A obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais é uma das grandes conquistas do Estado de Direito. A vinculação do poder judiciário, em suas manifestações, a um alicerce discernível, verificável e, acima de tudo, suscetível de contra argumentação é elemento básico da democracia. Tanto é assim que esta indispensabilidade figura como direito subjetivo das partes, constitucionalmente garantido. Por exemplo, o art. 5º, LXI, da CF/88, estabelece que a prisão, exceto em flagrante delito, precisa ser decreta por autoridade judiciária através de “ordem escrita e fundamentada”. Também, o CPC/2015 versa:
Ocorre, porém, que essa garantia nem sempre é suficiente para evitar a dilapidação democrática por meio da discricionariedade judicial. O prof. Lenio Streck tem um longo histórico de luta contra a expressão “livre apreciação da prova”, resultando na supressão desta no CPC em vigor[1]. Ainda assim, o problema persiste, em parte, devido ao uso recorrente de conceitos porosos, indefinidos, dúbios, nas sentenças e acórdãos. O direito está repleto deles. “Bons costumes”, “segurança jurídica”, “homem médio” são alguns dos termos que admitem um rol muito vasto de significações, abarcando até mesmo circunstâncias ou fatos contraditórios. Tudo se resume ao discurso, solapando a garantia constitucional de fundamentação das manifestações judiciais. Dois destes conceitos são: “segurança pública” e “ordem pública”. Decisões calcadas nestes conceitos possuem um longo portfólio de abusos na história do direito. Muito já foi escrito a respeito. Na seara criminal, as decisões que sustentam a prisão preventiva quem sabe produzam os exemplos mais lembrados. Não se pretende aqui acrescentar conteúdo ao montante já colossal de matérias sobre a “ordem pública” e a prisão preventiva. Antes, o objetivo é trazer uma reflexão sobre as origens destas expressões como suporte para manifestações judiciais. Onde vamos encontrar o germe do álibi argumentativo da segurança ou ordem pública? Sem surpresas, no direito romano. É na decretação, pelo Senado Romano[2], do iustitium (literalmente “interrupção, suspenção do direito”) que aparece pela primeira vez o embrião daquilo que serão as medidas calcadas nos conceitos citados. Lá, o fundamento para decretação do iustituim era o tumultus (de tumor, inchaço, fermentação), confusão generalizada causada dentro da República por fatores externos ou internos. O iustituim se diferenciava da guerra (bellum) no campo teórico tendo, contudo, efeitos similares para os direitos individuais (com o cuidado de contextualizar o significado deste termo quando se trata de direito romano). O que interessa aqui é que o tumultus, como base para decretação de um estado excepcional de coisas, guarda similaridade com o que hoje sustentam a ameaça à segurança ou à ordem pública. Uma análise das decisões embasadas nestes conceitos vai demonstrar que os fatos geradores da suposta ameaça, capaz de colocar em perigo a segurança ou a ordem pública, podem ser desde perigos reais, discerníveis como aptos a abalar as estruturas sociais, até coisas banais e indefiníveis, como a “credibilidade das instituições”. Não há uma delimitação minimamente jurídica dos termos “segurança pública” e “ordem pública”; daquilo que seria capaz de colocá-las realmente em risco. Se quisermos trazer a análise histórica para mais perto de nós temporalmente, será na Constituição de Weimar (Alemanha, 1919) que veremos uma interessante aparição da “segurança pública” como saída retórica para medidas totalitárias. O art. 48, § 2º, da referida constituição, versava (grifos acrescentados):
Se considerarmos que a Constituição de Weimar é tida por muitos como o arquétipo das democracias constitucionais contemporâneas e levarmos em conta o fato de que ela foi mantida formalmente em vigor no terceiro reich, veremos que regimes totalitários manobraram discursivamente os conceitos de segurança e ordem pública para permitir a implantação de medidas que desconstruíam a democracia. Fizeram isso, no entanto, sem precisar revogar o sistema democrático formal. Para colacionar um último exemplo que parece relevante: no Brasil, quando do golpe militar de 1964, um dos principais argumentos para tomada de poder pelo regime militar foi a “manutenção da ordem pública e social”. A ameaça comunista serviu de bode expiatório, mas foi calcado na necessidade de restabelecer a “ordem institucional” que os militares ascenderam ao poder. Essa breve introdução à genealogia dos álibis argumentativos da segurança e da ordem pública permite concluir que, aonde quer que perscrutemos seu uso, nos depararemos com a tendência ao totalitarismo, ao reforço desmedido de determinadas posições de poder. Saber como uma tragédia se inicia, em geral, é a melhor maneira de entender como evitar que ela se desenvolva. PAULO R INCOTT JR Mestrado em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIM Advogado [1] Comparar o art. 131 do CPC/1973 com o art. 371 do CPC/2015 [2] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. pp. 67-68 Referências: AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. CARNOY, Martin. Estado e Teoria Política. 17ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2013. PISIER, Evelyne. História das Idéias Políticas. Barueri, SP: Manole, 2004. Comments are closed.
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