Camila Strzelecki Bortoletto e Esheley Froggel no sala de aula criminal, tratando sobre o tema do reconhecimento de pessoas no processo penal, vale a leitura! ''Quanto ao processo de reconhecimento, diversos países, de acordo com relatório do Innocence Project Brasil, têm protocolos a serem seguidos para diminuir o número de reconhecimento equivocado de suspeito[12]. O Brasil conta com o já mencionado artigo 226, que era visto pela jurisprudência como mera recomendação. Esse entendimento mudou em abril de 2021, quando a Sexta Turma do STJ reconheceu que o não atendimento aos preceitos indicados no artigo fará com que essa prova seja nula, e, não existindo outras provas, não haverá condenação nesses casos''. Por Camila Strzelecki Bortoletto e Esheley Froggel Quando se traz à tona a terminologia “prova”, em berço processual penal, nos é fornecido um contexto histórico que aborda em mais variados períodos temporais sua definição e aplicação. Não obstante, a prova em dias contemporâneos é definida, segundo Pacelli, como um objetivo claro de reconstruir ou tentar buscar a maior coincidência dos fatos para a reconstrução da verdade[1].
No ordenamento jurídico vigente, são abordadas provas jurídicas consistentes e de (in)fiel aplicabilidade, como confissão, prova testemunhal, pericial, reconhecimento e entre outras demais, que a oportuno momento, não serão tema de aprofundamento. É inegável que a memória é essencial para que os humanos funcionem e consigam completar as tarefas diárias mais básicas. Porém, o processo bioquímico que transforma o que a pessoa vê e presencia em memória está sujeito a falhas. Ademais, durante e após ser transformada, a memória pode sofrer alterações, tendo em vista que a cada recordação, novos sentimentos e informações são adicionados[2]. Além dessas falhas, existem também as falsas memorias, que diferem da mentira, e que podem ser criadas tanto espontaneamente quanto sugestivamente, e são capazes, muitas vezes, de serem mais detalhadas que as memórias reais. As espontâneas são formadas pelo próprio individuo, enquanto as sugestivas são introduzidas por fatores externos[3]. Os fatores externos podem ser, por exemplo, introduzidos pela mídia, enquanto os espontâneos podem decorrer de expectativas, vieses e estereótipos da própria pessoa[4]. Mesmo assim, muitas condenações são feitas baseadas em provas como o testemunho e o reconhecimento do suspeito por testemunhas e/ou vítimas. O reconhecimento tem sido grande alvo de observações negativas sobre se sua aplicação, para a busca de uma justiça, está sendo aplicada e direcionada de forma coesa. O reconhecimento é um meio de prova, de forma psicológica, muito sensível e frágil, visto e analisado conforme os atos em torno de um crime se sucedem ou podem se suceder. De acordo com o Innocence Project, dos Estados Unidos, de 239 casos de presos absolvidos por prova de DNA, 75% haviam sido presos por erro de identificação[5]. No Brasil, não há muita diferença. O reconhecimento penal é um dos meios de provas abordado no artigo 226 do Código de Processo Penal, que delimita seus nuances de aplicabilidade, explicitando que, se infringido tal dispositivo, aquilo que se sucedeu de forma ilegal será nulo[6]. Porém, a Folha de S. Paulo, em sua série Inocentes Presos, revela que, a cada 100 presos injustamente, 42 são por causa de erro de reconhecimento, principalmente pela má aplicação dos procedimentos[7]. Como explica a psicóloga Lilian Stein, o cérebro não funciona como uma máquina fotográfica, o que pode levar a esses erros, principalmente por causa da precariedade do momento em que a testemunha vê o suspeito[8]. Nesta ocasião, tragamos a mente o caso de Wilson - valendo ressaltar, “homem negro” -, que em um dia normal de seu cotidiano, deslocou-se até os semáforos da região paulista onde vendia seus doces para manter o sustento de sua família e foi abordado por um agente policial que estava a 20 km de sua margem de atuação, levando-o preso a outra regional de delegacia. O policial estava à procura do “agente” que roubou pertences de sua mulher próximo a sua residência há algumas semanas. Wilson, no decorrer do percurso, descobriu que estava sendo indiciado pelo roubo ocorrido com a mulher do policial e em uma região na qual ele não frequentava. Encaminhado à delegacia, o reconhecimento pela vítima ao suposto indiciado foi realizado, no qual Wilson, homem negro e de baixa renda, foi colocado ao lado de alguns homens brancos que não se encaixavam com a descrição realizada pela vítima do fato delituoso[9]. Por hora, pensemos: Determinada vítima, fruto de qualquer crime que o leitor possa imaginar, encontra-se tomada de emoção, com hormônios e pensamentos entrando em colapso, a evasão do criminoso ocorre de forma rápida, o crime pode ter ocorrido no escuro, em local de pouca iluminação, o criminoso poderia estar usando capacete, capuz ou máscara, o que praticamente impossibilita o reconhecimento facial, o criminoso tem alguma tatuagem da qual a vítima se atentou tão somente, e tantas outras lacunas que existem. E agora permito-me escancarar a seguinte questão, diante dos fatos, como apontar para alguém, o sentenciando, de forma subjetiva, a um preconceito sem haver a mais clara certeza de sua real culpabilidade? Outrossim, é necessário mencionar um fenômeno conhecido como “own-race bias”[10], que demonstra uma dificuldade de as pessoas reconhecerem indivíduos de raça distinta da sua. Cerca de 53% dos casos de condenação por erro na identificação, nos Estados Unidos, de acordo com o Innocence Project, foram de indivíduos reconhecendo suspeitos de raças diversas da sua[11]. Salienta-se que, havendo uma condenação injusta, existe uma grave lesão ao princípio processual do devido processo legal, exigindo diante destes fatos apresentados maior rigor probatório que se faz necessário para evitar ou, ao menos minimizar, a ocorrência de erros judiciários. Reconhecer alguém após, principalmente, um choque psicológico traz uma sensibilidade gigantesca em torno de um processo, pois havendo um reconhecimento errôneo, todos os atos aos quais o réu, ocupante deste posto injustamente, será submetido, trarão uma humilhação atrelada com uma tortura psicológica e social. Em alguns casos, quando constatado o erro cometido e reformada determinada sentença trazendo o efeito de absolvição, os antecedentes da pessoa tida como “inocente” serão manchados por todo o seu ciclo vital no meio social e pessoal. O defeito psicológico que aborda o reconhecimento pessoal após as turbulências ou situações que acarretam o trauma “pós-crime”, é reconhecido e de explicação plausível pelas teorias psicológicas de falsas memórias. Quanto ao processo de reconhecimento, diversos países, de acordo com relatório do Innocence Project Brasil, têm protocolos a serem seguidos para diminuir o número de reconhecimento equivocado de suspeito[12]. O Brasil conta com o já mencionado artigo 226, que era visto pela jurisprudência como mera recomendação. Esse entendimento mudou em abril de 2021, quando a Sexta Turma do STJ reconheceu que o não atendimento aos preceitos indicados no artigo fará com que essa prova seja nula, e, não existindo outras provas, não haverá condenação nesses casos[13]. Por tanto, deve-se atender aos procedimentos recomendados tanto pelo Código quanto por modelos internacionais quanto ao reconhecimento. Os chamados lineup ou showup, que são os reconhecimentos feito na delegacia, por fotos ou pessoalmente, do suspeito sozinho ou com outras pessoas, de acordo com o Departamento de Justiça estadunidense, devem ser, de preferência, realizados atendendo os seguintes elementos: ter ao menos cinco outras pessoas que se pareçam com o suspeito, indicar que a testemunha não precisa identificar o suspeito caso não tenha certeza, separar as testemunhas caso haja mais de uma, entre outros[14]. No Brasil, um estudo mostra que a prática mais utilizada é o showup, em que o suspeito é mostrado, sozinho, à vítima, muitas vezes sem essa nem ter se quer descrito aquele. Muito disso se deve à falta de estrutura durante o processo[15]. Assim, além de mudanças que já estão encaminhadas, como a jurisprudência acatada pelo STJ, se enxerga uma necessidade de estruturar esse procedimento, para que ele seja feito uniformemente pelo país, e de treinar os agentes que irão realizá-lo, de forma a diminuir o número de casos injustos que condenam um inocente por erro de reconhecimento. Camila Strzelecki Bortoletto Acadêmica do Curso de Direito da Universidade do Contestado – Campus Canoinhas/SC Esheley Froggel Acadêmica do Curso de Direito da Universidade do Contestado – Campus Canoinhas/SC Referências: BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 12 abr. 2022. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº HC 598886/SC. Acórdão. Brasília, 2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=HC%20598886. Acesso em: 12 abr. 2022. ESTADOS UNIDOS. OFFICE OF JUSTICE PROGRAMS. (org.). Eyewitness Evidence: a guide for law enforcement. Washington: U.S. Department of Justice, 1999. Disponível em: https://www.ojp.gov/pdffiles1/nij/178240.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022. FALHAS em reconhecimento alimentam máquina de prisões injustas de negros | INOCENTES PRESOS - EP.1. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2021. P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dRWWJvS5LJk. Acesso em: 12 abr. 2022. FIGUEIREDO, Patrícia. ONG que atua na defesa de condenados injustamente critica método de reconhecimento de suspeitos do Brasil. G1. São Paulo, p. 0-0. 15 ago. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/08/15/ong-que-atua-na-defesa-de-condenados-injustamente-critica-metodo-de-reconhecimento-de-suspeitos-do-brasil.ghtml. Acesso em: 12 abr. 2022. INNOCENCE PROJECT (ed.). Reevaluating Lineups: Why Witnesses Make Mistakes and How to Reduce the Chance of a Misidentification. Nova Iorque: Benjamin N. Cardozo School of Law, Yeshiva University, 2009. Disponível em: https://www.innocenceproject.org/wp-content/uploads/2016/05/eyewitness_id_report-5.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022. INNOCENCE PROJECT BRASIL (org.). Prova de Reconhecimento e Erro Judiciário. São Paulo: Innocence Project Brasil, 2020. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/_files/ugd/800e34_dde9726b4b024c9cae0437d7c1f425bb.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022. KAGUEIAMA, PAULA T. PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL: UM ESTUDO SOBRE FALSAS MEMÓRIAS E MENTIRAS. São Paulo: Grupo Almedina, 2021. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786556273372/. Acesso em: 12 abr. 2022. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Avanços Científicos em Psicologia do Testemunho Aplicados ao Reconhecimento Pessoal e aos Depoimentos Forenses. Lilian Stein (coord.) Série Pensando o Direito, n. 59. Brasília: Ipea, 2014. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wpcontent/uploads/2016/02/PoD_59_Lilian_web-1.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022 PACIELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 25. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2021. NOTAS: [1] PACIELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 25. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2021. P. 257 [2] KAGUEIAMA, PAULA T. PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO PENAL: UM ESTUDO SOBRE FALSAS MEMÓRIAS E MENTIRAS. [Digite o Local da Editora]: Grupo Almedina (Portugal), 2021. p. 84. [3] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. AVANÇOS CIENTÍFICOS EM PSICOLOGIA DO TESTEMUNHO APLICADOS AO RECONHECIMENTO PESSOAL E AOS DEPOIMENTOS FORENSES. Lilian Stein (coord). Pensando o Direito n. 59. Brasília: Ipea, 2014. Disponível em:http://pensando.mj.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/PoD_59_Lilian_web-1.pdf. Acesso em 12 abr. 2022. P. 23 [4] KAGUEIAMA, op. Cit., p. 105. [5] INNOCENCE PROJECT (ed.). REEVALUATING LINEUPS: WHY WITNESSES MAKE MISTAKES AND HOW TO REDUCE THE CHANCE OF A MISIDENTIFICATION. Nova Iorque: Benjamin N. Cardozo School of Law, Yeshiva University, 2009. Disponível em: https://www.innocenceproject.org/wp-content/uploads/2016/05/eyewitness_id_report-5.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022. Passim. [6] BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. Acesso em: 12 abr. 2022. [7] FALHAS em reconhecimento alimentam máquina de prisões injustas de negros | INOCENTES PRESOS - EP.1. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2021. P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dRWWJvS5LJk. Acesso em: 12 abr. 2022. [8] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Op. Cit., p. 23 [9] FALHAS em reconhecimento alimentam máquina de prisões injustas de negros | INOCENTES PRESOS - EP.1. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2021. P&B. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dRWWJvS5LJk. Acesso em: 12 abr. 2022. [10] Tradução livre: viés de raça. [11] INNOCENCE PROJECT. Op. Cit., p. 8. [12] INNOCENCE PROJECT BRASIL (org.). Prova de Reconhecimento e Erro Judiciário. São Paulo: INNOCENCE PROJECT BRASIL, 2020. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/_files/ugd/800e34_dde9726b4b024c9cae0437d7c1f425bb.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022. [13] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº HC 598886/SC. Acórdão. Brasília, 2021. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=HC%20598886. Acesso em: 12 abr. 2022. [14] ESTADOS UNIDOS. OFFICE OF JUSTICE PROGRAMS. (org.). Eyewitness Evidence: a guide for law enforcement. Washington: U.S. Department of Justice, 1999. Disponível em: https://www.ojp.gov/pdffiles1/nij/178240.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022. [15] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Op. Cit., passim.
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