A discussão acerca da possibilidade de recepção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, da responsabilização penal da pessoa jurídica, parece razoavelmente superada. Ainda que doutrinadores de peso se declarem refratários a esta hipótese[1], certo é que nossa legislação constitucional (arts. 173, § 5º e 225, § 3º) e infraconstitucional (Lei 9605/98; Lei 12860/13) não deixam muito espaço para negação de sua aplicação em nosso sistema de justiça criminal.
No campo dogmático, como meio de suplantar as inegáveis deformações que a responsabilização penal da pessoa jurídica traz à teoria do delito, um genuíno jogo de palavras é realizado, como se afirmasse que “não é bem assim” para diversos elementos da construção teórica do tipo de injusto culpável, em especial o conceito de ação e de culpabilidade. Ainda assim, inegável a forte tendência em prol da aceitação desta “nova”[2] construção. O álibi argumentativo que permite esta aceitação diz respeito à “necessidade social”[3], sem que se ofereçam, ao menos até onde foi possível a pesquisa para este texto, dados empíricos que demonstrem a efetividade da ameaça penal para coibir os riscos que discursivamente fundamentam essa expansão do poder punitivo estatal. O que se observa, regra geral, é o ônus invertido: alega-se a capacidade das empresas em perpetrar graves e insuportáveis danos/riscos sociais, sem se preocupar em demonstrar a capacidade do direito penal para concretizar as funções a ele atribuídas para estes danos/riscos (prevenção geral - positiva ou negativa). Não se deseja, neste momento, elaborar uma amostra de todas as significativas alterações que a RPPJ[4] traz à estrutura ou molde de responsabilização penal (teoria do delito). O que se pretende questionar é: admitindo esta possibilidade, poderiam as pessoas jurídicas de direito público (interno) ser responsabilizadas penalmente? A questão divide doutrinadores. Não se fará aqui uma relação extensiva de todos os que se manifestam a favor ou contra, mas o fato é que podem ser encontradas digressões em ambos os sentidos. Interessam mais os argumentos utilizados para admitir ou afastar esta possibilidade. Ao lado da negativa da possibilidade de se responsabilizar pessoas jurídicas de direito público residem, de forma geral, dois argumentos principais, que procuram se complementar. O primeiro deles diz respeito a impossibilidade lógica do Estado ocupar, ao mesmo tempo, a posição de aplicador da sanção penal e daquele sobre a qual a sanção é aplicada. Haveria um problema de incoerência técnica. Além disso, ainda dentro do escopo deste argumento, surge o problema da indesejável consequência de que o ônus da pena recaria, no final das contas, para a própria sociedade, já que as penas para delitos perpetrados por pessoas jurídicas invariavelmente possuem natureza pecuniária ou restritiva de direitos. Seja anotado que esta restrição parece dizer respeito mais a questão da tipologia da pena do que a possibilidade de responsabilização em si. Essas questões merecem tratamento apartado, já que possuem diferentes pressupostos e tratam de matérias que demandam abordagens desconectadas, inclusive do ponto de vista de política criminal. Alterar ou criar uma nova modalidade de sanção penal não depende, prima facie, do juízo de possibilidade da responsabilização penal propriamente dita. Além disso, uma vez que o Estado atua por meio de entes morais (pessoas jurídicas), voltadas a corporificar um determinado substrato de vontades, estando significativamente fragmentado em funções, atribuições, órgãos e hierarquias, não é razoável aceitar a negação de responsabilização penal sob mera alegação de que este ente, o Estado, estaria aplicando a pena “sobre si mesmo”. Mesmo que o “princípio federativo”[5] precise ser devidamente respeitado, fato é que já hoje existem mecanismos de gestão, fiscalização e controle que relativizam a possibilidade de interferência entre os entes federartivos, não sendo de todo impossível imaginar uma configuração que consiga harmonizar a responsabilização com a manutenção da integridade desta “viga mestra do sistema jurídico”[6] que é o princípio federativo. Uma segunda objeção diz respeito ao fato de que o tipo de injusto demanda a aferição, seja a título de verificação da presença do dolo ou do juízo de culpabilidade, do conteúdo de vontade, e o Estado só pode agir[7] pautado por “interesses” previamente delimitados pela via democrática. A administração pública, tomada aqui como representação fática do Estado, só pode atuar dentro da estrita legalidade, o que tornaria vazia a possibilidade de atribuir a uma das pessoas jurídicas que da vida a esses interesses a conduta ilícita. Não convence esse argumento pelo fato de que o Estado hoje