a dúvida razoável quanto à imparcialidade — o que, por si só, já seria fundamento bastante para seu afastamento da causa. A história da jurisdição penal está repleta de exemplos em que a confusão entre os papéis do juiz e da parte corroeu os fundamentos do devido processo legal. Quando o julgador se vê envolvido emocional, política ou simbolicamente com os fatos apurados, o risco de desequilíbrio deixa de ser abstrato. Admitir, sob o pretexto de gravidade institucional ou ameaça à democracia, que a imparcialidade pode ser relativizada, é abrir mão do próprio regime democrático que se pretende proteger. Nenhuma ordem constitucional se sustenta na suspensão de seus próprios pilares — e a imparcialidade judicial é um deles. A erosão desse princípio não começa com decisões arbitrárias, mas com concessões retóricas. É por isso que o artigo de Streck e Kakay soa menos como uma defesa do Estado de Direito e mais como uma autorização disfarçada para que ele seja contornado. Quando juristas antes defensores da imparcialidade passam a relativizá-la em nome de uma justiça de ocasião, o que se perde não é apenas a autoridade do argumento, mas a própria credibilidade do Direito como prática institucional. E, nesse sentido, a lembrança de Luiza Oliver é precisa: de Moro a Moraes, a lição é a mesma — não há Justiça possível quando as regras mudam conforme o réu. Defender a imparcialidade do julgador, sobretudo em tempos sombrios, não é defender Bolsonaro ou de qualquer outro acusado. É a defesa de um sistema de justiça que, ao invés de refletir os impulsos da sociedade punitiva ou os temores da instabilidade política, seja capaz de se manter fiel às suas garantias fundamentais. Quando o garantismo esquece a imparcialidade, esquece também o seu próprio nome. Iuri Victor Romero Machado Advogado criminalista. Especialista em Direito Penal e Processual Penal; especialista em Direitos Humanos. Membro Relator da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/PR. Instagram: @prof.iurimachado Referências Bibliográficas: CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso De Cubber v. Bélgica (Appl. no. 9186/80), julgamento de 26 out. 1984. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int. CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Hauschildt v. Dinamarca (Appl. no. 10486/83), julgamento de 24 maio 1989. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int. MACHADO, Iuri Victor Romero. Quem acusa pode julgar? Sala de Aula Criminal, 2024. Disponível em: https://saladeaulacriminal.com. Acesso em: 27 set. 2025. MACHADO, Iuri Victor Romero. Quem investiga pode julgar? O Supremo Tribunal Federal e o caso De Cubber contra Bélgica. Sala de Aula Criminal, 2024. Disponível em: https://saladeaulacriminal.com. Acesso em: 27 set. 2025. MACHADO, Iuri Victor Romero. Sérgio Moro, juiz parcial: uma análise à luz do caso Hauschildt contra Dinamarca. Sala de Aula Criminal, 2024. Disponível em: https://saladeaulacriminal.com. Acesso em: 27 set. 2025. OLIVER, Luiza. O risco da Justiça que escolhe seus réus. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 jun. 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br. Acesso em: 27 set. 2025. STRECK, Lenio Luiz; KARAM TRINDADE, André. A garantia da imparcialidade como direito fundamental. JOTA, 26 jan. 2022. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/garantia-imparcialidade-direito-fundamental-26012022. Acesso em: 29 jun. 2025. STRECK, Lenio Luiz; ALMEIDA CASTRO, Antônio Carlos de (KAKAY). Uma justiça em que os réus escolhem os (seus) juízes? O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 jun. 2025.
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