RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA PARTE 02: A PERICULOSIDADE DOS ENTES EMPRESARIAIS6/18/2020
Os fenômenos econômicos e avanços tecnológicos possuem dinâmica própria e com enormes repercussões na sociedade[1]. Desta forma, não se pode ignorar seu efeito negativo e a consequente criação de novos riscos e ameaças aos cidadãos, bem como para a toda sociedade[2]. A delinquência corporativa se amolda como uma forma de criminalidade organizada que expõe os cidadãos e o próprio Estado a estes novos riscos. Deve-se enfrentar as novas realidades jurídico-penais, com o surgimento de novos bens jurídicos e a possível legitimação de sua defesa por meio do Direito Penal[3]. As relações empresariaispossuem reflexos econômicos e jurídicos quando sua atividade empreendedora e seu comportamento competitivo tornam-se perigosos não somente à partes envolvidas, mas sim para toda a coletividade. Há de se pensar que atividades especialmente perigosas necessitam da permissão (e intervenção) estatal, como por exemplo, empresas de serviços financeiros, extrativistas e de grande domínio econômico[4]. A pessoa jurídica se apresenta como uma nova realidade enquanto detentora de uma organização institucional complexa e desenvolvedora de atividades que se caracterizam como risco[5] coletivo e social. Sua periculosidade deve ser mensurada e a probabilidade de delinquir pode ser objeto de análise e prevenção. Segundo Feijoo Sánchez[6],“a moderna dogmática jurídico-criminal está tendo que evoluir para lidar adequadamente com novos fenômenos das sociedades contemporâneas contra as quais as respostas tradicionais são insuficientes”. Por consequência disto, assumindo que determinadas organizações empresariais alcançam níveis de complexidade que começam a mostrar caracteres de autorreferencialidade, autocondução e autodeterminação[7], abre-se a premissa para a construção de uma noção de periculosidade para as pessoas jurídicas. O comportamento empresarial e o risco contemporâneo A assertiva de que possíveis problemas ou tragédias decorrentes do progresso econômico e do modo imperativo com que as sociedades empresariais se comportam em busca da maximização do lucro acaba por encontrar guarida no âmbito da vida diária das pessoas jurídicas, sendo enfrentadas como meras fatalidades ou situações adversas normais no desenvolvimento da atividade empresarial. No entanto, a perseguição a qualquer custo do lucro e da efetividade da atividade empresarial não se assemelha ao modo como a sociedade entende a pessoa jurídica na contemporaneidade. Os riscos da atividade empresarial devem ser mensurados e possíveis transgressões às normativas podem atrair a legitimação do Direito Penal em tais casos. Sobre estes riscos, Ulrich Beck[8] apresenta uma perspectiva para o entendimento da proporção das consequências do desenvolvimento científico e industrial, sendo estes um conjunto de riscos que não podem ser contidos espacial ou temporalmente. Para o autor, os riscos da modernização são big business. Eles são as necessidades insaciáveis que os economistas sempre procuraram. A fome, lembra Beck, pode ser saciada, necessidades podem ser satisfeitas, mas os riscos civilizatórios são um barril de necessidades sem fundo, interminável, infinito, autoproduzível[9]. Porém, Beck afirma que a canibalização econômica dos riscos que são desencadeados através da sociedade industrial produz situações de ameaça e o potencial político da sociedade de risco[10]. Neste fluxo de pensamento, tem-se que a produção da riqueza na modernidade é acompanhada da produção do risco. O processo de industrialização e busca incessante do lucro pelas organizações empresariais é indissociável do processo de produção de riscos, vez que a consequência do desenvolvimento científico industrial bem como da maximização de seus resultados e a exposição das pessoas aos riscos. Estes riscos apresentam efeitos colaterais sociais, econômicos e políticos e geram novos efeitos colaterais como perdas de mercado, depreciação de capital, controles burocráticos de decisões empresariais, novos mercados e custos astronômicos relacionados com procedimentos judiciais e perda de prestígio. Emerge, assim, na sociedade de risco, o potencial político das catástrofes. A prevenção e o manejo pode envolver novas reorganizações de poder e de responsabilidades. A sociedade de risco é uma sociedade catastrófica. Nela, conclui o autor, o estado de exceção ameaça converter-se em normalidade[11]. É possível uma periculosidade da pessoa jurídica? Sob o ângulo de um possível comportamento de risco das empresas, verifica-se, em uma hipótese preliminar, que as pessoas jurídicas podem ser detentoras de condutas[12] que se desenham como perigosas e alguns de seus modos de operação apresentam convergência com atitudes descritas com sendo de periculosidade. As pessoas jurídicas acabaram por desenvolver um instrumental com o intuito de enfrentamento das crescentes demandas e incertezas, incorporando o cálculo dos riscos em seu processo decisório. Avaliando os riscos financeiros de suas operações, não surpreende o fato das empresas também, em certos casos, absorver o ilícito como forma prática de atuação em suas áreas. Assim, a busca pelo sucesso da atividade torna o risco plenamente aceito, permeando a sociedade empresarial de seu grau de periculosidade, tanto no risco de sua atividade, bem como dos fatos reprováveis por ela produzidos. A periculosidade passou a ser analisada subjetivamente, como um conjunto de circunstâncias pessoais e particulares enraizadas no indivíduo que as fazem prever que irão cometer crimes[13]. Em vista disso, a atividade de risco da pessoa jurídica pode ser encarada como um indicativo de sua periculosidade no momento da análise de seu comportamento perigoso perante a sociedade. A expansão do poder empresarial dentro da sociedade desencadeou um panorama diferenciado na organização e constituição de pessoas jurídicas, principalmente em seus mais altos cargos: buscou-se pessoas com grande habilidade de manipulação, inteligentes e sem dúvidas quanto a distorcer os atos que possam levar-lhes aos mais altos cargos[14]. Nos crimes cometidos pelas pessoas jurídicas, tem-se que um dos objetivos principais é a maximização de um lucro ou resultado em detrimento de valores éticos, morais, crenças e normas, e aproveita-se das oportunidades que se deparam no dia a dia para efetivar seu objetivo[15]. O grau da empresa no ajustamento de sua vida diária pode ser medido como forma de busca aos traços de comportamentos considerados problemáticos. O perfil da criminalidade da pessoa jurídica se mostra coincidente com alguns dos itens imputados para as pessoas naturais, tais como a dificuldade de aceitar a responsabilização pelos seus próprios atos, a manipulação e falta de empatia. A grande expansão do poder empresarial desencadeou o debate acerca da periculosidade dos entes empresariais e a aparente ausência de comportamento ético perante a sociedade. Com isto, verifica-se o paralelo da pessoa natural e a forma como a empresa se comporta na contemporaneidade, sendo possível a construção da gênese da periculosidade da pessoa jurídica. CONCLUSÃO Considerada a capacidade da pessoa jurídica delinquir, buscou-se cotejar se certas atividades empresariais e determinados comportamentos se adequam a uma conduta de risco, atribuindo aos entes empresariais contornos de periculosidade exigíveis para a intervenção e reprovação penal. Na última parte do estudo, será feita a propositura de sanções penais com possibilidade e efetividade de aplicação aos entes empresariais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BECK, Ulrich. Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010. BRENNER, Geraldo. Entendendo o comportamento criminoso: educação, ensino de valores morais e a necessidade de coibir o comportamento criminoso: uma contribuição da teoria econômica e um recado para nossas autoridades. Porto Alegre: AGE, 2009 BUSATO, Paulo César; PRAZERES, Ângela. Heterorresponsabilidade e autorresponsabilidade penal de pessoas jurídicas. Especial referência ao fato de conexão. In: BUSATO, Paulo César; GRECO, Luís.. (Org.). Responsabilidade penal de pessoas jurídicas: anais do III Seminário Brasil-Alemanha. 