Eugenio Raúl Zaffaroni é um autor cuja importância para o direito penal e criminologia na América Latina dispensa comentários.
Como pesquisador e escritor seu trabalho pode ser descrito como um dos pilares sobre os quais a atual criminologia crítica latina se sustenta. Na obra Em Busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal Zaffaroni oferece um apanhado de diversos conhecimentos deste ramo do saber sem, contudo, cair no uso rotineiro de descrições históricas estéreis ou resumos bibliográficos. O jurista argentino constrói uma tese de deslegitimação do sistema penal, com fundamento no pensamento criminológico crítico. Para o autor sistema penal é “uma complexa manifestação do poder social”. Com esta definição Zaffaroni demonstra seu intuito de afastar-se da visão reducionista que percebe no sistema penal apenas o que este possui de aparentemente lógico dentro da estrutura dos institutos de direito reconhecidos. Sistema penal não só abrange os mecanismos visíveis de coerção estatal, mas inclui também o aparato teórico que o sustenta ou que procura representá-lo como legítimo. É precisamente investindo contra esse aparato teórico legitimador que Zaffaroni elabora Em Busca das Penas Perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Num primeiro passo em sua iniciativa de desconstrução do véu legitimador do sistema penal ele demonstra a necessária separação entre legalidade e legitimidade. A seguir, retrata o fato de que nem mesmo a legalidade é obedecida pelos aparatos institucionais do sistema penal na América Latina. Dando sequência elucida as matrizes sobre as quais a elaboração de um discurso deslegitimador imprescindível pode ser elaborado – crítica ao direito, análise do exercício do poder, preocupação jus-humanista e crítica criminológica. Daí em diante Zaffaroni passa a descrever as fontes teóricas sobre as quais a deslegitimiação é possível. Parte da crítica ao discurso antropológico anacrônico, sistematizado nos paradigmas contratualista, organicista e sistêmico, oriundos de um saber calcado no positivismo, na filosofia kantiana, hegeliana e neoidealista. Em seguida é oferecido ao leitor a visão deslegitimante marxista, com seus desdobramentos e adaptações. Autores fundamentais analisados: Pasukanis, Baratta, Quinney, Pavarini e outros. A próxima análise se volta às teorias interacionistas e fenomenológicas, partindo do labelling approach, tida pelo autor como a mais claramente deslegitimante das teorias criminológicas. Na sequência a obra de Foucault é brevemente ponderada naquilo em que permite uma nova visão sobre o poder; seus mecanismos, suas consequências, suas manifestações e a dificuldade em criar formas contínuas e ordeiras de oposição a este. No próximo momento marcante da obra de Zaffaroni são delineados os discursos que procuram oferecer uma resposta (solução) à deslegitimação apontada na seção anterior. De forma resumida podem ser apontados: discursos de “negação” do problema e tentativa de “salvamento” das funções tradicionais da pena, através da fuga para o retribucionismo como “necessário” para a paz social. De acordo com o autor este discurso não pode ser classificado como teórico uma vez que não se pauta no rigor metodológico de estudo através do qual o conhecimento sociológico ofereceu as teses de deslegitimação, mas configura-se em mera “atitude” na qual se baseiam aqueles que procuram relegitimar o discurso punitivo. Esta atitude é vista em especial naqueles que possuem um vínculo (funcional primordialmente) com as agências estatais de repressão, operando nestes como tentativa de afastamento da disfunção cognitiva entre sua atuação e o conhecimento mínimo dos apontamentos feitos na seção anterior (deslegitimação). Basicamente esta “resposta” se traduz numa burocratização da função de punir, exemplificada na figura do “bom torturador” que se limita a cumprir sua tarefa como um profissional correto, passando a responsabilidade pelos efeitos produzidos para um órgão que figura como seu “superior”. Outro discurso relegitimante é concentrado na visão sistêmica ou funcionalista da sociedade. A principal característica deste discurso é a preocupação com o “consenso” e com a “coerência” do corpo social. O elemento fundante desta forma de pensar é a confiança cega no “progresso”. Desta forma, o discurso sistêmico não tenta negar a falsa legitimidade do sistema penal, mas aceita esta como “necessária”, como “inevitável” para o sucesso do projeto social. Há ainda um discurso de política criminal que procura relegitimar o sistema penal. Este pode ser observado em duas vertentes: o direito penal mínimo e o projeto de abolicionismo penal. Em que pese estes se voltarem contra a continuidade do uso do sistema penal do modo como atualmente opera, permitem a conclusão de que por hora o sistema vigente é legítimo e assim será até que uma política criminal nos moldes de direito penal mínimo seja definitivamente implantada. O autor não desconhece o fato de que essas construções teóricas fazem muito por permitir uma crítica ao sistema penal de forma pungente, produzindo resultados completamente diferentes dos discursos anteriormente analisados. Ele apenas os elenca dentro das respostas de relegitimação para desnudar a complexidade da proposta de enfrentamento da intrincada base fundante do sistema penal. Assim, na conclusão deste ponto Zaffaroni relaciona as principais carências das respostas político criminais aventadas em operar uma significativa mudança no cenário de continuidade da violência perpetrada pelo sistema penal, vista pelo autor como um genuíno mecanismo genocida. Indo adiante propõe o jurista argentino um estudo sobre a possibilidade de uma resposta marginal à deslegitimação. Elabora neste tópico um reforço da demonstração da necessidade e da urgência dessa proposta. Depois apresenta os principais desafios a este intento e por fim oferece uma análise das possíveis práticas de política criminal calcadas no Realismo Marginal - uma nova visão de intervenção mínima. Como destaca o autor a ideia é prover um saber que permita sair “da impotência crítica”. No último capítulo de sua obra Zaffaroni tenta produzir as bases para um discurso jurídico-penal não legitimante. Nesta linha oferece uma proposta para o exercício atual da jurisdição penal calcada justamente no reconhecimento da deslegitimação. Destacam-se os seguintes pontos nesta sua proposta: uma nova visão (realista) dos institutos de direito penal clássico – tipicidade, antijuridicidade e, principalmente, culpabilidade. Esta nova visão objetiva fornecer “limites para irracionalidade”. Em seguida preconiza-se a efetivação e fortalecimento das garantias penais, fundamentalmente aquelas previstas nas constituições dos Estados de Direito. Calca-se sua proposta ainda na proibição de restrição disfuncional aos direitos humanos (efetivação da deslegitimação da guerra). Outro ponto que merece ênfase neste último capítulo é a apresentação da teoria da culpabilidade por vulnerabilidade como forma de compensação mínima à seletividade penal deslegitimante. Sobre este tópico, pretendo escrever um artigo específico. Por tudo o acima exposto e ainda mais por aquilo que não pode ser delineado neste espaço por sua inerente limitação recomenda-se fortemente a leitura de Em Busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal, de Eugenio Raúl Zaffaroni. Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Referência: ZAFFARONI, Eugenio R. Em Busca das Penas Perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. de Vania Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Renan, 2014. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |