Introdução Teórica à História do Direito é um livro voltado para o estudo da metodologia utilizada na escrita da história “geral” e as consequências do uso desta metodologia para a visão predominante sobre a história do direito.
De modo bem ordeiro e concatenado Ricardo Fonseca conduz o leitor para uma apreciação clara sobre a maneira através da qual se desenvolveu o uso da história como um tipo específico de saber. Fonseca esclarece a questão da metodologia como problema central para compreensão das diferentes abordagens com que se estudou até aqui o passado e suas influências sobre o presente. O autor elabora uma excelente descrição dos pressupostos espistemológicos do positivismo, logo após identificar raízes do pensamento positivista (histórico, ao menos) não na filosofia, como de costume, a partir do pensamento de Augusto Comte, mas no romantismo alemão, que unifica homem e natureza e cria o conceito de “espírito do povo”, incorporando em grandes nomes da história o devir, encarando-os como os “portadores” de tal espírito. Ao elencar os pressupostos do positivismo Fonseca consegue, de modo bastante didático, descrever as bases dessa forma de se trabalhar o conhecimento que deitou raízes tão profundas no ocidente. Na explanação trazida pelo autor o positivismo se estrutura a partir destes fundamentos: (a) a realidade é dotada de exterioridade. Este pensamento é coincidente com a vertente “realista” da filosofia, que entende que a realidade (o objeto) independe do sujeito e que, para que um conhecimento seja conceituado como científico, o pesquisador (sujeito) deve postar-se “fora”, sem interferir no objeto, afim de não “subjetivar” sua análise do mesmo; (b) o conhecimento é a representação do real. Para explicar este pressuposto o autor traz uma ilustração preciosa: um artista plástico, ao pintar uma paisagem, para o positivismo, deveria retratar exatamente o que está visualizando, de modo a permitir a um terceiro uma percepção que seja como o reflexo de um espelho e não a “mera representação” da paisagem pelo artista. Seria mais apropriado dizer que, para o positivismo, o pintor “apresenta” a imagem, capturando-a em sua totalidade e de modo absolutamente neutro; (c) há uma dualidade radical entre fatos e valores. Os fatos pertencem ao mundo dos objetos e os valores ao mundo dos sujeitos que, como se vê no ponto “a”, são rigorosamente separados. Dentro das ciências humanas esta visão trará uma cisão no próprio sujeito, uma vez que o homem ocupará tanto a posição de observador (sujeito - cientista), como de objeto do saber. Trazendo estes pressupostos para as ciências humanas, o autor demonstra seu efeito para a abordagem da história. Há uma correspondência direta, de modo que, para as ciências humanas, dentro da visão positivista: (a) a sociedade é regida por leis naturais, eternas, independentes da vontade humana e na vida social reina uma harmonia natural. Assim, descobrindo as leis que regem a sociedade (tais quais as leis da física regem a natureza) podemos tornar seu estudo tão seguro quanto são as ciências naturais; (b) a sociedade pode ser epistemologicamente assimilada pela natureza, sendo estudada pelos mesmos métodos e processos. Existe a mesma possibilidade de exterioridade em relação ao objeto de estudo. Esta forma de analisar os fatos sociais é resumida na célebre frase de A. Comte a respeito do método sociológico, em que este dita que “a primeira regra é considerar os fatos sociais como coisas”; (c) as ciências naturais devem limitar-se a explicações causais de forma objetiva e neutra, livre de juízos de valor, ideologias, noções prévias ou preconceitos. Percebe-se aqui a forte crença na possibilidade ilimitada da razão em obter um conhecimento objetivo “puro” dos objetos do conhecimento, inclusive o homem ou a vida social. Leopold Von Ranke é apontado como o principal expoente desta metodologia, quando transportada para a “ciência da história”. Com base em seus ensinos se pode verificar como se traduzem, na historiografia positivista, aqueles pressupostos: (a) não há nenhuma interdependência entre o sujeito conhecedor (historiador) e o objeto do conhecimento (fato histórico); o historiador escapa a qualquer condicionamento social, o que lhe permite ser imparcial na percepção dos acontecimentos. Separação típica entre fatos e valores; (b) a história existe em si, sendo possível “espelhar” o passado a partir de um método regulamentado; (c) a relação cognitiva do historiador com o objeto de estudo é do tipo mecanicista, passiva. O historiador não deve “recriar” a história, mas tão somente “apresenta-la”, “refleti-la”; (d) incumbe ao historiador não julgar o passado. Vige o princípio da neutralidade axiológica do cientista. No caso do historiador isso significa que deverá “descrever o que realmente se passou”. Pode-se perceber como o positivismo gera assim uma espécie de dogmatismo histórico, resultando em diversas distorções, em especial ao “projetar sobre o passado categorias sociais e mentais do presente, fazendo do devir histórico um processo (escatológico) de preparação da atualidade”[1]. No campo do direito a influência da Escola Positivista da história é visualizada pelo autor na “glorificação da positividade jurídica vigente”. A história acaba por ocupar o lugar de legitimadora do direito presente. Os conceitos adquirem validade transtemporal por serem validados pela tradição. A história das normas é feita de modo a se vislumbrar um caminho natural que conduziu até o presente, fazendo parecer o direito atual como o “melhor direito” possível, já que produto de um “progresso” histórico, um desenvolvimento cumulativo de saberes. Os historiadores positivistas do direito dão muito valor aos “grandes eventos”, “grandes personagens” e demonstram uma preocupação quase obsessiva com a autenticidade das fontes de pesquisa, só classificando como “históricos” os fatos que possam ser provados por documentos oficiais e registros de órgãos públicos. -- Partindo para o estudo da Escola dos Annales, também conhecida como Escola Francesa, o autor demonstra a ruptura que esta trouxe com as concepções positivistas analisadas anteriormente. Isso se verifica primordialmente na ênfase dada pela Escola às “permanências”. Com isso fica para trás a “história narração”, para se iniciar a “história problema”. As fontes se multiplicam. O uso de estatísticas se torna valioso. A história deixa (em certa medida) de ser política para se tornar “social”, originando uma profusão de histórias, abordando como objeto de estudo as mais diversas variantes temáticas. Há uma ênfase na história estrutural, universal, de longa duração. No campo da história do direito a Escola do Annales destaca a importância do estudo da linguagem. Também inaugura uma atenção relevante para análise das questões das relações de poder. O exercício do poder deixa de ser visto como algo ligado unicamente à atuação central do Estado, podendo ser percebido em suas manifestações marginais. As questões jurídicas passam a ser problematizadas sem estarem adstritas à relação “súdito-Estado”. O próprio direito passa a ser tido como um fenômeno que não pode ser estudado somente a partir das normas positivadas, mas precisa também ser compreendid a partir de um rol significativo de outras manifestações, como a doutrina e o costume. A realidade jurídica não deve ser absorvida como imanente da superfície das normas, mas da profundidade das relações sociais. Nas palavras de Grossi:
-- A próxima análise do autor se debruça sobre o materialismo histórico marxista. Este precisa ser analisado a partir de sua proposta, que é explícita. A historiografia marxista se quer participativa. Que fornecer um elo entre o passado e o presente. Quer dar ao gênero humano, em sua evolução histórica, um motor: a produção e transformação da natureza pelo homem. Nas palavras de Marx: “os próprios homens começam a se diferenciar dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida”[3]. Dentro desta concepção se desenvolvem conceitos próprios desta corrente, fundamentais para compreensão de sua visão histórica. Entre eles os conceitos de relações de produção e forças produtivas, juntamente com o elo entre eles: o modo de produção. Este, segundo o autor, talvez seja o conceito central da análise histórica do marxismo. Também se desenvolvem os conceitos de classe social e ideologia. Para Marx são as contradições da vida material que alteram a base produtiva dos modos de produção, alterando também, consequentemente, as superestruturas, entendidas como o conjunto de representações dos homens. Segundo Fonseca, o grande mérito da concepção marxista reside em sua capacidade de ligar o todo social, captando a totalidade onde se inscreve a história dos homens. O efeito que o materialismo histórico possui sobre a história do direito é de magnitude gigantesca. Conforme a visão de Marx, “as relações jurídicas e as formas de Estado não podem ser explicadas por si mesmas (...) estas razões têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência”[4]. A leitura do impacto do marxismo sobre a historiografia do direito é revelada primeiramente pelo autor a partir da visão trazida por E. P. Thompson. Dentro de suas observações cabe aqui destacar a apreciação que faz este de que a lei é uma “arena central de conflito”. Ela serve, segundo Thompson, justamente para mediar as tensões entre classes. Percebe-se que Thompson procura retirar a visão mecanicista, unificada em torno da submissão do direito à economia, presente em algumas visões (distorções) do pensamento marxista. O direito possuiria, segundo o autir, certa dose de autonomia legítima. Esta teoria de Thompson, segundo Fonseca, teve enorme sucesso e se enraizou em nossos país. Para que não se continue a perpetuar os maus entendidos que isso trouxe, Fonseca apresenta três advertências importantes: (a) Thompson escreveu no contexto da “Common Law”; (b) é preciso cuidar com o significado da palavra “Lei” no contexto da escrita e no de aplicação dos enunciados de Thompson; (c) embora Thompson “libere” o direito das amarras da economia, continua enxergando no direito um “instrumento”, uma “retórica”, que poderá servir aos propósitos de determinada classe. -- A seguir, Fonseca volta sua atenção para análise do pensamento de Foucault e sua contribuição para uma visão crítica da historiografia. É