Artigo do Colunista Iuri Machado, com a análise de casos, fundamentos e problematizações das decisões, vale a leitura! ''Fazendo o comparativo com o habeas corpus julgado pelo STF, temos que tomar algumas cautelas. Consoante se sabe, no Brasil, a figura do juiz instrutor não está prevista no Código de Processo Penal, nada obstante esteja prevista no regimento interno do Supremo Tribunal Federal''. Por Iuri Machado'' 1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL
HC 94641, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. JOAQUIM BARBOSA, Segunda Turma, julgado em 11/11/2008, DJe-043 DIVULG 05-03-2009 PUBLIC 06-03-2009 EMENT VOL-02351-03 PP-00589 Ementa do julgado: HABEAS CORPUS. Processo Penal. Magistrado que atuou como autoridade policial no procedimento preliminar de investigação de paternidade. Vedação ao exercício jurisdicional. Impedimento. Art. 252, incisos I e II, do Código de Processo Penal. Ordem concedida para anular o processo desde o recebimento da denúncia. . 2 O CASO O.V.B. foi denunciado pela prática dos crimes previstos nos artigos 214, c/c 224 e 225, inc. II, do Código Penal. Em primeiro grau, foi condenado, tendo o Juiz sentenciante consignado na sentença que: “O depoimento da vítima é coerente, seguro e harmônico com as demais provas carreadas aos autos. Não se pode desprezar seu depoimento; sobre ele não se levantou eiva de qualquer espécie. O fato de a vítima ter revelado os fatos em Juízo apenas no momento em que tratava da paternidade de sua filha não tem o condão de “anular o processo” como pretende a defesa. Perante a autoridade policial a vítima já havia noticiado que o réu dela abusava sexualmente. Relevante salientar que foi o próprio réu quem impediu a inquirição da vítima na instrução processual, pois uma vez mais a aterrorizou, forçando-a a viajar com a filha para fora dessa Comarca. O depoimento da vítima constitui apenas um dos meios de prova em direito admitidos.” O acusado recorreu da sentença, tendo o Tribunal de Justiça da Bahia mantido a condenação e dado provimento ao recurso do Ministério Público para o aumento da pena. Após, impetrou Habeas Corpus ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), alegando que: "a condenação do recorrente fulcrou-se em duas fontes em duas fontes probatórias das mais espúrias em processo penal, quais sejam, a prova emprestada na qual não houve qualquer contraditório e as declarações de terceiros que souberam do fato por ‘ouvir dizer’”, pedia, assim, absolvição por falta de provas. A 5ª Turma do STJ negou a ordem de habeas corpus sob o fundamento de que não seria possível exame do contexto fático-probatório. Por fim, foi impetrado o habeas corpus objeto do presente estudo, o qual foi distribuído à 2ª Turma que concedeu a ordem de ofício para anular a sentença condenatória. Importante consignar que a Relatora Ministra Ellen Gracie constatou que existiam três questões sendo discutidas na impetração: a nulidade do processo conta do impedimento do juiz sentenciante; a falta de justa causa para condenação; nulidade da decisão do STJ em virtude da violação do princípio da isonomia. O presente artigo abordará apenas a primeira tese. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO A Ministra Ellen Gracie restou vencida em seu voto, e negava a tese de que o juiz sentenciante estaria impedido para julgar o mérito do processo penal. Afirmou a Ministra que “não incide, na hipótese, o disposto no art. 252, II, do Código de Processo Penal que, como se sabe, não pode ser interpretado ampliativamente”. O Ministro Joaquim Barbosa iniciou a divergência constatando que, no processo de investigação de paternidade da vítima, o Juiz sentenciante da ação penal teria ouvido diversas testemunhas, inclusive a vítima, feito relatório, encaminhado ao Ministério Público, e proferido a sentença, consignando que o Juiz “atuou como autoridade policial”. Em voto-vista, o Ministro César Peluso acompanhou a divergência, afirmando que “houve quebra da chamada imparcialidade objetiva”. De início, o Ministro constatou que “as provas ou elementos indiciários que deram base à denúncia e, no processo subsequente, à própria sentença condenatória, não tenham sido colhidos em inquérito policial, mas no curso de procedimento oficioso de investigação de paternidade”. Assim, o Ministro percebeu que o Juiz teria atuado na produção de provas e cognição dos fatos de ambos os processos, destacando que a sentença condenatória fazia inúmeras remissões à investigação de paternidade. O Ministro Peluso afirmou que, o entendimento da justiça brasileira, de que as hipóteses de impedimento do art. 252 do CPP seriam taxativas não seria o mais adequado ante os princípios e regras constitucionais, afirmando que a ruptura da imparcialidade objetiva incapacita o magistrado para julgar a causa: Caracteriza-se, portanto, hipótese exemplar de ruptura da situação de imparcialidade objetiva, cuja