se corporifica também sob a forma de empresas, as quais possuem em seu mote a atuação na esfera econômica, ainda que com fins relativamente diferentes do que aqueles das empresas absolutamente privadas. Vale notar adicionalmente que a inafastabilidade da vontade como conteúdo do dolo tem sido fragilizada por diversos estudos de dogmática penal[8]. Por outro lado, os que entendem aceitável a responsabilização penal de pessoas jurídicas de direito público, munem-se dos seguintes argumentos: as previsões legais (constitucionais e infraconstitucionais) não excetuaram esta possibilidade. Não se poderia, portanto, obstaculizar esta forma de responsabilização sob a presunção de que o legislador, quer o constituinte, quer o constitucionalmente delegado, deixou de lado esta possibilidade porque implicitamente aceitava os argumentos refratários a esta forma de penalização. Um segundo argumento diz respeito ao extenso rol de funções atribuídos ao Estado no modelo intervencionista, tornando-o protagonista, muitas vezes, de condutas seriamente lesivas aos bens jurídicos mais sensíveis. Excetuar a responsabilização de pessoas jurídicas de direito público significaria reduzir de modo drástico o potencial supostamente preventivo no qual a proposta de RPPJ vem pautada desde o início. Quer seja pendendo para um lado, quer para outro, há nesta discussão um vazio relevante a ser preenchido. Na realidade, é este vazio que anima a confecção deste texto, até porque aquilo que foi até aqui discutido pode ser encontrado em um extenso rol de artigos já publicados sobre o tema. O vazio aludido diz respeito ao fato de que o debate acerca da RPPJ, no âmbito de atuação do direito público vem, invariavelmente, focado em questões ambientais. Há, porém, uma série de outras searas nas quais a atuação estatal pode dar vazão ao cometimento de delitos. Alistam-se a seguir dois casos hipotéticos com o fim de confirmar esta afirmação. Primeiro caso: via pública recebe capa asfáltica fora dos padrões necessários para o tráfego que precisa suportar, resultando na abertura de uma pequena cratera. Um motorista, dirigindo dentro do limite de velocidade e respeitando os demais deveres objetivos de cuidado, não enxerga a cratera ao transitar pela via à noite. A via é federal. Moradores das redondezas haviam notificado a autoridade responsável sobre o surgimento da cratera. Aquele motorista perde o equilíbrio ao passar pela via defeituosa e vem a colidir com um poste, sofrendo graves lesões corporais. Segundo caso: hospital da rede pública não fornece os instrumentos necessários para higiene apropriada de suas unidades de tratamento intensivo, embora os médicos que ali atuam tenham notificado o problema, alertando sobre os riscos envolvidos. Diversos pacientes deste hospital são então acometidos daquilo que, em linguagem vulgar, é denominado “infecção hospitalar”. Alguns vêm a óbito e outros ficam gravemente enfermos. Nos dois casos acima, para além da possibilidade de responsabilização civil (indenizatória), seria razoável esperar a responsabilização penal das pessoas jurídicas envolvidas? Não sendo possível, como é comum em casos similares aos descritos, individualizar a responsabilidade de um servidor público pelo problema, poderia a RPPJ oferecer um meio idôneo de proteção (prevenção)? Em caso de resposta negativa à estas perguntas, como se justificaria a RPPJ de direito privado? Acredita-se que estas questões devam receber, se não maior atenção, preocupação de mesmo peso par os que se dedicam a estudar e legitimar a RPPJ como necessária ao atual estágio de evolução dos riscos inerentes ao modo de produção e de vivência da sociedade contemporânea. Paulo Incott Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Vice presidente científico da World Complexity Science Academy Membro do Research Committee on the Sociology of Law Advogado [1] Por todos: Juarez Cirino dos Santos, René Dotti, Luis Régis Prado. [2] Obviamente não se trata de algo completamente novo, mas é preciso admitir que as discussões, em território nacional ao menos, ganham força a partir do início do séc. XXI [3] RIBAS, Linda Maria Lopes Rodrigues. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. Teoria geral da tutela penal transindividual / Luiz Régis Prado, René Ariel Dotti organizadores. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2011. vol. I. p. 1037 [4] RPPPJ será usada como sigla para Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica [5] Idem, p. 1044 [6] Idem [7] Lembrando que o conceito de ação também precisa ser adaptado na RPPJ [8] Por exemplo: VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. São Paulo: Marcial Pons, 2017. Comments are closed.
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