Artigo do Colunista Iuri Machado sobre a retroatividade (ou não) do acordo de não persecução penal, vale a leitura! '' Em primeiro lugar, o STF afirmou na ADI 17199 que “ao julgar a questão de ordem no Inq. 1.055 […] as normas da Lei 9.099/1995 de natureza penal e conteúdo mais benéfico ao réu devem retroagir para alcançar os processos que já tiverem a instrução iniciada”. Tem-se, assim, que foi feita expressa referência a julgado que cuidou do instituto da transação penal retroativa, tendo-se chegado a conclusão de que aquele instituto retroagiria. Afinal: como poderia o STF fazer referência a um julgado que cuida de uma condição (procedibilidade/prosseguibilidade) afirmando de forma veemente que as normas de caráter benéfico retroagem e se excluir justamente a interpretação neste sentido?''. Por Iuri Machado 1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL
ADI 1719, Relator(a): JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 18/06/2007, DJe-072 DIVULG 02-08-2007 PUBLIC 03-08-2007 DJ 03-08-2007 PP-00029 EMENT VOL-02283-02 PP-00225 RB v. 19, n. 526, 2007, p. 33-35. Ementa do julgado: PENAL E PROCESSO PENAL. JUIZADOS ESPECIAIS. ART. 90 DA LEI 9.099/1995. APLICABILIDADE. INTERPRETAÇÃO CONFORME PARA EXCLUIR AS NORMAS DE DIREITO PENAL MAIS FAVORÁVEIS AO RÉU. O art. 90 da lei 9.099/1995 determina que as disposições da lei dos Juizados Especiais não são aplicáveis aos processos penais nos quais a fase de instrução já tenha sido iniciada. Em se tratando de normas de natureza processual, a exceção estabelecida por lei à regra geral contida no art. 2º do CPP não padece de vício de inconstitucionalidade. Contudo, as normas de direito penal que tenham conteúdo mais benéfico aos réus devem retroagir para beneficiá-los, à luz do que determina o art. 5º, XL da Constituição federal. Interpretação conforme ao art. 90 da Lei 9.099/1995 para excluir de sua abrangência as normas de direito penal mais favoráveis ao réus contidas nessa lei. 2 O CASO O Conselho Federal da OAB ajuizou ação declaratória de inconstitucionalidade em face do art. 90 da Lei nº 9.099/95, que dispõe: “As disposições desta Lei não se aplicam aos processos penais cuja instrução já estiver iniciada”. Alegou o Conselho que ao não distinguir entre as normas materiais e processuais, o legislador acabou por ignorar o art. 5º, XL, da Constituição Federal, que determina aplicação retroativa das normas mais benéficas. Pleiteou, assim, que fosse declarada a inconstitucionalidade do art. 90 ou que lhe fosse dada interpretação conforme a CF/88. Foi deferida medida cautelar, suspendendo-se ex tunc a aplicação do art. 90 em face das leis materiais mais favoráveis. A Procuradoria-Geral da República se manifestou pela procedência da ADI: procedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 90 da Lei nº 9.099/95, sem redução de texto, para, dando-lhe interpretação conforme a Constituição Federal, excluir, com eficácia ex tunc, o sentido que impeça a aplicação de normas com natureza de direito penal com conteúdo mais favorável ao réu, aos processos penais com instrução já iniciada à época desse diploma legislativo. O STF julgou parcialmente procedente a ADI, a fim de dar interpretação conforme ao artigo. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO De início, o Ministro Joaquim Barbosa constatou que a legislação continha normas de caráter penal e outras de caráter processual, sendo que o art. 90 trazia uma exceção à regra da aplicação imediata na norma processual, disposta no art. 2º do Código de Processo Penal. Assim, no que concernia à legislação processual, o Ministro consignou que não havia nenhuma inconstitucionalidade em sua disposição. No tocante às normas penais, o Ministro afirmou que o legislador não poderia dar o mesmo tratamento dado às normas processuais, pois aquelas são protegidas pelo direito fundamental da retroação mais benéfica. Ressaltou que, no Inq. 1055-QO, o Tribunal firmou o entendimento de que as normas de natureza penal mais benéfica deveriam “retroagir para alcançar os processos que já tiveram a instrução iniciada”. Assim, o Ministro votou por dar interpretação conforme a CF/88 ao art. 90, para que fossem excluídas as normas de direito penal mais benéficas inseridas na Lei nº 9.099/95. Os demais Ministros acompanhara o voto do Relator. 