De início, necessário registrar que as considerações trazidas a seguir pretendem apontar possível limite aos poderes do Ministério Público, notadamente em tempos atuais, em que qualquer crítica ao órgão é indicada como heresia e sujeita a pena de infâmia. Por óbvio, não se desconhecem as inúmeras prerrogativas do órgão acusador, muitas equiparadas à magistratura, mas que certamente não permitem a contemplação de poderes absolutos, inadmissível para qualquer outra instituição da República[1]. A previsão do sigilo fiscal e financeiro pode ser compreendida à luz do disposto no art. 198 do Código Tribunal Nacional, Lei Complementar 105/2001 e art. 5º, X e XII, da Constituição Federal, que somente poderá ceder em hipóteses excepcionais e mediante ordem judicial devidamente fundamentada[2]. É cediço que parcela da doutrina sustenta, com base no disposto na Lei nº 8.625/93 e na Lei Complementar nº 75/93, que os membros do Parquet gozariam, inclusive, da prerrogativa de quebrar sigilo fiscal dos indivíduos submetidos à persecução penal independentemente de autorização judicial, ou seja, “foi deferido a requisição de informações e documentos a autoridades e entidades privadas, mesmo nas hipóteses de sigilo, consoante se vê dos parágrafos 1º e 2º do art. 8º”[3]. Vale salientar que não se desconhece a possibilidade de órgãos da administração fazendária comunicarem, mediante representação fiscal para fins penais (cf. art. 83, Lei 9430/96; art. 198, §3º, inc. I, CTN), ao Ministério Público acerca da identificação de crime no bojo de procedimento administrativo fiscal. De qualquer forma, ainda que haja tal possibilidade, necessário discutir o conteúdo ou os documentos que podem acompanhar aludida representação, pois tal conclusão interfere nos limites do sigilo fiscal imposto aos órgãos de persecução penal. Nesse contexto, interessante assinalar que o Superior Tribunal de Justiça, analisando impugnação da defesa em procedimento criminal, desproveu recurso ordinário em habeas corpus, no qual se pretendia garantir o acesso aos documentos que integravam procedimento administrativo fiscal que tramitou perante a Receita Federal do Brasil. Na ocasião, a Corte Cidadã fundamentou a negativa de acesso, com base na seguinte argumentação: “A íntegra do procedimento administrativo fiscal não constitui peça obrigatória para o oferecimento da denúncia nos crimes de apropriação indébita previdenciária, que pode se embasar em quaisquer documentos que comprovem a constituição definitiva do débito. Inteligência dos artigos 1º e 2º do Decreto 2.730/1998 e da Portaria 2.439/2010”[4]. Como corolário da interpretação acima conferida, tem-se que o Ministério Público não poderá ter acesso direto aos dados e documentos eventualmente obtidos pela Receita Federal e/ou Estadual na apuração de possíveis ilícitos tributários, sem prévia e fundamentada ordem judicial, isto porque, tratando-se de informação cujo compartilhamento obrigatório não encontra respaldo legal, por óbvio, torna-se necessária a intervenção do Poder Judiciário, mediante decisão fundamentada, nos exatos termos do art. 93, inc. IX, CF. A conclusão acima exposta é deveras importante, na medida em que, no início do ano de 2016, ao julgar o RE 601.314/SP, o Supremo Tribunal Federal afirmou a constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar 105/2001, admitindo a viabilidade do acesso pela Administração Tributária[5] aos dados bancários dos cidadãos independentemente de ordem judicial, nada mencionando, porém, quanto à extensão de idêntica faculdade aos membros do Ministério Público[6], que ao menos pela interpretação conjunta do ordenamento jurídico persistem dependendo de autorização judicial. O Superior Tribunal de Justiça já havia se manifestado pela viabilidade de troca de informações entre as instituições financeiras e a autoridade fiscal para a constituição de crédito tributário, contudo, aludida autorização não permitia a utilização dos dados para a deflagração da persecução penal, excetuada a hipótese de fornecimento voluntário dos dados fiscais e financeiros pelo sujeito passivo da obrigação tributária[7]. Noutras palavras, “tanto as instituições financeiras quanto a Administração Pública Direta ou Indireta não estão autorizadas a fornecer dados financeiros e/ou fiscais que detenham em razão do exercício de suas atividades e funções, salvo, conforme autorização do art. 5º, XII, da CF, mediante autorização judicial devidamente motivada.”[8] Segundo a doutrina, tratando do sigilo bancário, mas com reflexos similares em relação ao sigilo fiscal, “no âmbito do inquérito civil (ou da própria ação civil de improbidade administrativa), a quebra do sigilo bancário – que deverá incidir sobre fato determinado (e não meros indícios) – deverá ser obtida judicialmente”[9], e mais, conforme lição do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes e do Procurador da República, Paulo Gustavo Gonet Branco, “a evidência obtida a partir de quebra irregular do sigilo é considera prova ilícita.”[10] Em síntese, não é possível a utilização pelo Parquet de elementos probatórios resguardados por sigilo fiscal sem a intervenção do Poder Judiciário, pouco importando tratar-se de pessoa física ou jurídica, uma vez que a proteção decorre de cláusula constitucional[11]. A questão central reside no fato de que a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a LC 105/2001 apenas transferiu as informações bancárias ao Fisco, nada mencionando quanto à possibilidade de acesso diretamente pelo Ministério Público, o qual ainda permanece adstrito ao sigilo bancário e fiscal da Constituição Federal, com o afastamento em casos excepcionais diante da reserva de jurisdição. Entender de forma diversa, como proposto pelo Ministério Público Federal[12], isto é, de que haveria uma transferência das informações financeiras da instituição financeira para o Fisco e, em seguida, nova transferência ao Parquet, compreendendo agora o sigilo fiscal e bancário, tudo isso à revelia do Poder Judiciário, significa exercer verdadeira ginástica hermenêutica, pois além de contrário à lei, tal ponto não foi enfrentado pelo paradigma da Suprema Corte. Diante disso, nos termos do que preceitua o art. 5º, LVI, da Constituição Federal, permanece hígida a impossibilidade de utilização dos documentos fiscais e/ou bancários obtidos diretamente pelo Ministério Público, pois obtidos em descompasso à legislação de regência, o que acarreta naturalmente a sua ilicitude, exigindo-se a intervenção do Poder Judiciário para o fim de desentranhar os elementos de prova maculados. Luiz Antonio Borri Professor de Direto Penal da FACNOPAR. Advogado Rafael Junior Soares Professor de Direito Penal da PUC/PR - Londrina [1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Ministério Público pode muito, mas não tem poder absoluto. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2016-mai-17/cezar-bitencourt-mp-nao-poder-absoluto>. Acesso em: 26 de julho de 2016. [2] HC 160.646/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 01/09/2011, DJe 19/09/2011; os membros do Parquet gozariam da prerrogativa de quebrar sigilo, inclusive, fiscal dos indivíduos submetidos à persecução penal independentemente de autorização judicial. [3] LIMA, Marcellus Polastri. Ministério Público e Persecução Criminal. 3ª ed. Salvador: JusPODIVM, 2016, p. 140. [4] RHC 51.729/SP, Rel. Ministro LEOPOLDO DE ARRUDA RAPOSO (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/PE), QUINTA TURMA, julgado em 23/06/2015, DJe 24/09/2015. [5] “Esclareceu que a quebra de sigilo bancário sem autorização judicial, visando à Administração Tributária, não padeceria de nenhuma ilegalidade (...) Na verdade, o tema ora em debate não seria quebra de sigilo, mas transferência de sigilo para finalidades de natureza eminentemente fiscal.”(Informativo 815 - RE 601314/SP, rel. Min. Edson Fachin, 24.2.2016). Sobre a inconstitucionalidade do dispositivo supratranscrito e fundamentando no sentido de exigir-se a reserva de jurisdição mesmo para o acesso de dados bancários pela Administração Pública, cf. SCAFF, Fernando Facury. Sigilo fiscal e reserva de jurisdição. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 71, p.60-71, ago. 2001. [6] Já existem posicionamentos neste sentido: “Por fim, no que diz com a nulidade das provas encaminhadas diretamente pela Receita Federal ao Ministério Público sem que houvesse autorização judicial, já decidiu o Supremo Tribunal Federal, em sede de Repercussão Geral no RE 601.314/SP, que 'O art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal”. TRF4, HC 5026740-96.2016.4.04.0000/PR, Rel. Cláudia Cristina Cristofani, j. 05/07/16. [7] RHC 66.520-RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 2/2/2016, DJe 15/2/2016. [8] RHC 34.799-PA, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 17/3/2016, DJe 20/4/2016. [9] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Comentários à Lei de Improbidade Administrativa – Lei 8.429, de 02 de junho de 1992. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 247. [10] Curso de Direito Constitucional. 8ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 289. [11] AgRg no REsp 1348076/PR, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 03/12/2015, DJe 10/12/2015. [12] Veja o seguinte excerto do parecer do MPF: “Da mesma forma que as autoridades fiscais, o Ministério Público Federal tem o dever de zelar pelo sigilo das informações e dados que lhe são repassados. Vale dizer; não há afastamento ou quebra de registro de dados bancários, mas sim transferência de tal sigilo da autoridade fiscal ao Ministério Público Federal”. TRF4, HC 5026740-96.2016.4.04.0000/PR, Rel. Cláudia Cristina Cristofani, j. 05/07/16. Comments are closed.
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