partir da provocação foucaultiana, inclusive, que o autor trará suas breves conclusões. Esta parte da obra, que ocupa cerca de 50 páginas será reduzida (arbitrariamente, como sempre acontece em uma resenha) em algumas reflexões diretas, com o propósito de não estender esse texto em demasia. Pode-se dizer que a obra de Foucault demonstrou que a história tradicional: - distorce o objeto de reflexão, uma vez que enxerga o passado com os óculos do presente; - distorce o conceito que se tem do direito, uma vez que este é visto como “naturalizado pela história”, “legitimado pela tradição”, baseando-se num conceito central: o progresso. Para remediar esses problemas, Foucault propõe: - relacionar as práticas epistêmicas com o sujeito – o homem como sujeito do saber; - relacionar as práticas disciplinares que objetivam e dividem o sujeito; - relacionar as práticas subjetivadoras do sujeito consigo mesmo, de modo a constituí-lo como sujeito moral. Foucault demonstra o nascimento da “era da história”, em que o conhecimento não serve mais para descrever ou representar, mas para compreender as coisas em sua temporalidade. Ele também identifica as relações de poder como o grande propulsor desta era e revela uma intrínseca relação entre os discursos e as práticas de poder. Com isso, o filósofo francês faz transparecer a precariedade do nosso saber, já que este não passa de uma específica configuração determinada e determinável pelo tempo e por estas relações de poder. O filósofo ainda contribui de forma indelével para historiografia por seu elogio a descontinuidade e a ruptura, defendendo a ideia de que a “história de um conceito não é a de seu refinamento progressivo, de sua racionalidade continuamente crescente (...) mas de seus diversos campos de constituição e validade, a de suas regras sucessivas de uso...”[5] No campo do direito as visões de Foucault tiveram um impacto significativo, revelando o modo como a verdade e o processo se relacionaram em diferentes períodos. O filósofo trabalha o surgimento do saber científico, tributário da pura razão, a partir do séc. XVI, demonstrando que ele se tornará a forma absoluta de descoberta da verdade, calcada na verificação e no testemunho. No decorrer dos séculos essa forma de se tratar o discurso de verdade sofre ainda uma alteração relevante a partir do século XIX, com a substituição do inquérito pelo exame. Neste ponto ele identifica a existência, sempre, de duas verdades, assim como a inclinação humana pela escolha apenas daquela que lhe é interessante e confortável. Esta contribuição é valiosa na medida em que se presta a demonstrar que a pretensão do direito (com o processo em especial) em ser o meio racional de descoberta da verdade, de respostas convictas, precisa ser, não relativizado, mas permeado por questionamentos que tornem este saber mais modesto e mais disposto ao diálogo com outros saberes. -- Fonseca traz então o desfecho de sua obra com a noção de Estado de segurança de Foucault e com um capítulo destinado ao pensamento de Walter Benjamin. Benjamin trabalha a questão da temporalidade e da importância da “experiência”, em detrimento da cronologia (vivência) típicos da história dos “dominadores”. Ele demonstra como a história, do modo como costumou ser contada, é a história dos vitoriosos, dos vencedores, gerando para estes uma perpetuação de sua versão do progresso. Conforme Fonseca coloca belamente, para Benjamin não há um monumento de cultura que não seja também um monumento de barbárie. A cultura (e por pressuposto a história) é permeada por esta lógica de exclusão. Assim a tarefa da historiografia hoje deve ser de envergadura política e ética, uma tarefa de rememoração. Para o direito as visões de Foucault e de Benjamin trazem um resultado fulminante: revelam que não se pode acolher nenhuma explicação histórica do direito que apresente o passado ocidental como uma tranquila justaposição das tradições romanas, do direito canônico e do direito germânico, chegando até o presente. Há de se perceber a existência perene de todo um “direito” que nunca, ou raramente, vem à tona na história tradicional ou nos discursos de saber jurídico, “manufaturada” nos guetos, nas pequenas localidades, nos pequenos grupos, e que devem servir para romper a visão monística do direito. Acima de tudo, esta análise crítica da história do direito precisa dar voz aos que foram vencidos, porque só assim se fará a reapropriação da história, propiciando o genuíno encontro entre esta geração e as que já existiram. Paulo R Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Referências: FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012 [1] HESPANHA, António Manuel In: FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012. p. 60 [2] GROSSI, Paolo. In: FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012. p. 86 [3] MARX, Karl. ENGELS, F. In: FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012. p. 92 [4] MARX, Karl; ENGELS, F. In: FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012. p. 101 [5] FOUCAULT, Michel In: FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012. p. 122 Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |