Há quem diga que para o advogado criminalista não compensa perder tempo estudando dogmática, sociologia, filosofia e similares. Que as teorias da ação, do dolo, da culpabilidade, das funções da pena ou mesmo a criminologia são meros apêndices sem valor prático. Muitos destes defendem que seria melhor gastar tempo estudando como pensa determinado juiz, como decidem determinadas varas ou qual a “linha” adotada por determinada turma recursal.
Não há dúvida de que estes estudos mencionados por último tenham valor fundamental na hora de “jogar o jogo” do processo penal, como bem elucida Alexandre Morais da Rosa. Porém, não é possível concordar com a visão de que as pesquisas e discussões teóricas mencionadas no início não produzam efeito. Para reforçar essa impossibilidade basta discernirmos que por trás das decisões, das “linhas adotadas”, existe sempre um arcabouço teórico de sustentação. Não raro se observa tristemente que muitos procuram selecionar e aplicar apenas a “doutrina” que permita legitimar seu posicionamento, trazido de muito tempo pela formação social, por sua visão de mundo, por seu comprometimento institucional ou até acadêmico. Neste sentido vale a pena (re)pensar o conceito de ideologia. Em que pese muitos acreditarem que este se diluiu irremediavelmente não é isso que um estudo mais cuidadoso aponta. Verdade é que se faz necessário uma revisão crítica do que pode ser compreendido por ideologia, já que foram muitos os que sobre ela escreveram e, sem sombra dúvida, a banalização deste significante fez com que perdesse força descritiva. Na recuperação do conceito clássico de ideologia procura-se por características que permitam identificar os traços permanentes em sua concepção e assim depurar seu significado prático para as ciências sociais. Muitos foram os autores que contribuíram neste sentido. Destaque para Gramsci, Raymond Williams e Bendix. Este último foi muito feliz em sua estratificação de um ponto fundamental, uma pedra de toque, um basilar a partir do qual se pode pensar o conceito de ideologia: “as ideias não podem nem devem ser tomadas pelo seu significado manifesto, mas analisadas em termos das ‘forças’ [sociais] que estão por trás delas”[1]. Partindo dessa premissa é possível estudar as adaptações que o conceito sofreu dentro mesmo dos próprios escritos de Marx e Engels, somados à contribuição trazida pelos outros autores mencionados no parágrafo anterior. Em especial com Gramsci ocorre uma virada de significação importante, saindo de um conceito negativo para um positivo, ou seja, de “falsa consciência” para “estrutura ideológica” capaz de operar o conhecimento e o reconhecimento do sujeito no espaço social. Também com Gramsci se passa a compreender a ideologia não mais como fenômeno mental, para se perceber nela uma “estrutura material”.[2] Esta virada permite uma apreciação mais profunda da capacidade fundacional e modificadora que a ideologia possui. Mesmo na leitura da obra do próprio Marx (especificamente o 18 Brumário) fica claro que a ideologia não se restringe a mecanismos intrapsíquicos ou apenas filosóficos, mas opera processos de transformação da realidade através de vários simbolismos políticos. Dentro dessa concepção de ideologia a contribuição de Bourdier é extremamente relevante. O autor trabalha os sistemas simbólicos de reprodução da ideologia como “estruturas estrurantes estruturadas”. Significa dizer que todos os mecanismos ativos de construção de conhecimento (conceitos) sobre o mundo devem ser vistos como meios operacionais de coesão social por intermédio da universalização desses conceitos (englobados aqui valores, tradição, cultura) e ocultação de interesses, cristalizando uma “consciência social” (Engels). Estes mecanismos são em si mesmos estruturados, uma vez que só possuem poder estruturante quando conseguem minimamente se sobrepor a outras ideologias, ainda que com estas guardem relações dinâmicas de troca e, invariavelmente, de contradição.[3] Essa brevíssima análise do que pode ser entendido por ideologia na atualidade ajuda a perceber a relevância do estudo da dogmática, das funções da pena, da sociologia do direito penal, da filosofia política e tantos outros aportes teóricos que possibilitam entrever o real significado por trás das ações e decisões voltados ao exercício do poder punitivo. O próprio discurso da “prática” supostamente desconectada de uma consideração teórica de base funciona em si mesmo como um reforço da ideologia dominante, uma vez que pretende de alguma forma anestesiar a capacidade crítica que o estudo e a discussão dão ensejo. Feitos estes apontamentos, fica claro que só há um caminho para o avanço: estudar! Estudemos, pois! Paulo R Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Mestrando em Direito Pós-graduando em Direito Penal, Processual Penal e Criminologia Referências: BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, Portugal: Edições 70 Lda., 2011 CODATO, Adriano. O conceito de ideologia no marxismo clássico: uma revisão e um modelo de aplicação. Revista Política & Sociedade. v 15, n. 32 (2016) [1] BENDIX, Reinhard. In: CODATO, Adriano. O conceito de ideologia no marxismo clássico: uma revisão e um modelo de aplicação. Revista Política & Sociedade. v 15, n. 32 (2016); p. 313. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/45427/32083. Acesso em 14/03/2017. [2] Idem, p. 328 [3] BORDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, Portugal: Edições 70 Lda., 2011. pp. 4-5 Comments are closed.
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