Sólido x Líquido. Certeza x Incerteza. Espaço x Tempo. Coletivo x Individual. Rockefeller x Bill Gates. Exatamente: Rockefeller x Bill Gates. Esta é uma comparação interessante, que parece expressar de forma clara a ideia proposta por Bauman na obra “Modernidade Líquida”. Afinal, Rockefeller é o “clássico” arquétipo da “modernidade sólida” e Bill Gates o arquétipo da “modernidade líquida”. Vale a transcrição do trecho em que Bauman estabelece este comparativo:
Quando Bauman fala em "modernidade líquida" quer se referir ao momento histórico de estruturação de uma sociedade fluída, em oposição a uma sociedade solidificada. Esta última (a de Rockefeller) refletia certezas, ditava padrões, era praticamente estática e efetivava-se através da identidade de escolhas. Já a sociedade fluída (a de Bill) não traz certezas, muda a cada instante e vive da multiplicidade de escolhas. Este parece ser um interessante ponto de partida para a análise da obra de Bauman, mas antes de adentrar, com maior profundidade, à “modernidade líquida”, é necessário fazer uma ressalva em caráter confessional: Escrever resenha por si já é uma atividade extremamente difícil e delicada, pois o escritor da resenha, dotado de percepções e verdades próprias, corre o risco de reescrever as ideias do autor resenhado, com base nas suas próprias convicções, selecionando aquilo que, subjetivamente, lhe parece mais relevante ou pinçando os fragmentos que mais se conectam com o seu próprio campo de estudo. Desta forma, a resenha dificilmente será capaz de refletir a exatidão e a integralidade do pensamento exposto na obra resenhada. A dificuldade se amplia quando o autor resenhado é Zigmunt Bauman, vez que o sociólogo possui uma linha de raciocínio amplíssima, multifacetada e multidisciplinar, atendendo diversas demandas de estudo e atingindo leitores com percepções distintas. Esclarecendo de forma exemplificativa: um profissional do Direito lê Bauman com foco distinto da leitura que é feita por um profissional do marketing. A verdade é que cada um sempre quer encontrar a sua própria verdade naquilo que lê. Assim, nesta resenha não necessariamente conseguirei sintetizar com precisão a totalidade das ideias de Bauman, mas apenas tentarei externar, inevitavelmente a partir de convicções próprias, pontuações relevantes do pensamento do autor. Quando Bauman fala em “modernidade líquida” ele parece querer “desenhar”, metaforicamente, um cenário de fluidez, mobilidade e inconstância. O autor aborda a velocidade das mudanças, a descartabilidade de bens e pessoas e a ausência de padrões comportamentais. Bauman reflete sobre a liquidez da modernidade, em oposição a uma sociedade anterior de estruturas sólidas, por variados aspectos: (a) crescente liberdade (emancipação); (b) individualismo exacerbado, contrapondo-se à concepção de coletividade (individualismo); (c) fluidez temporal e desvinculação espacial (tempo/espaço); (d) incerteza no trabalho e nas relações interpessoais (trabalho); (e) falsas interações no âmbito comunitário, nas denominadas “Cloakroom communities” (comunidade). Nas palavras exatas de Bauman:
Algumas ideias extraídas do livro “Modernidade Líquida” merecem destaque: A origem da “modernidade líquida” estaria relacionada à necessidade de superação de uma sociedade estática, rígida, extremamente limitativa das liberdades individuais. De acordo com a metáfora de Bauman, “os tempos modernos encontraram os sólidos pré-modernos em estado avançado de desintegração”, sendo que a liquidez moderna teria por objetivo o derretimento destes sólidos, mas com o fim de viabilizar o surgimento de outros sólidos, mais confiáveis, o “que tornaria o mundo previsível e, portanto, administrável”. Ocorre que, o derretimento acabou atingindo elos importantes “que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas”. A emancipação libertária (que não se sabe ao certo se é uma “benção ou maldição”) não se restringiu aos aspectos econômicos, mas acabou liquefazendo limites “políticos, éticos e culturais”. Liberdade e multiplicidade de escolhas (consumismo) acabaram por moldar indivíduos extremamente voltados para si próprios, despidos de valores coletivos. Leandro Karnal, em palestra sobre a “modernidade líquida” (assista), diz que temos indivíduos preocupados tão só com o “predomínio do seu eu”. Os indivíduos estão cada vez mais voltados aos seus pequenos dissabores cotidianos do que às questões sociais. Bauman percebe esta questão de forma brilhante, ao dizer que:
O que aconteceu foi que a liquefação que estaria destinada a atingir o sistema político-social acabou atingindo, também o convívio social; como diz Bauman, passou de “um nível macro, para um nível micro”. Neste cenário, as instituições – aqui Bauman faz referência a Ulrich Beck – passaram a ser “instituições zumbis”, as quais existem e se mantêm, mas sem padrões e sem direcionamento; são instituições que vivem, mas sem essência. Outro ponto interessante é a mudança na estruturação do poder decorrente da “modernidade líquida”. Neste ponto Bauman aponta que a liquidez se conecta à ideia de tempo (que é fluído), enquanto que a solidez se conecta à ideia de espaço (que é invariável). Assim, em um contexto de “modernidade líquida”, o poder é móvel, dinâmico e não “aferrado” a um determinado ponto espacial. O poder se movimenta na “velocidade de um sinal eletrônico”. De acordo com o que constata Bauman, “para que o poder tenha liberdade de fluir, o mundo deve estar livre de cercas, barreiras, fronteiras fortificadas e barricadas”. Os instrumentos de controle passam a ser outros: não se convence mais através da ordem e da força, ao contrário, se conquista e se seduz o indivíduo. Neste contexto, a propaganda acaba sendo a alma do negócio. Nesta estruturação líquida de poder, há que se considerar a velocidade ainda maior decorrente da globalização, através da qual se busca atingir um número cada vez maior de pessoas (consumo), ao mesmo tempo em que se substitui constantemente a mão de obra (por outra mais barata), como se esta fosse descartável. Por fim, a fluidez parece trazer um sentimento constante de insatisfação. No exato momento em que o indivíduo atinge um determinado objetivo, já passa a buscar outro, o que agrega insegurança nas relações pessoais, incluindo trabalho e família. Os objetivos são cada vez mais traçados individualmente do que coletivamente. Este é um cenário que favorece relações superficiais, sem confiança, criando atuações “teatrais” no ambiente comunitário. O indivíduo passa a encenar determinados “papéis” de acordo com o que parece ser mais conveniente, em cada momento da vida. Eis o indivíduo “líquido” vivendo em uma sociedade “líquida”. Agora, sem querer ser pessimista, mas a “revolução informática”, sobretudo na última década, parece apontar para o surgimento de uma modernidade ainda mais fluída, talvez uma “modernidade gasosa”, já que hoje: (a) as interações são mais virtuais que reais; (b) as informações não se arquivam fisicamente, ao contrário ficam em “nuvens”; (c) muitos produtos já não existem enquanto objetos físicos; (d) o poder começa a ser moldado no ambiente das redes sociais. A “modernidade líquida” está fervendo e evaporando. André Pontarolli Coordenador Geral do Sala de Aula Criminal Professor de Direito Penal e Criminologia Advogado Criminal BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |