A criminalização nunca funcionou minimamente como solução para o problema das drogas. Entramos no caminho errado e, por teimosia, continuamos indo insistentemente na mesma direção, cada vez mais nos distanciando da verdadeira solução. É necessário mudar de caminho e não insistir no velho. É sempre preciso pensar o novo, sobretudo como alternativa a algo que não funciona bem, evitando-se o aprisionamento mental intuído por Hannah Arendt, ao discorrer sobre a “condição humana”[2]:
A Política Repressiva de Drogas é obsoleta, ineficaz e, por que não dizer, deletéria. Insistir em algo que não funciona é indicativo de aprisionamento mental. É preciso, urgentemente, transformar a atual Política de Drogas. Não se nega que as drogas compõem um problema que precisa ser acompanhado, controlado e minorado, mas não pela via penal, vez que totalmente inadequada. No final da década de 1960, antes do início da chamada “Guerra às Drogas”, o economista americano Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia, sobre as drogas, já alertava que se trata de “um problema moral o governo tornar criminosos pessoas que estão simplesmente fazendo algo que eu ou você talvez não aprovemos, mas que não está ameaçando ninguém”[3]. Em linha similar de pensamento, o sociólogo Edwin Schur, autor do livro “Crimes sem Vítimas” (Crimes without Victims), na mesma década, já asseverava que “o Estado carece de legitimação para intervir com o arsenal punitivo em situações que se traduzem na permuta, sem coação e entre adultos, de bens ou serviços escassos”[4]. A ideia é relativamente simples: não faz sentido que o Estado intervenha na conduta de uma pessoa que livremente escolheu fazer uso de determinada substância, sem atingir lesivamente terceira pessoa. Mais uma vez citando Friedman, “é vergonhoso que o governo esteja na posição de converter pessoas que não estão ameaçando ninguém em criminosos”. Contudo, desde a década de 1960 mantém-se a injustificada Guerra às Drogas. De um lado, encontra-se a problemática das drogas, de outro lado, o Direito Penal, utilizado há mais de século como potencial solução para o problema. Neste contexto, de início, é preciso indagar: O Direito Penal, enquanto meio de controle das drogas, tem sido eficaz na conquista de resultados positivos? O empirismo aponta para uma resposta negativa. Ao contrário, o que se verifica é o crescente número de dependentes químicos e o aumento da violência real associada ao tráfico de drogas.[5] Em verdade, o Direito Penal vem falhando sistematicamente na luta contra as drogas, talvez por uma razão muito simples, pode ser que a violência estatal, exercida através do jus puniendi, não seja o instrumento mais adequado para lidar com uma questão de saúde pública. Nos dias atuais, a obesidade é, mundialmente, o maior problema de saúde pública em evidência, mas não se revela minimamente plausível que seja combatido por medidas penais. Isto por uma razão óbvia: problemas de saúde pública se resolvem com medidas de saúde pública! O óbvio deveria valer também para o problema das drogas. Tanto é assim que inúmeros países, incluindo Suiça (low-threshold) e Canadá (Supervised Injection Site) estão buscando desenvolver políticas sanitárias eficazes para lidar com a questão das drogas. Ademais, o “tratamento” penal das drogas, no sistema atual, inverte completamente a lógica do princípio da intervenção mínima, vez que, na hipótese, o Direito Penal incide como prima ratio, antecipando-se a todas as demais formas de controle. A criminalização primária das drogas exerce um papel estigmatizante e deslegitima as reais soluções. Agora, considerando-se que o Direito Penal não está conseguindo realizar o papel a que se propõe, com relação às drogas, faz-se necessária a reflexão acerca de um ponto central: Quais as razões da criminalização das drogas? Em primeiro lugar, é preciso analisar, à luz da criminologia crítica, as razões da "guerra às drogas" como decorrência de uma política transnacional ultrapassada e que, do passado aos dias atuais, se mostra ineficaz e estigmatizante. Vale consignar o alerta inicial de Baratta[6]:
A criminóloga venezuelana Lola Anyar de Castro[7], analisando a criminalização das drogas em seu país, bem consignou que:
Interessante perceber, outrossim, a influência das razões econômicas na estruturação da sociedade, inclusive para a fixação dos limites punitivos. Valioso é o ensinamento de Marilena Chaui[8]:
Relevante registrar, também, a lição de Katie Argüello no sentido de apontar que “assim como a criminalidade é uma realidade socialmente construída, segundo processos de definições e reações sociais, a droga é objeto de um discurso construído na obscuridade para que se possa atuar sobre ela de forma arbitrária”.[9] Em segundo lugar, diante da ineficácia do Direito Penal, é preciso analisar as alternativas à sua incidência, com a substituição da criminalização pela legalização (regulamentação), demandando a atuação estatal, através dos variegados ramos do Direito. Seguindo a lição de Ferrajoli[10] é preciso buscar a adoção de um modelo de Direito Penal mínimo, em oposição aos modelos de Direito Penal máximo, com observância a diversos princípios, entre os quais: legalidade, necessidade e ofensividade. Em síntese, é preciso dizer que não deve o Direito Penal incidir indistintamente, mas sim de acordo com o seu caráter fragmentário. O criminólogo alemão Sebastian Scheerer sustenta que “droga não é assunto do direito penal”.[11] Em verdade, ao invés da repressão, programas de políticas públicas, voltados para a redução de danos é que devem nortear a atuação estatal. Como bem pondera Salo de Carvalho[12], o fenômeno das drogas é um problema de saúde pública! Nas palavras de Zaffaroni, a criminalização revela “prejuízo claro para o avanço de qualquer terapia de desintoxicação e modificação de comportamento”.[13] Precisamos sim pensar em alternativas, ao invés de insistirmos em uma "guerra" destrutiva. É relevante ponderar, portanto, que a criminalização do uso de drogas é uma verdadeira incoerência dentro do sistema penal pátrio. Isto porque, o Direito Penal se propõe à tutela de bens jurídicos, protegendo os direitos individuais contra agressões. Ocorre que, o uso de drogas, por si, não atinge a esfera jurídica de terceiros (princípio da alteridade), a ponto de justificar a ingerência do Estado, através do controle punitivo. Usar drogas é uma escolha pessoal, talvez reprovável no campo da moral, mas não de repercussão penal. Como ensina o doutrinador alemão Claus Roxin, o Direito Penal serve à proteção de bens jurídicos relevantes e previamente determinados, não podendo abranger a “imoralidade” e as “meras contravenções”.[14] Ainda, nas palavras do Professor Juarez Cirino, o conceito de bem jurídico “parece constituir garantia política irrenunciável do Direito Penal do Estado Democrático de Direito”.[15] É efetivo que o sujeito pode estar prejudicando a sua saúde pessoal, mas o que o indivíduo faz consigo próprio, sem atingir terceiros, não justifica a repressão penal, tanto é assim que não é crime a auto-lesão ou a tentativa de suicídio. Nem se alegue que o uso das drogas deve ser reprimido por estar associado à prática de outros crimes. Ora, os crimes que atingem lesivamente a sociedade devem sempre ser reprimidos, mas não a situação antecedente que, por si, não atinge bem jurídico de terceiro. A criminalização não pode funcionar como rotulação apriorística voltada para atingir pessoas, ao invés de fatos lesivos. Tal postura estatal não se sustenta em um Estado Democrático de Direito. Por fim, a criminalização das drogas nunca atingiu os fins propostos, o consumo só aumentou nas últimas décadas, o tráfico ilícito só aumentou, a violência associada só aumentou! Quer combater as drogas? Tire o Direito Penal do caminho! André Pontarolli Professor e Advogado Criminal Referências: [1] Frase popularmente atribuída ao mafioso americano Al Capone. [2]ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. De Roberto Raposo. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. p. 301. [3] Entrevista concedida por Friedman sobre o tema disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-shwabBMEXQ [4] Schur é reiteradamente citado por Figueiredo Dias em artigo intitulado “Uma Proposta Alternativa ao Discurso da Criminalização/ Descriminalização das Drogas”, disponível em: http://jorgesampaio.arquivo.presidencia.pt/pt/biblioteca/outros/drogas/ii2.html [5] A Professora Katie Argüello, em seu texto “O fenômeno das drogas como um problema de política criminal”, apresenta dados estáticos do DEPEN, revelando que grande parte da população carcerária brasileira é formada por detentos envolvidos no tráfico de entorpecentes (125.744 de um total de 514.582). [6]BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Trad. de Juarez Cirino dos Santos. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999. p. 165. [7]CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da Libertação. Trad. de Sylvia Moretzsohn. Rio de Janeiro: Revan, 2005. p. 196. [8]CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 11. ed. São Paulo: Editora Ática, 1999. p. 275. [9]ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. O fenômeno das drogas como um problema de política criminal. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, n. 56, p. 177-192. Paraná: UFPR, 2012. [10]FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Trad. de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002. [11]SCHEERER, Sebastian, et al. Globalización y drogas: políticas sobre drogas, derechos humanos y reducción de riesgos. 2003. [12] CARVALHO, Salo. A política criminal de drogas no Brasil: Estudo criminológico e dogmático. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. [13] Fragmentos da decisão proferida pela Suprema Corte Argentina encontram-se transcritos no material elaborado pela CBDD (Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia) intitulado “Política de Drogas: Novas Práticas Pelo Mundo”. Vide: http://www.cbdd.org.br/ [14]ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General. Tomo I. Trad. de Diego-Manuel Luzón Peña et alii. Madrid: Civitas, 2003. p. 52. [15]CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal: parte geral. 5. ed. Curitiba: ICPC, 2012. p. 18. Comments are closed.
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