![]() Texto do colunista Paulo Silas Filho no sala de aula criminal! Vale a leitura. "Enquanto instituição, o Direito pode ser compreendido por diferentes formas ou a partir de órgãos, classes ou institutos diversos. Cada ente exerce a sua própria ou determinada função. Normativamente, os papeis que competem a cada qual são atribuídos e definidos previamente, evitando-se assim justamente o arbítrio, o excesso, o desvio de finalidade. Mas por mais que assim seja, esse rompimento de limites eventualmente surge, revelando a sua faceta que se pode dizer como sendo a sua base interior, desbalizando aquilo que no plano do dever-ser deveria ser o Direito". Por Paulo Silas Filho Em “Carta ao Pai”, não há nenhum personagem ficcional que não o próprio autor. O protagonista da trama real é Kafka, aquele que escreve, narra e conduz o enredo da epístola na qualidade de personagem que apresenta ao leitor algo muito além da mimesis literária. A verossimilhança daquilo que está escrito é efetivamente a reprodução da realidade vivida pelo autor. Não se trata assim de uma obra ficcional, mas sim de um relato bastante íntimo de Kafka que permite abordagens por diversas perspectivas, ampliando-se os horizontes possíveis de análise sobre essa bela e dura e obra de destaque na literatura mundial.
A obra é pesada em seu conteúdo. Como o título deixa claro, trata-se de uma carta escrita por Kafka direcionada ao seu pai, nunca tendo sido entregue. O destinatário não recebeu o documento. O filho escreveu para outra pessoa, seu genitor, mas acabou sendo um exercício de escrever para si próprio. Um modo incompleto decorrente do medo, conforme é admitido na epístola. Foi um modo singular de lidar com o problema, mas deixando de enfrentá-lo. Na carta, o enfrentamento acontece, coisas são ditas, situações são reclamadas, apontamentos são feitos, constituindo assim uma espécie de ato simbólico a partir do qual um conflito foi posto em questão, já que o embate em si propriamente não ocorreu. Lembranças de episódios em que foi humilhado pelo pai surgem na carta de Kafka. Foram as brigas desprovidas de qualquer tipo de patamar de igualdade, já que eram sempre de cima (o pai) para baixo (o filho) que se davam as cobranças e acusações em tom de exacerbo, que resultaram em um sujeito “para baixo” como Kafka se entendia. A ausência de confiança, de uma autoestima elevada, surge como uma das tantas consequências que acabaram por constituir a pessoa do escritor. A impossibilidade de resolver esse conflito mesmo que por uma carta, já que sequer foi entregue, pendente estando assim a coragem necessária para o ato em um nível mais elevado, é prova disso. Alguma coisa ficou desse âmbito evidente no assujeitamento de Kafka. O pai de Kafka é designado como um rei, pois o poderio desse monarca é observado no controle que sempre fez questão de exercer, pelo que, dada a rigidez que conduziu a criação e toda a relação com o filho, tem-se nele uma espécie de tirano. O déspota promove a autoridade que recai sobre Kafka de forma exacerbada, arbitrária, repercutindo em tudo aquilo que é reclamado no documento íntimo que foi revelado ao mundo diante da inobservância da vontade do escritor. Há muitas marcas que ficaram dolorosamente presentes em toda a vida de Kafka. A carta revela algumas delas. O pai funciona como a autoridade que se exerce sobre o súdito. Nesse caso kafkaniano, isso se dá de forma que pende para o arbítrio, pois excessiva, ultrapassando aquela imposição de restrições necessárias para uma adequada formação do sujeito. A castração simbólica é um processo fundamental para a constituição da psique, possuindo o Pai o papel de interdição, representando a lei, a cultura, o que faz com que o sujeito assuma a sua posição enquanto tal. Psicanaliticamente, ao se falar no Pai enquanto função simbólica, tem-se uma metáfora na qual o Pai aparece como um nome e com uma função: a de castrar. A castração, simbólica, repercute na definição do sujeito (constituído pela estrutura psíquica também formada pelo id, ego e superego) e em suas relações com o desejo, com a linguagem e implicações outras tantas. Daí que se diz ser a interdição da lei (do Pai) uma etapa necessária para o sujeito em formação, de modo que a etapa da castração simbólica é significativa e necessária. Problemas tendem a se dar quando essa interdição inexiste (falta) ou quando ela se dá de forma muito enfática (excesso). Em Kafka, tem-se um pai que aparentemente cai no excesso quando da prática da orientação e criação formativa, passando a constituir mero exercício de controle e domínio, algo típico de uma relação estatal do monarca opressor com seus súditos – ao contrário daquela que se espera, em certo sentido, de uma relação entre pai e filho. Para romper com isso, ou ao menos em uma tentativa aproximada, ao seu próprio e temeroso modo, Kafka incorre no parricídio simbólico. Buscando o rompimento da submissão ao poder paterno (com ou sem êxito?), a carta é escrita, declarando o autor que sempre se escondeu do pai, nunca tendo falado abertamente com o genitor – e, como se sabe, nem o exercício dessa escrita resolveu isso. De todo modo, há alguém específico para o qual Kafka pode direcionar o seu reclamo, o próprio pai, também Pai simbólico da constituição do seu ‘eu’. A partir disso, questiona-se: no Direito, quem é que castra, exercendo a função paterna? Quem é o Pai no Direito? Enquanto instituição, o Direito pode ser compreendido por diferentes formas ou a partir de órgãos, classes ou institutos diversos. Cada ente exerce a sua própria ou determinada função. Normativamente, os papeis que competem a cada qual são atribuídos e definidos previamente, evitando-se assim justamente o arbítrio, o excesso, o desvio de finalidade. Mas por mais que assim seja, esse rompimento de limites eventualmente surge, revelando a sua faceta que se pode dizer como sendo a sua base interior, desbalizando aquilo que no plano do dever-ser deveria ser o Direito. Quem é o responsável pelo excesso no Direito, excesso esse que constitui uma característica do jurídico contemporâneo? Acaso se queira escrever uma carta como a de Kafka, mas voltada para o Direito, quem é que figura como sendo o Pai nesse âmbito e que deve ser o destinatário do documento? Qual agência é a que desempenha essa função paterna que melhor representa o Direito na concepção aqui abordada? Seriam as polícias (a Polícia)? Seriam os legisladores (o Legislativo)? Seriam os juízes (o Judiciário)? Seria quem? O exacerbo na condução do Direito pode ser enxergado a partir de diversos exemplos que aparecem reiteradamente no cotidiano. Execuções sumárias são praticadas sob as mais diversas escusas supostamente legitimadoras (algumas tantas imbuídas por fraudes que disfarçam o fato efetivamente ocorrido e passam a ser narradas ardilosamente a partir de uma versão criada), ceifando-se vidas que sequer possuem a oportunidade de se manifestar previamente, muito menos exercer defesa. Instrumentos normativos são criados, votados e passam a valer juridicamente de forma destoada dos princípios e das limitações de base, apostando-se na produção de seus efeitos desarrazoados mesmo que contrariando balizas constitucionais. Decisões judiciais ultrapassam limites legais e se contradizem com a própria jurisprudência, estabelecendo um cenário de insegurança jurídica que é promovido por uma espécie de paradigma de decisionismo judicial. Variados são os agentes que se excedem em seu atuar jurídico, tratando-se esses de perpetradores de um despotismo jurídico que contribuem para esse cenário em que se pode identificar um Pai tirano no Direito. A questão que fica é saber quem é esse Pai, ocupando de forma mais acertada (para o exercício de reflexão aqui proposto) a função paterna no Direito. A quem deseja escrever uma carta ao Pai jurídico, resta saber quem efetivamente deve ser o receptor da mensagem de reclamo que se pretenda transmitir. Quem é o Pai do Direito? Paulo Silas Filho Professor, advogado e escritor NOTAS: [1] Texto que sintetiza a abordagem proposta pelo autor quando da participação no evento “Kafka: a crítica da modernidade e a lei” promovido pelo Instituto Serendipe no dia 12 de abril de 2025 na Biblioteca do Instituto Serendipe (Curitiba/PR)
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