Artigo de artigo de Roberta Tom Baggio e Udo Guilherme Lutz no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Posto isso, aqui, pretende-se analisar, em específico, a questão delineada no âmbito do Direito penal, que se refere à (im)possibilidade de quem se recusar a tomar a vacina em incorrer em algum delito. Precisamente, no artigo 268 do Código Penal (haja vista que, a priori, a impressão gerada é de que tal ato configura-se como uma infração à determinação do Poder Público, destinada a impedir propagação de doença contagiosa)''. Por Roberta Tom Baggio e Udo Guilherme Lutz A tão esperada vacinação contra a COVID-19 teve início no Brasil na metade de janeiro de 2021, o que, certamente, significa um cenário otimista, rumo à superação da realidade pandêmica. Contudo, o anúncio da vacina contra o coronavírus também gerou (e continua gerando) inúmeras dúvidas e incertezas para parte da população brasileira. Nesse espectro, um tópico que foi alvo de diversas discussões no final de 2020, e no início de 2021, merece especial análise do ponto de vista jurídico: a obrigatoriedade do uso da vacina.
O momento atual, felizmente, apresenta uma grande ansiedade da maioria das pessoas em vacinar-se o quanto antes (pois é esta a medida mais eficaz para a contenção da pandemia). Não obstante, vale a análise do número, divulgado em pesquisa feita recentemente pelo Datafolha, em 23 de janeiro de 2021, de que, ainda, há um percentual de 17% da população brasileira que diz que não pretende se vacinar [1]. Para analisar o assunto, cabe rememorar o fato de que, com vários questionamentos sobre a matéria, chegou para julgamento do Supremo Tribunal Federal, no final de 2020, as ADIs 6586 e 6587 para tratar sobre o tema da compulsoriedade da vacina no Brasil. Após o julgamento das ADIs, com relatoria do Ministro Lewandowski (junto com o julgamento do ARE 1267879 de relatoria do Ministro Barroso), ficaram definidas as seguintes teses sobre vacinação no plano nacional: (a) A vacinação pode ser decretada como compulsória. Isto é, podem ser implementadas medidas indiretas que necessitem o uso da vacinação para efetuação. Como, por exemplo, restrição de lugares que só podem ser acessados com mostra da vacinação realizada; (b) A competência para realizar as medidas de tais limitações pode ser tanto da União, como de estados e municípios. Ressalta-se, por oportuno, que o conceito de vacinação compulsória difere do entendimento sobre obrigatória. Isto é, como mencionado no site do Supremo Tribunal Federal “Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, vacinação compulsória não significa vacinação forçada, pois exige sempre o consentimento do usuário, apesar das medidas restritivas cabíveis”[2]. Assim, as medidas restritivas buscam, de maneira indireta, o incentivo à utilização das vacinas - sob a consequência de ocorrerem diversas restrições, a serem definidas por partes legítimas. Desta feita, mesmo com o julgamento, de dezembro de 2020, feito pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tema, agora, com o início da vacinação, muitas questões ainda são suscitadas, quais sejam: já que o STF definiu que a vacinação é compulsória, o sujeito que não quer a tomar vacina contra a Covid-19 estará cometendo um crime? Mais precisamente, quem não tomar vacina poderá incorrer no delito previsto no artigo 268 do CP? Além disso, já que o Supremo determinou que municípios, estados e a Federação podem determinar, ou não, a obrigatoriedade da vacina, dentre outras medidas preventivas à disseminação de doença contagiosa, é possível que em um município rejeitar a vacina seja crime, enquanto no outro não? Afinal, quais, de fato, são as consequências jurídicas cabíveis a quem não tomar a vacina? Posto isso, aqui, pretende-se analisar, em específico, a questão delineada no âmbito do Direito penal, que se refere à (im)possibilidade de quem se recusar a tomar a vacina em incorrer em algum delito. Precisamente, no artigo 268 do Código Penal (haja vista que, a priori, a impressão gerada é de que tal ato configura-se como uma infração à determinação do Poder Público, destinada a impedir propagação de doença contagiosa). Em primeiro lugar, para responder os questionamentos supra levantados, vale analisar que o artigo 268 do CP dispõe o seguinte: "Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro." Pois bem. Em que pese a decisão do STF, relativa à compulsoriedade da vacina, referir-se à legitimidade de uma medida sanitária determinada pelo poder público (seja na esfera federal, estadual ou municipal) destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa, não tomar a vacina ou recusar-se a tomá-la não significa incorrer em um delito, perante o Código Penal brasileiro. Isso porque há de se observar uma flagrante ilegitimidade constante no artigo 268 do CP, que se dá por dois motivos: (i) ofensa ao princípio da legalidade e (ii) ofensa ao princípio da intervenção mínima. No que tange à ofensa ao princípio da legalidade, vale apontar que esta ocorre pelo fato de o artigo 268 tratar-se de uma norma penal em branco, eis que a elementar do tipo se refere genericamente a uma "determinação do poder público", qualquer que seja ela. Corroborando tal entendimento sobre o dispositivo, o doutrinador Paulo César Busato assinala que "a configuração do tipo depende, portanto, do que seja a determinação do Poder Público, que certamente é outra norma, pelo que pode-se dizer que a pretensão conceitual de relevância constitui uma lei penal em branco" (BUSATO, 2017, p. 193). Consigne-se, por necessário, que a norma penal em branco é concebida, no Direito penal, como uma "técnica de reenvio", no sentido de que visa atender especificações e demandas de conteúdo específico de proteção – como é o caso da Lei de Drogas, em que há necessidade da portaria da ANVISA complementando o que se entende por droga ilícita no país. Contudo, no caso do artigo 268, Busato explica que, pela norma falar genericamente em determinação: caso o complemento da norma penal incriminadora venha por meio de fonte de nível hierárquico-legislativo inferior ao da lei federal, aparecerão todos os problemas tradicionais relativos às possíveis violações do princípio da legalidade, inclusive relativos à sucessão no tempo e de complementos da lei penal em branco (BUSATO, 2017, p. 193-194). Embora exista aplicabilidade de outras normas penais em branco no ordenamento jurídico brasileiro, há uma limitação de legalidade às leis penais em branco, bem como as questões que regem sua vigência no tempo em caso de revogação do complemento (SILVA JÚNIOR, DEZEM, 2007, p. 1289 - 1290). E, no caso do 268 do CP, por tratar-se de uma norma penal em branco demasiadamente aberta, com "n" problemas de complementação, há grande incerteza e abertura passíveis de incriminação, o que não se admite no Direito criminal. Em outras palavras, não há explicação na norma cogente de qual determinação se trata, podendo ser qualquer uma, versando sobre uma ação ou omissão qualquer, como: usar máscara, não fazer aglomeração, tomar vacina, etc. Ademais, tal dispositivo traz à tona um substantivo amplamente abrangente, qual seja: o conceito de Poder Público, em que todas as esferas de poder advindas do Estado restam abarcadas. Logo, dentre os múltiplos problemas de imputação possíveis que um dispositivo penal tão aberto traz, é possível pensar nos inúmeros casos de erros, plenamente escusáveis, que ocorreriam. A título de exemplo, pode-se dizer que o erro de tipo seria recorrente, porquanto a norma do artigo 268 não pode ser interpretada se o indivíduo não souber todas as determinações e portarias, de todos municípios, em qualquer esfera do poder público. O que evidentemente não é simples, tratando-se de um país continental, como o Brasil. Com efeito, ao abarcar qualquer determinação, de qualquer esfera do Poder Público, o artigo do Código Penal ora analisado acaba por ferir o princípio da legalidade, de sorte que a imputação a ser feita não comporta tamanha inespecificidade, em se tratando de matéria penal (de ultima ratio). Logo, a imputação penal, pelo artigo 268, resta inviável. E os problemas da norma supracitada não cessam na Legalidade. A violação ao princípio da intervenção mínima, por sua vez, fica evidente pela incerteza de lesão ao bem jurídico tutelado. Sobre este ponto, também explica o Procurador de Justiça Paulo César Busato que há: uma excessiva distensão do âmbito de incriminação absolutamente injustificada. Isso é facilmente identificado, na medida em que o tipo de ação permite que seja enquadrada formalmente, na pretensão conceitual de relevância, condutas que estatisticamente não podem ser consideradas perigosas, por exemplo, deixar de se vacinar contra o sarampo. Que isso possa ser crime, parece um verdadeiro disparate (BUSATO, 2017, p. 191) Ao verificar tal análise, pode surgir o raciocínio "mas deixar de se vacinar contra a Covid-19 é sim uma conduta a ser considerada perigosa"; contudo, o mencionado professor de Direito penal logo explica que: Em várias ocasiões, o legislador parece ter a pretensão de converter em crime qualquer classe de desobediência às medidas administrativas de organização social por ele promovidas. Ocorre que a incolumidade pública só seria afligida, ainda assim, em grau de perigo abstrato, estatístico, pela deflagração efetiva da doença contagiosa referida. (BUSATO, 2017, p. 191-192) Então, em que pese se tratar da vacina contra o coronavírus, a linha de raciocínio se mantém, eis que rejeitar a vacinação de uma doença, seja qual for, não apresenta uma lesão direta ao bem jurídico tutelado pelo Direito penal. Para compreender o porquê, deve-se observar que o bem jurídico que o artigo 268 visa defender trata-se da saúde pública – que, segundo Busato, trata-se de um bem jurídico pluri semântico, sendo que, na esfera penal, deve ser considerado enquanto um "interesse geral do estado", e não como um somatório de saúdes individuais. Logo, com o devido filtro hermenêutico, por ser o Bem Jurídico indisponível – ou seja, não distributível – a saúde pública está desvinculada da análise das saúdes individuais. Nas palavras de Celso de Mello, decano do STF, "o direito público subjetivo à saúde constitui sim um bem jurídico indivisível e que, portanto, não pode ser distribuído entre as pessoas individuais"[3]. Desta feita, Busato aponta que o artigo 268 gera uma proteção preventiva de um perigo abstrato estatístico, o que não permite a incriminação. Para o autor: A efetiva propagação de uma doença contagiosa pode ou não afligir a saúde ou a vida de um número indeterminado de pessoas, mas a simples violação de uma regra que visa conter tal propagação tem a possibilidade de resultar em absolutamente nada. Que isso seja castigado criminalmente, parece um verdadeiro exagero. (BUSATO, 2017, p. 192) Dito de outro modo, a infração de uma medida qualquer de determinação do Poder Público para prevenir propagação de doença contagiosa não pode gerar uma consequência no âmbito do Direito criminal, pela plena dificuldade de demonstração de lesão ao bem jurídico. Logo, pela inexatidão e inadmitida abrangência do tipo penal, bem como, segundo respeitada doutrina, por não gerar pontual lesão ao bem jurídico tutelado, o artigo 268 do CP não pode ser aplicado. Entretanto, é imprescindível destacar que a atitude de não se vacinar, além de ser algo plenamente condenável do ponto de vista racional e científico, gera sim consequências nos âmbitos administrativo, civil e, inclusive, trabalhista. Não é que não se concorda com a punição veemente a quem descumpre determinações do Poder Público que visam conter a propagação de doença contagiosa, mas defende-se, justamente, que a punição seja aplicada em adequada medida. De tal sorte, se a punição for na esfera penal, esta deve ocorrer por conta de uma lei específica - decorrendo de todo o devido processo legislativo -, apta a tratar pontualmente deste assunto, de modo que não viole princípios basilares do Direito penal, como o 268 do CP. Com efeito, é notória a importância de ações sanitárias preventivas à saúde pública, de tal modo que existem, e com muita razão, sanções por descumprimentos de medidas preventivas, como não aglomerar e não usar máscara (a exemplo das multas aplicadas às pessoas físicas e jurídicas). Assim como, conforme delineado em decisão do STF referente à compulsoriedade da vacina, há legitimidade nas restrições de direitos a quem recusa a vacinação; contudo, não em esfera criminal, pelo menos, não pelo artigo 268 do Código Penal, haja vista sua inaplicabilidade, conforme exposto. Posto isso, vale o atentamento, principalmente dos operadores do Direito, de quais são as searas do Direito aplicáveis para reprimir os descumprimentos de medidas sanitárias preventivas e quais leis de fato são aptas a gerar imputação penal. Roberta Tom Baggio Acadêmica do curso de Direito da FAE - Law Experience - no sétimo período, integrante do Núcleo de Estudos em Ciências Criminais (NECCrim) e do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (NUPEJÚRI). E-mail: [email protected] Udo Guilherme Lutz Acadêmico do curso de Direito da FAE - Law Experience - no quinto período, integrante do Núcleo de Estudos em Ciências Criminais (NECCrim) e do grupo de estudos FAE FEED (Finanças, Economia, Empresa e Direito). E-mail: l[email protected] REFERÊNCIAS: [1] Datafolha: 79% dos brasileiros querem se vacinar contra o coronavírus. CNN. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/01/23/datafolha-79-dos-brasileiros-querem-se-vacinar-contra-o-coronavirus> Acesso em: 02/02/2021. [2] BRASIL. Relator considera legítima vacinação compulsória, desde que sem medidas invasivas. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457366&tip=UN>. Acesso em 01/02/2021. [3] Tal citação pode ser encontrada no bojo do processo: RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, j. 12.09.2000, DJ 24.11.2000. BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte especial 2, v.3. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2017. SILVA JÚNIOR, José; DEZEM, Guilherme Madeira. Código Penal e sua interpretação. 8. ed. Coords. Alberto Silva Franco e Rui Stoco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
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