falta incapacita, de todo, o magistrado para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida em relação à qual a incontornável predisposição psicológica nascida de profundo contato anterior com as revelações e a força retórica da prova dos fatos a torna concretamente incompatível com a exigência de exercício isento da função jurisdicional. […] A imparcialidade da jurisdição é exigência primária do princípio do devido processo legal, entendido como justo processo da lei, na medida em que não pode haver processo que, conquanto legal ou oriundo da lei, como deve ser, seja também justo – como postula a Constituição da República- sem o caráter imparcial da jurisdição. Não há, deveras, como conceber-se processo jurisdicional – que, como categoria jurídica, tem por pressuposto de validez absoluta a concreta realização da promessa constitucional de ser justou ou devido por justiça (due process) -, sem o predicado da imparcialidade da jurisdição. Assim, entendeu o Ministro Cezar Peluso que o art. 252, inc. III, do Código de Processo Penal, não pode ser interpretado desassociado do justo processo legal, ao menosprezo da imparcialidade objetiva. 4 PROBLEMATIZAÇÃO Na última coluna, destacou-se que o princípio da imparcialidade é o mais importante do processo penal, porquanto sem juiz imparcial não há jurisdição, mas apenas um simulacro desta. Constatou-se que a imparcialidade objetiva surgiu no caso Piersack contra Bélgica1: O Tribunal reconheceu que existe uma diferença entre imparcialidade subjetiva e objetiva, consignando que:
Dois anos após o julgamento do caso Piersack, o TEDH se viu diante do Caso De Cubber contra Bélgica. No caso, em 1976, De Cubber foi preso pela prática de crimes de alguns crimes, sendo que a ordem de prisão foi expedida pelo juiz de instrução/investigador, sr. Pilate, do Tribunal de Correção de Oudenaarde, na ocasião, De Cubber passou a ser investigado em três procedimentos (6622/77, 10.971/76 e 3136/77). O juiz Pilate já havia julgado De Cubber em outros três processos criminais e processo civis decorrentes de crimes praticados, sendo que, nestes processos, De Cubber alegou a imparcialidade do juiz Pilate e dos respectivos tribunais, o que foi negado. No caso que foi levado ao TEDH, o Juiz Pilate assumiu as investigações dos casos criminais 10.971/76 e 3136/77, sendo que, após dois anos de investigação, estes foram unificados para julgamento conjunto, nos quais De Cubber e outros foram acusados. Consta do julgado que o juiz Pilate compôs o quórum julgador, o que não foi objeto de recurso imediato por parte da defesa: These cases related to several hundred alleged offences committed by fifteen accused, headed by the applicant; there were no less than nineteen persons intervening to claim damages (parties civiles). For the purpose of the trial, the court, which over the years had nine or ten titular judges, sat as a chamber composed of a president and two judges, including Mr. Pilate. Mr. De Cubber stated that he protested orally against the latter’s presence, but he did not have recourse to any of the legal remedies open to him for this purpose, such as a formal challenge (procédure de récusation; Article 828 of the Judicial Code). De Cubber foi condenado por alguns fatos e em seus recursos na justiça belga alegou ofensa ao direito ao julgamento por um tribunal imparcial (art. 6, 1, da Convenção Europeia de Direitos do Homem) ante o fato de que o juiz Pilate havia sido investigador/instrutor e julgador dos casos. O Tribunal de Cassação negou o recurso sob argumento de que o acumulo de funções não acarretaria em ofensa legal, tampouco à Convenção. O TEDH constatou quais seriam as funções do juiz instrutor segundo a legislação belga:
26. However, it is not possible for the Court to confine itself to a purely subjective test; account must also be taken of considerations relating to the functions exercised and to internal organisation (the objective approach). In this regard, even appearances may be important; in the words of the English maxim quoted in, for example, the Delcourt judgment of 17 January 1970(Series A no. 11, p. 17, para. 31), "justice must not only be done: it must also be seen to be done". As the Belgian Court of Cassation has observed (21 February 1979, Pasicrisie 1979, I, p. 750), any judge in respect of whom there is a legitimate reason to fear a lack of impartiality must withdraw. What is at stake is the confidence which the courts in a democratic society must inspire in the public and above all, as far as criminal proceedings are concerned, in the accused (see the above-mentioned judgment of 1 October1982, pp. 14-15, para. 30). O Tribunal constatou que havia similaridades com o caso Piersack, nada obstante suas diferenças legais, vez que as funções de juiz instrutor diferiam das de um promotor, porquanto o juiz instrutor, dentre outras: figura entre os oficiais da polícia judiciária, sujeito à fiscalização do procurador-geral; poderia realizar atos diretamente; possuí amplos poderes, podendo realizar tudo aquele que não fosse proibido por lei. Ainda, o TEDH ressaltou que “under Belgian law the preparatory investigation, which is inquisitorial in nature, is secret and is not conducted in the presence of both parties”. Por se tratar de uma situação que a própria legislação belga já havia se preocupado em proteger ("acted in the case as investigating judge" may not, under the terms of Article 127 of the Judicial Code, preside over or participate as judge in proceedings before an assize court”), pelo profundo conhecimento prévio que o juiz Pilate tinha do caso (“unlike his colleagues, will already have acquired well before the hearing a particularly detailed knowledge of the - sometimes voluminous - file or files which he has assembled”) e pelo fato de que caberia aos Tribunais fiscalizar a legalidade das medidas tomadas pelo juiz de instrução (“have to review the lawfulness of measures taken or ordered by the investigating judge”), o TEDH reconheceu que houve ofensa ao julgamento por um tribunal imparcial. Fazendo o comparativo com o habeas corpus julgado pelo STF, temos que tomar algumas cautelas. Consoante se sabe, no Brasil, a figura do juiz instrutor não está prevista no Código de Processo Penal, nada obstante esteja prevista no regimento interno do Supremo Tribunal Federal2. O cotejo que se pode fazer entre os casos está no fato de que tanto julgado pelo STF, quanto no caso julgado pelo TEDH, os juízes haviam instruído o processo de ofício, realizando diversos atos probatórios e, utilizando os parâmetros fixados pelo TEDH, tinham profundo conhecimento do caso e não tomariam medidas hábeis a verificar a legalidade dos atos investigatórios. Destaque-se que em ambos os casos os juízes teriam atuado como polícia judiciária, já que no caso De Cubber, o TEDH afirmou, quanto ao papel legal do juiz instrutor, que “the investigating judge also has the status of officer of the criminal investigation police (police judiciaire)”, enquanto que no caso brasileiro, o Ministro Barbosa afirmou, quanto ao papel exercido de fato pelo juiz, que “atuou como autoridade policial”. De mais a mais, no Brasil, diversamente do caso De Cubber, o juiz havia sentenciado o processo de investigação de paternidade, i.e., valorado as provas3 e, após, remetido cópia do processo ao Ministério Público para oferecimento da denúncia, a qual foi recebida por ele mesmo. Tendo em consideração a intensa atuação do juiz na investigação de paternidade, o que levou inclusive a se utilizar das provas lá realizadas para condenação no processo criminal, não é possível afirmar que sua imparcialidade objetiva foi preservada. Como bem leciona Badaró, “a imparcialidade objetiva do juiz resta evidentemente comprometida quando o magistrado realiza pré-juízos ou pré-conceitos sobre o fato objeto do julgamento”. A respeito, Ferrajoli escreveu carta de apoio ao ex-presidente Lula que perfeitamente se amolda ao presente caso4, nela afirmou que “pelo singular traço inquisitório do processo penal brasileiro que é a confusão entre o papel julgador e o papel de instrução, que é papel próprio da acusação”. Quando o juiz realizou toda investigação da paternidade e julgou o caso criminal, efetivamente, confundiu seus papéis, tal qual propôs Ferrajoli, razão pela qual pode-se utilizar o caso De Cubber como fundamento para constatar a imparcialidade do julgador. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciário da ANACRIM-PR. Ig: @advogado_iurimachado REFERÊNCIAS BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao julgamento por um juiz imparcial: como assegurar a imparcialidade objetiva no juiz nos sistemas em que não há a função do juiz das garantias. Disponível em: <http://www.badaroadvogados.com.br/ano-2011-direito-ao-julgamento-por-juiz-imparcial-como-assegurar-a-imparcialidade-objetiva-no-juiz-nos-sistemas-em-que-nao-ha-a-funcao-do-juiz-de-garantias.html>. Acesso em 28/04/2020. European Court Of Human Rights court (CHAMBER) Case Of De Cubber V. Belgium (Application No. 9186/80). MACHADO, Iuri Victor Romero. Quem acusa pode julgar? Disponível em: <(http://www.salacriminal.com/home/quem-acusa-pode-julgar)>. Acesso em 15.05.2020. 1MACHADO, Iuri Victor Romero. Quem acusa pode julgar? Disponível e: <(http://www.salacriminal.com/home/quem-acusa-pode-julgar)>. Acesso em 15.05.2020. 2Disponível em: <http://www.stf.jus.br/ARQUIVO/NORMA/EMENDAREGIMENTAL036-2009.PDF>. Acesso em 15.05.2020. 3Na próxima coluna será estudado o caso Hauschildt contra Dinamarca, no qual o TEDH definiu que é o aprofundamento prévio do caso e valoração das provas que criam o impedimento do julgador. 4Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/lula-ausencia-impressionante.pdf>. Acesso em 15.05.2020.
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