O livro “Medo Líquido” é inquietante. Provavelmente esta seja a melhor palavra para descrevê-lo. Seu conteúdo nos leva a avaliar uma séria de estruturas de nossa sociedade e perceber que se desenvolveram de forma a criar, ampliar, fortalecer e diluir a sensação de insegura e ansiedade em nosso aparelho psíquico.
Bauman trabalha nesta obra cinco grandes abordagens acerca do medo na modernidade líquida. A primeira destas diz respeito ao pavor da morte. O autor constrói, a partir de uma interessante análise dos reality shows, em voga em sua versão “contemporânea” nas duas últimas décadas, uma percepção da fragilidade humana causada pelo “vício em civilização”. Este nos acostuma a um estilo de vida repleto de facilidades e soluções imediatas, não criativas e não dependentes do desenvolvimento de habilidades de resistência, que desembocada numa insegurança generalizada diante do sentimento de incapacidade para lidar com problemas complexos ou incertezas. Conforme o sociólogo elucida, o medo mais presente no cotidiano das pessoas hoje não é do tipo causado por ameaças diretas, medo este compartilhado por todas as criaturas vivas. O sentimento de insegurança que acompanha o ser humano rotineiramente na modernidade líquida pode ser caracterizado como um “medo de segundo grau”, ou seja, “um rastro de uma experiência passada de enfrentamento de ameaça direta – um resquício que sobrevive ao encontro e se torna um fator importante da modelagem da conduta humana mesmo que não haja mais uma ameaça direta à vida ou à integridade”.[1] O elo criado entre os reality show e este tipo de medo é a constante preocupação com a possibilidade de exclusão. Bauman revela o modo como as relações humanas em nossos dias, marcadas pela fragilidade, deixaram de fornecer um “porto seguro” onde se pode encontrar alívio perene para as ansiedades, convertendo-se em palco para a ampliação da insegurança, pautada pelo receio de ser excluído, num prelúdio da “exclusão final”, ou seja, a morte. Da mesma forma em que os competidores dos reality shows gastam boa parte de seu tempo e suas energias tentando evitar serem excluídos do programa, elucubrando artimanhas e armadilhas aptas a fazerem com que o outro sofra o temido desfecho, as pessoas em geral passam boa parte de sua vida agindo para evitar as muitas formas de exclusão perpetradas pela modernidade líquida: a exclusão social (advinda da condição financeira ou como “herança”); o rompimento de relações de afeto ou profissionais; eliminação nos diversos testes de aptidão (vestibular, entrevista de emprego, concursos e semelhantes); e, por fim, a doença e a morte. Bauman revela também um aumento vertiginoso no consumo de “advertências globais”. Constantemente são veiculados “os setes sintomas do câncer”, “os cinco sinais da obesidade infantil”, “os dez alimentos que mais elevam o colesterol”, “os carros mais seguros do ano”, “os bairros mais protegidos”, “os dez passos pata evitar o roubo de seus dados na internet” e uma longa lista de alertas divulgados de forma constante e dramática através dos meios de comunicação. Correspondente a isso, surge e se alastra em nossos tempos, um multifacetado mercado do medo. Vendendo desde casas em condomínios com altos muros e cercados com toda uma parafernália digna de campos de concentração; passando por serviços de vigilância 24h; carros blindados; alimentos sem gordura, sem sal, sem glúten, sem açúcar, sem conservantes, sem sabor; aulas de artes marciais (despudoradamente chamadas de técnicas de defesa pessoal); armamento de todas as formas, tamanhos e efeitos; apólices de seguro para quase toda atividade humana e as mais criativas formas de se comercializar o que ficou conhecido como “segurança financeira”, com especialistas prontos a lhe explicar com requintes de detalhes onde, como, quanto e quando investir para obter o paraíso da tranquilidade no futuro. Voltando para o medo da morte, Bauman traz uma análise interessante sobre as formas como a humanidade procurou, ao longo das eras, minimizar o “medo original”, o medo da morte. O autor define:
Dentro desta perspectiva, Bauman reduz os estratagemas perpetrados neste intuito a duas categorias: a primeira se volta para tentativa de negar a finalidade, aparentemente incontestável, da morte. Surge aqui uma subdivisão. Há os que empreendem esta tentativa vislumbrando possibilidades de continuidade da vida, nas mais diversas formas, após o evento da morte. Os exemplos mais comuns se fundam nos ensinos religiosos voltados à reencarnação, aventuras de uma “alma” imortal e semelhantes. De um outro lado há a perspectivas dos que tentam negar a finitude através das contribuições realizadas pela pessoa em prol da humanidade. Neste sentido, pessoas que trabalhem arduamente em vida para o benefício das gerações futuras “nunca morrem”, dado que seus atos, escritos, lições, descobertas, permanecem válidos e/ou benéficos para posteridade. Ambas as soluções enfrentam obstáculos, retratados pelo autor. Um segundo estratagema para lidar com o medo da morte, que segundo o autor se tornam a regra na modernidade líquida, se volta para a tentativa de afastar a preocupação com a eternidade. Isso é feito com a desconstrução da morte ou com sua banalização. A desconstrução se configura na tentativa, típica da promessa moderna de compreensão pela razão, de elucidar as causas da morte e, assim, preveni-la ou adia-la. Não de pode negar a presença significativa desta forma de pensamento em nossa rotina. Freud já havia demonstrado que “temos o hábito de enfatizar a causalidade fortuita da morte, revelando nosso esforço de reduzir a morte de necessidade à oportunidade”. Com isso, se enfatizam os motivos determinantes que levaram ao evento morte. Significa dizer que quando a morte ocorre, não se pergunta sobre o que aconteceu, mas por quê aconteceu. Atestados de óbito precisam delimitar, categorizar, explicitar a causa que levou à morte. Se afasta a condição de normalidade da morte, substituindo-a pela noção de evitabilidade. Já a banalização ocorre, em acompanhamento à tendência de desconstrução, através de diversos mecanismos sutis. A uma, a morte possui hoje simulacros. O divórcio pode ser um simulacro da viuvez. A fragilidade dos relacionamentos humanos, suas consequências, como já explicitado, pode ser visualizada como uma experiência de morte ensaiada. A banalização ocorre também no modo como a morte é retratada pela indústria do entretenimento e na forma de divulgação midiática das mortes “rotineiras”. Um segundo grande tópico abordado por Bauman nesta obra é o “mal”: a iniquidade e perversidade humanas. Segundo o sociólogo “o medo e o mal são irmãos siameses”. Ele demonstra como a noção de existência de um “mal”, desvinculada da noção metafísica e desacoplada de sua relação umbilical com o “crime”, residem no pensamento dos homens como uma fonte fantasmagórica, inexplicável, nebulosa, do medo. Não se consegue definir o que o “mal” é, quando separados das categorias mencionadas, mas se consegue senti-lo, percebê-lo, temê-lo. A imprevisibilidade do momento de manifestação do mal é uma das causas principais de ansiedade na modernidade líquida. Bauman cita o terremoto de Lisboa de 1755 como o marco temporal em que se deixou de olhar as catástrofes como desastres “naturais” para serem encarados cada vez mais como desastres “morais”, ou seja, de modo a colocarem sempre um ser humano, ou um grupo de seres humanos, como responsáveis pelos ocorridos. Esta mudança de percepção causa um desconforto e insegurança generalizados, já que revela uma capacidade para o “mal” ampla e diversificada. Seja o mal causado pela negligência estatal em prover condições ou ajuda para evitar desastres ou sanar seus resultados (p. ex. furação Katrina, nos EUA), sejam os horrores perpetrados nos campos de concentração, nos Gulag, Guantánamo e semelhantes, o que se observa é uma capacidade de iniquidade que nos coloca em posição ininterrupta de desconfiança. Esta alimenta o medo numa roda viva sem saídas simples ou alívios promissores. Bauman trabalha ainda o horror do inadministrável. Este se configura nas consequências trazidas pelo pensamento moderno de progresso, pautado no avanço tecnológico sem uma preocupação prática genuína com a questão social. As desigualdades econômicas intrínsecas ao projeto da modernidade nos deixaram órfãos em matéria de habilidades para lidar com questões morais. Citando Alfred Shcultz, Bauman conclui:
Os efeitos práticos desta “retirada de véu” são impactantes, uma vez que demonstram o ser humano como movido por interesses que resultam em ações que tendem a ser justificadas, com significados atribuídos a estas ex post facto. O autor cita uma série de exemplos desconcertantes. Para ficarmos com um: a revelação de que um dos bombardeios finais dos EUA sobre a Alemanha, mais especificamente sobre a modesta cidade de Wurzburg (na época com cerca de 107 mil habitantes), não foi ordenado para “terminar a guerra e assim poupar centenas de vidas de soldados que de outro modo seriam ceifadas”, mas simplesmente porque um grande investimento havia sido feito nas pesquisas que tornaram os artefatos enviados (225 Lancasters e 11 Mosquitos – despejando um total de 289 toneladas de poderosos explosivos e 573 toneladas de bombas incendiárias) disponíveis e se desejava desesperadamente conhecer seu potencial definitivo. A Alemanha em si estava prestes a se render de qualquer forma, mas como Hermann Knell, que pesquisou extensamente os arquivos e dados relacionados ao bombardeio (citado por Bauman) revela:
Fatos como os narrados demonstram o quão “inadministrável” a sociedade se tornou. Como comenta Bauman, “tememos o que não podemos controlar”. A sensação de que a humanidade se encontra num patamar de loucura incontrolável é traduzida no medo generalizado e constante, à espera do próximo ato insano a ser perpetrado (seja um ato terrorista de um grupo de extremistas ou de um jovem armado que desfere disparos numa sala de cinema; seja uma ação militar; seja a explosão de uma fábrica ou o vazamento de um oleoduto). A sensação que temos é a de indefensabilidade diante do que pode, a todo momento, sobrevir. Esse último aspecto é ainda tratado pelo autor no capítulo sobre o terror global. Afim de não tornar esta resenha demasiadamente extensa não nos debruçaremos sobre este, para poder tecer comentários finais sobre os dois últimos capítulos. O penúltimo, tratando de trazer os medos à tona, revela o modo como os mecanismos utilizados no combate aos medos acima descritos acabam por asseverar a sensação de insegurança. Podemos resumi-lo na seguinte passagem:
Em seu último capítulo, o livro se compõe de uma conclusão, ou melhor, uma proposta de saída deste cenário de pânico generalizado e ansiedade constante em que vivemos. Ele é intitulado “O pensamento contra o medo”. Nele pretende o autor revelar de que modo os “intelectuais”, sem uma consideração elitista desta denominação, mas como significante de um corpo que se dedica aos estudos sociais, deve assumir seu papel emancipatório e libertador no enfrentamento do medo. Sua conclusão pode ser considerada uma chamada ao engajamento dos pensadores sociais. Convida a todos a se debruçar sobre as questões que afligem a humanidade a abraçar a advertência de Pierre Bordieu:
Bauman não recolheu-se. Deixou uma brilhante amostra de preocupação sincera, retratada em seus escritos e entrevistas. Sentiremos muita falta de termos entre nós as suas baforadas – interlúdios dos pensamentos de um grande sociólogo, um grande escritor, um grande humanista! Paulo Incott Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Referências: [1] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 09 [2] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 46 [3] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 120 [4] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 122 [5] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 173 [6] BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 226 Comments are closed.
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