4 PROBLEMATIZAÇÃO Sabe-se, a CF/88 afirma em seu art. 5º, XL, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. As regras da retroatividade da lei mais benéfica e da irretroatividade da lei mais gravosa se aplicam às leis penais, excluindo-se as leis de caráter processual penal puro, que são regidas pela regra da aplicação imediata. Existem, também, leis processuais mistas, i.e., que possuem conteúdo penal e processual. Dentre as normas processuais mistas previstas na Lei nº 9.099, podemos citar a transação penal e a suspensão condicional do processo, institutos que flexibilizaram os princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal. Devido (também) à decisão proferida pelo STF, tais institutos foram aplicados de forma retroativa, garantindo-se que pessoas que tivessem processos em andamento pudessem fazer os respectivos acordos. O estudo da ADI é deveras importante, pois a Lei Anticrime introduziu no ordenamento jurídico nova lei processual mista, qual seja, o acordo de não persecução penal (ANPP), cujas regras de aplicação estão previstas no art. 28-A do Código de Processo Penal, que, da mesma forma que os institutos da Lei nº 9.099/95, possibilitam flexibilização do princípio da obrigatoriedade, guardando muita similitude com os institutos da transação penal e com o da suspensão condicional do processo. Nada obstante seu caráter de norma mista, sua retroatividade vem sendo debatida pela doutrina e jurisprudência, em especial pelos posicionamentos de alguns professores de renome. Douglas FISCHER, em recente artigo, afirmou que não é possível a retroação: Admitir a aplicação do acordo de não persecução penal em ações penais em andamento, sob o (fácil) escudo geral de que consistiria providência “mais benéfica ao infrator”, configura uma criação com base isolada em um princípio apenas (da retroatividade), em desacordo também com a interpretação que entendemos correta e, segundo vemos, já conferida pelo STF em situações análogas, como foi em face de debates travados com a entrada em vigor da Lei nº 9.099/95. Mais que isso: se a questão se limitasse a sustentar que a regra seria (só) penalmente mais benéfica, implicaria, necessariamente, que se abrisse a possibilidade de acordo aos casos com sentença já transitada em julgado, pois traria em seu bojo a possibilidade de ajuste de uma pena mais favorável à que prevista em abstrato ou então aplicada pelo juízo criminal. Não esqueçamos que toda regra penal mais benéfica deve retroagir inclusive sobre casos já transitados em julgado. Assim, nessa linha de argumentação, ou ela retroage para todos os casos (absolutamente todos), ou ela é limitada por algum fator objetivo, que, no caso, tem natureza processual penal, que é o recebimento da denúncia. (FISCHER, 2020). Segundo o autor, o ANPP não se trata de norma penal, mas, sim, de norma procedimental, “que precisa a devida contextualização e compatibilização com as regras eventualmente penais previstas em mesmo dispositivo eventualmente existente (híbrido), como é o caso do ANPP” (FISCHER, 2020). Fazendo comparativo com a Lei nº 9.099, o autor afirma que: O precedente originário citado no acórdão atacado invocou interpretações conferidas quando da vigência da Lei nº 9.099/95 (suspensão e transação processuais), embora tenha citado apenas a “ementa”. De antemão, fácil visualizar que o ANPP diverge substancialmente da suspensão processual prevista no art. 89 da Lei nº 9.099/95: mesmo que refira que, ao oferecer a denúncia, o Ministério Público poderá propor a suspensão do processo, resta indubitável que a norma pressupõe para, sua aplicação, que haja processo instaurado (tanto que a regra fala: “recebendo a denúncia, poderá suspender o processo”). Por isso podia ser aplicado retroativamente aos casos com denúncia já recebida quando entrou em vigor a Lei nº 9.099/95. A transação penal (art. 76), de outro lado, pressupõe que não exista processo. Ou seja, não há nem oferecimento e recebimento de denúncia, o juiz aplica desde logo as penas restritivas de direitos ou multa. Tanto é assim que, se não cumpridas as condições no prazo estipulado, pode ser proposta denúncia, para o devido processamento criminal. (FISCHER, 2020). O acórdão paradigma citado seria o INQ 1055-QO, que foi objeto de análise na última coluna (“Retroatividade da lei processual penal mista, o que acontece?[1]). Segundo FISCHER, o STF teria afirmado que os institutos da Lei nº 9.099/95 não retroagiriam, porquanto “sua conclusão foi no sentido de, unicamente, determinar a suspensão ‘desse procedimento penal’ (veja-se novamente: fala em procedimento penal, o inquérito)”. Ao analisar a ADI objeto desta coluna, FISCHER afirma que o STF não determinou a retroação da transação e suspensão condicional do processo: Está bem claro que o STF examinou a limitação imposta pelo art. 90 da Lei nº 9.099/95 (norma estritamente processual) em relação às (autônomas) regras exclusivamente penais da Lei nº 9.099/95, excluindo a extensão da decisão (não a aplicando) para os casos de regras híbridas. Isso está hialino (e correto, segundo pensamos). Portanto, fundamental acentuar que, em nossa compreensão, o que decidido na ADI 1.719 não atingiu a regra que seja híbrida, como aquela do art. 76 da Lei 9.099/1995 (e que guarda similitude clara com o art. 28-A do CPP, ao tratar do ANPP). (FISCHER, 2020) Conclui o autor que “se a denúncia foi recebida (pelo juiz competente), o MP não pode dispor desse ato judicial já realizado, querendo fazer, agora, por regra híbrida nova, um acordo que pressupõe não haver processo” (FISCHER, 2020). Tendo em vista as afirmações do autor, manifestando-se contra a retroatividade do ANPP, imperioso que sejam feitas algumas considerações. Em primeiro lugar, o STF afirmou na ADI 17199 que “ao julgar a questão de ordem no Inq. 1.055 […] as normas da Lei 9.099/1995 de natureza penal e conteúdo mais benéfico ao réu devem retroagir para alcançar os processos que já tiverem a instrução iniciada”. Tem-se, assim, que foi feita expressa referência a julgado que cuidou do instituto da transação penal, tendo-se chegado a conclusão de que aquele instituto retroagiria. Afinal: como poderia o STF fazer referência a um julgado que cuida de uma condição (procedibilidade/prosseguibilidade) afirmando de forma veemente que as normas de caráter benéfico retroagem e se excluir justamente a interpretação neste sentido? De mais a mais, na última coluna, demonstrou-se que foi utilizado o termo procedimento, porquanto aquela questão de ordem versava sobre investigação preliminar, nada obstante, o Ministro Relator consignou naquele julgamento que os institutos despenalizadores “torna os seus efeitos extensíveis a qualquer processo penal condenatório”. Curiosamente, FISCHER afirma que o ANPP é norma de caráter procedimental, termo que não é comumente utilizado pela doutrina ao tratar da retroatividade, quiçá numa tentativa de se adequar ao termo utilizado pelo Ministro Celso de Mello. Ocorre que o doutrinador afirma que a norma “procedimental” é de caráter misto, o que causa perplexidade, pois ou ela dever ser processual pura ou processual mista, existiria uma instância intermediária entre estas classificações? Por segundo, o fato de existir um recebimento de denúncia não é impeditivo à retroatividade de uma norma processual mista, por mais que esta norma tenha previsão de limite temporal neste ato processual. Mesmo no âmbito exclusivo do processo penal, o recebimento pode ser rescindido pelo julgador. O STJ tem vários julgados concedendo ordem de habeas corpus para rescindir o recebimento da denúncia, pois o julgador, ao analisar a resposta à acusação, deve averiguar se é caso de rescisão do recebimento ou de sua retificação. Neste sentido, coluna do sala criminal[2] (MACHADO, 2018). Se o ato do recebimento pode ser rescindido por outro ato processual, por qual motivo não poderia diante de uma norma penal benéfica? Pergunta retórica vez que a doutrina defende a pensar a paralisação do processo no estado em que se encontra, não defende juízo rescisório do recebimento da denúncia. Não se trata, como alega FISCHER, de disposição do ato judicial por vontade do MP (“se a denúncia foi recebida (pelo juiz competente), o MP não pode dispor desse ato judicial já realizado”), mas sim de suspensão da marcha processual para aplicação de uma norma mista por parte do juiz, que, no juízo de homologação, poderia mesmo rescindir o recebimento da denúncia. Querer impor limitação a um direito fundamental por conta de um marco temporal processual é ignorar que aquele tem aplicação imediata, não depende de atuação legislativa na fixação de um marco temporal. Veja-se a respeito, lições de Callegari: Questão que denota importância é quando a nova lei possui caráter misto, ou seja, processual e penal. Nesses casos, o conteúdo que impera é o penal em detrimento do processual penal, aplicando-se, portanto, os princípios da retroatividade da lei. (MENDES, 2018, p. 785). Outrossim, já se demonstrou que há entendimento da Corte IDH pela retroatividade de norma “permite la posibilidad real del procesamiento” (MACHADO, 2020). Entendimento em sentido diverso, de tal maneira, seria inconvencional, vez que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos dispõe em seu artigo 9º acerca do princípio da legalidade e da retroatividade. Nada obstante a falta de técnica legislativa em diversos pontos do ANPP, tem-se que este deve ser aplicado de forma retroativa, mesmo sobre casos transitados em julgado, vez que nas lições de Leonardo S. de BEM e de João P. MARTINELLI se deve garantir “maores espaços de liberdade ao condenado”. Finaliza-se com lição de Paulo Queiroz de SOUZA ao tratar de possível retroatividade da lei processual penal pura: “Em suma, ao menos para fins de aplicação da lei no tempo, é irrelevante a distinção entre lei penal e lei processual penal, visto que uma e outra cumprem a mesma função político-criminal, de proteção do mais débil (o acusado) em face do mais forte (o Estado), não podendo a lei ser garantista num momento (penal) e antigarantista noutro (processual).” (SOUZA, 2017). Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-PR. Ig: @advogado_iurimachado REFERÊNCIAS BEM, Leonardo Schimitt de; MARTINELLI, João Paulo. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal. In Acordo de não persecução penal. Leonardo Schimitt de Bem, João Paulo Martinelli (organizadores). 1. ed. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020. FISCHER, Douglas. Não cabe acordo de não persecução em ações penais em curso. Disponível em: <https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2020/07/11/nao-cabe-acordo-de-nao-persecucao-em-acoes-penais-em-curso/>. Acesso em 15.07.20. MACHADO, Iuri Victor Romero. Retroatividade da lei penal mista, o que acontece?. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/retroatividade-da-lei-processual-penal-mista-o-que-acontece>. Acesso em 15.07.20. _____. A fundamentação da decisão que ratifica o recebimento da denúncia. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/a-fundamentacao-da-decisao-que-ratifica-o-recebimento-da-denuncia>. Acesso em 15.07.20. MENDES, Gilmar Ferreira; et. all. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. SOUZA, Paulo Queiroz de. Retroatividade da lei processual penal. Disponível em: <https://www.pauloqueiroz.net/retroatividade-da-lei-processual-penal/>. Acesso em 15.07.20. NOTAS: [1] Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/retroatividade-da-lei-processual-penal-mista-o-que-acontece>. [2] A fundamentação da decisão que ratifica o recebimento da denúncia . Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/a-fundamentacao-da-decisao-que-ratifica-o-recebimento-da-denuncia>. Acesso em 15.07.20.
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ISSN 2526-0456 |