1ªed.: TirantloBlanch, 2020. BUSATO, Paulo César; CAVAGNARI, Rodrigo J. Pena e Medida de Segurança: uma aproximação. In CLÈVE, Clèmerson Merlin; KENICKE, Pedro Henrique Galloti (Coord.), Teses Jurídicas dos Tribunais Superiores: Direito Constitucional I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 983 e ss. CAVERO, Percy García. Derecho Penal Económico: Parte Geral. 3ª ed. Lima: Juristas Editores, 2014 FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José. Derecho Penal de la Empresa e Imputación Objetiva. 1ª ed. Santiago: Ediciones Olejnik, 2017. GRACIA MARTIN, Luis. La cuestión de la responsabilidad penal de las propias personas jurídicas. In: Responsabilidad Penal de las Empresas y sus Órganos y Responsabilidad por el Producto. Barcelona, J. Bosch, 1996. GONZÁLEZ CUSSAC, José L.; BUSATO, Paulo César. O modelo espanhol de responsabilidade penal das pessoas jurídicas do CP de 2010. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 132. ano 25. p. 39-60. São Paulo: Ed. RT, jun, 2017. GÓMEZ-JARA DIEZ, Carlos. A responsabilidade penal da pessoa jurídica: teoria do crime para pessoas jurídicas. São Paulo: Atlas, 2015. MANTOVANI, Ferrando. Diritto Penale, Parte Generale. 9ª ed. Padova: CEDAM, 2015. MUÑOZ CONDE, Francisco; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal, parte general. 5ª ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2002. MUÑOZ CONDE, Francisco. Hacia una Construcción Latinoamericana de la Culpabilidad. XI Congresso Latinoamericano y III Iberoamericano de Derecho Penal y Criminología. Montevideo, 1999, p. 13. PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 47/2004, p. 31 – 45, Mar - Abr / 2004. RAMOS, Samuel Ebel Braga; CAVAGNARI, Rodrigo. J. Security Measures as a legal consequence of the crime committed by legal entities. In: BUSATO, Paulo César; GRECO, Luís.. (Org.). Responsabilidade penal de pessoas jurídicas: anais do III Seminário Brasil-Alemanha. 1ªed.: TirantloBlanch, 2020, p. 353-374. SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones Básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. In: Anuário de Derecho Penal y Ciencias Penales. Madrid, tomo XLI, fasc. 1, p 529-58, enero/abril, 1988. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Eficiência e Direito Penal. Barueri: Manole, 2004. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; VARELA, Lorena. Responsabilidades individuales en estructuras de empresa. La influencia de sesgos cognitivos y dinámicas de grupo. In: Fundamentos del derecho penal de la Empresa. 2 ed. cap. V, Madrid: Edisofer, 2016, p. 247-283. SUTHERLAND, Edwin H. Crime do colarinho branco. 1ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2016 TIEDEMANN, Klaus. Derecho Penal Económico: Introducción y parte general. Primera edición. Lima: Editora y Lebreria Jurídica, 2009. p. 72-73. Samuel Ebel Braga Ramos Advogado. Mestre em Direito (2019). Professor de Direito Penal na Faculdade de Educação Superior do Paraná - FESP. Pós Graduado em Direito Tributário (2017). Extensão em Direito Penal e Processual Alemão, Europeu e Internacional pela Georg-August-UniversitätGöttingen, Alemanha (2016). Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM/PR. Email: [email protected] NOTAS: [1]O presente texto é fruto das pesquisas e resultados dispostos em RAMOS, S. E. B.; CAVAGNARI, R. J. . Security Measures as a legal consequence of the crime committed by legal entities. In: BUSATO, Paulo César; GRECO, Luís.. (Org.). Responsabilidade penal de pessoas jurídicas: anais do III Seminário Brasil-Alemanha. 1ªed.: TirantloBlanch, 2020, p. 353-374. [2] Ver PAVARINI, Massimo. Castigar al enemigo: criminalidad, exclusión e inseguridad. Quito: Flacso Equador, 2009; SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013; BECK, Ulrich. Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010. [3] Neste sentido: “O Direito Penal é um instrumento qualificado para a proteção de bens jurídicos especialmente importantes. Fixado este ponto, parece obrigatório levar em conta a possibilidade de que sua expansão obedeça, ao menos em parte, já à aparição de novos bens jurídicos – de novos interesses ou de novas valorações de interesses preexistentes.” SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A Expansão do Direito Penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 33. [4] Sobre os aspectos criminológicos do Direito Penal Econômico, Klaus Tiedemann afirma que “Las concepciones que parten de aspectos criminológico se basan, en parte, en las extensas repercusiones que geran los delitos económicos. A partir da dogmatica jurídica, o autor afima que “se aprecia hoy en día la peculiaridad de los delitos económicos y Derecho penal económico, principalmente, en la protección de bienes jurídicos supraindividuales (sociales o coletivos, interesses de la comunidad).” TIEDEMANN, Klaus. Derecho Penal Económico: introducción y parte general. Primera edición. Lima: Editora y Lebreria Jurídica, 2009. p. 72-73. [5] “Denominar de "direito penal do risco" um direito penal que deve ter um papel decisivo (ou pelo menos não ficar como espectador passivo) na tarefa de tornar seguro o futuro desta nossa sociedade, que está, devido ao progresso tecnológico (daí "risco" e não "perigo") à beira da autodestruição, e que precisa ser reformulado para cumprir esta finalidade.” PRITTWITZ, Cornelius. O direito penal entre direito penal do risco e direito penal do inimigo: tendências atuais em direito penal e política criminal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 47/2004, p. 31-45, Mar-Abr, 2004. [6] No original: “La dogmática jurídico-penal moderna está teniendo que evolucionar para poder tratar adecuadamente nuevos fenómenos de las sociedades contemporáneas frente a las que las respuestas tradicionales resultan insuficientes”. FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo José. Derecho Penal de la Empresa e Imputación Objetiva. 1ª ed. Santiago: Ediciones Olejnik, 2017. p. 132. [7] Cf. GÓMEZ-JARA DIEZ, Carlos. A responsabilidade penal da pessoa jurídica: teoria do crime para pessoas jurídicas. São Paulo: Atlas, 2015, p. 72. Para análise do entendimento do autor na relação das organizações empresariais como sistemas autopoiéticos, ver GÓMEZ-JARA DIEZ, Carlos. Autoorganización empresarial y autorresponsabilidad empresarial: Hacia una verdadera responsabilidad penal de las personas jurídicas. in: Revista electrónica de ciencia penal y criminología, n. 8, 2006 e GÓMEZ-JARA DIEZ, Carlos. Modelos de autorresponsabilidad penal empresarial: Propuestas globales contemporáneas. 1ª ed. Navarra: Editorial Aranzadi, 2006. [8]EmsuaobradenominadaRisikogesellschaft - Auf dem Weg in eine andere Moderne, publicadaem 1986. [9] BECK, Ulrich. Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 28. [10] BECK, Ulrich. Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 28. [11] BECK, Ulrich. Sociedade de risco rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 28-29. [12] Ver BUSATO, Paulo César; PRAZERES, Ângela. Heterorresponsabilidade e autorresponsabilidade penal de pessoas jurídicas. Especial referência ao fato de conexão. In: BUSATO, Paulo César; GRECO, Luís.. (Org.). Responsabilidade penal de pessoas jurídicas: anais do III Seminário Brasil-Alemanha. 1ªed.: TirantloBlanch, 2020. [13] MEDINA, Julio Leal. La historia de las medidas de seguridad: de las instituciones preventivas más remotas a los criterios científicos penales modernos. Pamplona: Editorial Aranzadi, 2006, p. 22. [14] GARRIDO, Vicente. El Psicopata. Un camaleón en la sociedade actual. Barcelona: Editorial Círculo de Lectores, 2001, p. 172. [15] BRENNER, Geraldo. Entendendo o comportamento criminoso: educação, ensino de valores morais e a necessidade de coibir o comportamento criminoso: uma contribuição da teoria econômica e um recado para nossas autoridades. Porto Alegre: AGE, 2009, p. 48.
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |