O artigo de hoje do Colunista Iuri Machado, traz casos concretos para discussão sobre a imparcialidade no processo penal. Vale a leitura! ''O julgador não pode ter nenhuma espécie de interesse na causa que é provocado a resolver, não pode procurar um interesse pré-judicial. Apesar de a Constituição Federal não fazer expressa referência ao princípio da imparcialidade, ela pode ser extraída das diversas garantias que existe para resguardá-la ''. Por Iuri Machado 1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL AI 706078 QO, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 10/03/2009, DJe-200 DIVULG 22-10-2009 PUBLIC 23-10-2009 EMENT VOL-02379-14 PP-02850 Ementa do julgado: E M E N T A: MINISTRO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA QUE VEM A JULGAR RECURSO INTERPOSTO PELO RÉU CONDENADO EM PROCESSO NO QUAL ESSE MESMO MAGISTRADO ATUOU, EM MOMENTO ANTERIOR, COMO MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO - INADMISSIBILIDADE - HIPÓTESE DE IMPEDIMENTO (CPP, ART. 252, II) - CAUSA DE NULIDADE ABSOLUTA DO JULGAMENTO - NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DESSE MESMO JULGAMENTO, SEM A PARTICIPAÇÃO DO MINISTRO IMPEDIDO - QUESTÃO DE ORDEM QUE SE RESOLVE PELA CONCESSÃO, DE OFÍCIO, DE "HABEAS CORPUS" EM FAVOR DO ORA AGRAVANTE. 2 O CASO F.M.I. foi condenado pelo órgão especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro pela prática do crime de corrupção ativa. Interpôs recurso especial em face da decisão. Após julgamento de recurso no Superior Tribunal de Justiça (doravante, STJ), interpôs recurso extraordinário, o qual teve seguimento negado. Após, interpôs agravo de instrumento contra decisão proferida pelo Vice-Presidente do STJ, o qual, também, teve seu seguimento negado. Ante tal decisão, interpôs agravo regimental, o qual foi distribuído à 6ª Turma do STJ que desproveu o recurso. Contra a decisão proferida no agravo regimental, foi interposto novo recurso extraordinário, desta feita, arguindo violação ao art. 5º, incs. LIII e LIV, da Constituição Federal, apontando que o Ministro Hamilton Carvalhido, que participou do julgamento do agravo regimental, teria atuado como Procurador-Geral de Justiça na ação penal que resultou na condenação de F.M.I no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O Supremo Tribunal Federal (doravante, STF) negou seguimento ao recurso extraordinário, no que foi interposto agravo de instrumento, pleiteando seguimento ao recurso com a anulação do acórdão ou a concessão de ordem de habeas corpus de ofício. O STF negou seguimento ao recurso, mas ante a nulidade absoluta apontada, concedeu ordem de habeas corpus de ofício. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO O relator do recurso no STF, Ministro Celso de Mello, destacou que, quando do julgamento do agravo regimental, a 6ª Turma do STJ estava composta por três Ministros, sendo destacado que sem a presença do Ministro Hamilton sequer haveria quórum para julgamento, razão pela qual seu voto “foi decisivo”. Após, o Ministro afirmou que a legislação processual proíbe que o juiz julgue a causa nos processos em que atou como membro do Ministério Público, por ser causa configuradora de impedimento, “cuja transgressão provoca a nulidade”. Consignou-se que o STF já possuía julgados acerca da temática, citando o HC 88.227/RJ e HC 94.641/BA. Assim, concedeu a ordem de habeas corpus de ofício, para anular o julgamento e determinar a realização de outro sem a participação do Ministro Hamilton Carvalhido. 4 PROBLEMATIZAÇÃO O Código de Processo Penal prevê hipóteses de impedimento, incompatibilidade e suspeição do juiz, nos artigos 252, 253 e 254. As hipóteses elencadas visam resguardar a imparcialidade do julgador. A imparcialidade é tida como o princípio mais importante do processo penal, na medida que sem imparcialidade o processo se torna um mero simulacro, i.e., desde o início do jogo processual, o juiz não medirá esforços para que a hipótese fática que “torce” seja a “vencedora”. Consoante leciona Badaró, “a palavra juiz não se compreende sem o qualificativo de imparcial” (BADARÓ, 2014). Em sentido similar ao que defende, leciona Jardim que: “os princípios mais importantes para o processo penal moderno são o da imparcialidade do Juiz e do contraditório” (JARDIM, 2016). O julgador não pode ter nenhuma espécie de interesse na causa que é provocado a resolver, não pode procurar um interesse pré-judicial. Apesar de a Constituição Federal não fazer expressa referência ao princípio da imparcialidade, ela pode ser extraída das diversas garantias que existe para resguardá-la (como, por exemplo, proibição de tribunal de exceção e juiz competente), ainda, ela está expressamente prevista nos tratados de direito internacional. Ocorre que para proteger a imparcialidade do juiz, não é suficiente que ela seja assegurada por lei, “é necessário também, negativamente, excluir o juiz que se encontre em situações que possam gerar dúvida ou suspeita de imparcialidade” (BADARÓ, 2014). A afirmação de Badaró decorre do entendimento firmado pelo Tribunal Europeu de Direitos Homem, que defende que ao juiz não basta ser imparcial, também, deve parecer ser imparcial. Tal afirmativa surgiu no Caso Piersack contra Bélgica, que muito se assemelha ao caso julgado pelo STF e que se estuda. Piersack foi condenado por um homicídio e absolvido por outro ocorrido em 1976. Os crimes contra vida eram julgados pelo Tribunal do Júri, o qual era composto por 12 jurados e três juízes togados, sendo que estes só votavam o mérito em determinadas situações. No caso em questão, a votação dos jurados terminou em 7 a 5, o que obrigou os juízes togados a decidirem pela condenação ou não de Piersack, sendo que “after deliberating on that question in private, the President and the two other judges (assesseurs) declared that they agreed with the majority.”. Ocorre que a sessão de julgamento foi presidida pelo juiz Van de Walle, que assumiu tal cargo no Tribunal de Apelação de Bruxelas em 13/12/1977. Todavia, antes de se tornar juiz, Van de Walle era um Promotor de Justiça e “he was the head of section B of the Brussels public prosecutor’s department,this being the section dealing with indictable and non-indictable offences against the person and, therefore, the very section to which Mr. Piersack’scase was referred”. No processo de Piersack não existia prova de que Van de Walle tivesse atuado diretamente na investigação dos homicídios, nada obstante, existiam trocas de ofícios entre o juiz instrutor do caso e aquele; ainda, os dois promotores designados para o caso eram fiscalizados por Van de Walle. Tendo em vista a manutenção de sua condenação pela justiça belga, apesar dos recursos alegarem ofensa ao direito ao julgamento por um juiz imparcial, Piersack levou o caso à Comissão Europeia de Direitos do Homem, sob fundamento de que o art. 6º, I, da Convenção Europeia não havia sido respeitado. A Comissão julgou o caso admissível e o remeteu ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (doravante, TEDH). O Tribunal reconheceu que existe uma diferença entre imparcialidade subjetiva e objetiva, consignando que: 30. Whilst impartiality normally denotes absence of prejudice or bias, its existence or otherwise can, notably under Article 6 § 1 (art. 6-1) of the Convention, be tested in various ways. A distinction can be drawn in this context between a subjective approach, that is endeavouring to ascertain the personal conviction of a given judge in a given case, and an objective approach, that is determining whether he offered guarantees sufficient to exclude any legitimate doubt in this respect. A partir de tal distinção, reconheceu que no caso não existia prova de ofensa à imparcialidade subjetiva, a qual deve ser presumida até que se prove o contrário. Por outro lado, quanto à imparcialidade objetiva afirmou que ante as circunstâncias do caso “it is sufficient to find that the impartiality of the "tribunal" which had to determine the merits (in the French text: "bien-fondé") of the charge was capable of appearing open to doubt.”, reconhecendo violação ao art. 6, 1, da Convenção. Aplicando a jurisprudência do Caso Piersack ao AI 706078-QO, temos que a participação do Ministro Hamilton no julgamento do agravo regimental acarretava em ofensa à imparcialidade objetiva, porquanto foi responsável pela acusação no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A despeito de seu voto ter sido decisivo ou não para denegação do agravo, o simples fato de ter participado do quórum de julgamento já era por si capaz de gerar dúvidas acerca da imparcialidade da 6ª Turma do STJ. De tal modo, percebe-se que a jurisprudência internacional pode servir como base de fundamento para o julgamento do caso e resguardo da imparcialidade. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Especialista em Ciências Criminais e práticas de advocacia criminal. REFERÊNCIAS BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. European Court Of Human Rights court (CHAMBER) Case Of Piersack V. Belgium (Application No. 8692/79). JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinhode. Direito processual penal: estudos e pareceres. 14. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.
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