Longe de ser uma estrada rumo ao progresso, promovida sob as luzes da razão, a História é um encadeado de guerras e matanças, sendo asfaltada pelo sangue de pessoas vulneráveis, como já constatava Walter Benjamin (1940):
Ora, é sabido que por meio da ignominiosa escravidão, os portugueses puderam colonizar o território de Vera Cruz; no século XVI, não havia população suficiente para ocupar as terras descobertas mediante a expansão marítima, iniciada com o périplo do Cabo da Boa Esperança por Bartolomeu Dias, em 1488. Foram os africanos e seus descendentes, em conjunto com nações nativas escravizadas, equivocadamente denominados de indígenas - como se essa fosse a Índia - que as matas foram desbravadas, estradas e portos foram construídos, cidades foram erguidas, ao custo de muita dor e muito sangue. Apresadas no litoral africano, as pessoas escravizadas eram transportadas em navios negreiros (tumbeiros) que antecipavam as matanças dos campos de concentração nazistas, com toda sorte de sofrimentos. Os cativos eram aprisionados em construções precárias, insalubres, mal ventiladas, deparando-se com o escorbuto (mal-de-Luanda), a peste, a tuberculose, a fome e sede. As taxas de mortalidade eram imensas, cogitando-se de algo próximo a 20% do total das pessoas aprisionadas. (FRAGA FILHO, Walter; ALBUQUERQUE, Wlamyra R. Uma história do negro no Brasil. Fundação Palmares. 2006. p. 50). Aqueles que sobreviviam ao suplício, chegando ao solo brasileiro eram mantidos a ferros, obrigados a trabalhar em troca de comida - pouquíssima comida, quando comida havia. Eram vítimas de açoites, maus-tratos, sendo apartados dos próprios filhos, mães, irmãs, irmãos. Ganhavam apelidos jocosos, eram leiloados em feiras, como se fossem coisas, sendo tratados como propriedade! Por mais de 300 anos, a maior parte da riqueza produzida nessas terras foi fruto da exploração do suor e sangue dos negros que aqui aportaram, dos seus filhos e netos. Continua sendo! As mãos escravizadas extraíram ouro, colheram algodão, cana, cacau, foram amas e pajens, foram violentados e sacrificados por um racismo que, por absurdo, ainda teima em existir. Cogita-se que, no século XIX, o Brasil possuísse uma população de aproximados 3.818.000 pessoas, das quais cerca de 1.930.000 estavam escravizadas (FRAGA FILHO, Walter; ALBUQUERQUE, Wlamyra R. Obra citada, p. 67). Cuidava-se de uma sociedade estamental, de castas, racista, fundada no preconceito de origem, de etnia, de cor de pele. Note-se que o padre Antônio Vieira chegou a comparar, no ano de 1633, as condições de vida das pessoas escravizadas ao suplício do Cristo na Cruz, tamanha a dor infligida. Atente-se, aqui, também para a triste poesia de Castro Alves: I Ó mãe do cativo! que alegre balanças A rede que ataste nos galhos da selva! Melhor tu farias se à pobre criança Cavasses a cova por baixo da relva. Ó mãe do cativo! que fias à noite As roupas do filho na choça da palha! Melhor tu farias se ao pobre pequeno Tecesses o pano da branca mortalha. Misérrima! E ensinas ao triste menino Que existem virtudes e crimes no mundo E ensinas ao filho que seja brioso, Que evite dos vícios o abismo profundo ... E louca, sacodes nesta alma, inda em trevas, O raio da espr'ança... Cruel ironia! E ao pássaro mandas voar no infinito, Enquanto que o prende cadeia sombria! ... II Ó Mãe! não despertes est'alma que dorme, Com o verbo sublime do Mártir da Cruz! O pobre que rola no abismo sem termo Pra qu'há de sondá-lo... Que morra sem luz. Não vês no futuro seu negro fadário, Ó cega divina que cegas de amor?! Ensina a teu filho - desonra, misérias, A vida nos crimes - a morte na dor. Que seja covarde... que marche encurvado... Que de homem se torne sombrio reptíl. Nem core de pejo, nem trema de raiva Se a face lhe cortam com o látego vil. Arranca-o do leito... seu corpo habitue-se Ao frio das noites, aos raios do sol. Na vida - só cabe-lhe a tanga rasgada! Na morte - só cabe-lhe o roto lençol. Ensina-o que morda... mas pérfido oculte-se Bem como a serpente por baixo da chã Que impávido veja seus pais desonrados, Que veja sorrindo mancharem-lhe a irmã. Ensina-lhe as dores de um fero trabalho... Trabalho que pagam com pútrido pão. Depois que os amigos açoite no tronco... Depois que adormeça co'o sono de um cão. Criança - não trema dos transes de um mártir! Mancebo - não sonhe delírios de amor! Marido - que a esposa conduza sorrindo Ao leito devasso do próprio senhor! ... São estes os cantos que deves na terra Ao mísero escravo somente ensinar. Ó Mãe que balanças a rede selvagem Que ataste nos troncos do vasto palmar. III Ó Mãe do cativo, que fias à noite À luz da candeia na choça de palha! Embala teu filho com essas cantigas... Ou tece-lhe o pano da branca mortalha. Diante de tamanho sofrimento, não é de surpreender que tenham surgido inúmeros movimentos de resistência e enfrentamento: fuga, constituição de quilombos, atos de sublevação. Cuidava-se de atos de heroísmo, de busca por um pouco de liberdade, quando tudo parecia conspirar contra a própria condição humana. Nesse âmbito, coloca-se a temática dos Quilombos - palenques, maroons -, grupos organizados de negros fugidos, agrupados em busca da autopreservação. Ora,
Muitos quilombolas foram trucidados, com rituais sanguinolentos, a exemplo daquele promovido por Domingos Jorge Velho, indevidamente cultuado como herói em livros didáticos - é nome de rua! -, mas que retrata a perversidade de um modelo econômico fundado na exploração da vida alheia. Sem dúvida que Palmares foi o maior quilombo da América Latina, ocupando toda a Serra da Barriga, em Alagoas, e avançando até o cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco. Mesmo depois da derrocada de Zumbi dos Palmares, o quilombismo continuou, a exemplo das inúmeras fugas havidas no século XVII e XVIII, no contexto da exploração do ouro em Minas Gerais (quilombo do Alto São Francisco, dizimado por cerca de 400 homens, comandados por Antônio João de Oliveira); Quilombo da Chapada dos Negros, em Goiás (liderada por Bateeiro); Quilombo do Manso e Quilombo do Quariterê, em Mato Grosso; Quilombo de Iguaçu, no Rio de Janeiro, dentre vários outros. Depois do declínio do regime assumidamente escravocrata - com substituição progressiva por distintas formas de escravidão -, os afrodescendentes foram sendo submetidos a distintas formas de expoliação. Em que pese a alegada abolição da escravidão, atribuída a Isabel, em 13 de maio de 1888, os negros continuaram a sofrer toda sorte de racismo, perseguição, no âmago de uma sociedade de castas, com bem demonstrou o genial sociólogo Florestan Fernandes, ao versar sobre a integração do negro na sociedade de classes brasileira, sua tese para a cátedra da Universidade de São Paulo:
Como dizia Darcy Ribeiro:
Não é o caso de se promover, aqui, uma análise profunda das inúmeras variáveis sociais e histórias que estão na base de uma comunidade política racista, homofóbica, machista, impregnada de um elevado caldo de violência, a exemplo dos linchamentos cotidianos, das matanças dentro e fora de presídios, e na relação entre Estado e sujeitos. Cuida-se de fato notório que, nessa modernidade tardia brasileira, muitas conquistas iluministas ainda são novidade. Releva apenas ter em conta, nessa deliberação, que há uma injustiça histórica a ser remediada, pela presente e futuras gerações, sem o que jamais se poderá cogitar de Estado de Direito, de democracia ou de justiça. Há uma injustiça histórica, convém repetir. Você pode perguntar: "que culpa tenho eu?" "que culpa temos nós?" Talvez não tenhamos culpa, dado que a responsabilidade histórica não pode ser concebida como uma espécie de pecado natural, transmitida, desde Adão, geração após geração. Mas, se culpa talvez não haja, há responsabilidade: responsabilidade para não deixar que o mundo continue sendo o que é: esse espaço da vilania, em que, sob novas roupagens, com novos eufemismos, os navios negreiros de ontem continuam a transportar a vida matável de hoje.... O que temos com isso? Tudo. E se alguém não entende assim é porque, lá no fundo, talvez não se importe muito e isso não lhe apoquente. Sentir vergonha do próprio passado é o primeiro passo - pequeno passo, é verdade - para impedir que ele se repita, como repetidamente tem ocorrido nessas plagas. Flavio Antonio da Cruz Juiz Federal Doutor em Direito do Estado pela UFPR Mestre em Direito Econômico pela PUC/PR Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Curitiba Referências: BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. 1940. FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. Volume I. Ensaio de interpretação sociológica. 3. ed. São Paulo: Globo, 2005 FRAGA FILHO, Walter; ALBUQUERQUE, Wlamyra R. Uma história do negro no Brasil. Fundação Palmares. 2006 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 Comments are closed.
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