SÉRGIO MORO, JUIZ PARCIAL. Uma análise a partir do caso Hauschildt contra Dinamarca. Parte 26/11/2020 Artigo do Colunista Iuri Machado, com uma análise a partir do caso Hauschildt contra Dinamarca, parte 2 e a problematização do caso, vale a leitura! '' Em primeiro lugar, não há como o legislador prever todas as hipóteses que acarretam em ofensa à imparcialidade do julgador, não por outro motivo, no artigo da última coluna, demonstrou-se que o Supremo Tribunal Federal já proferiu decisão reconhecendo que “a imparcialidade da jurisdição é exigência primária do princípio do devido processo legal, entendido como justo processo da lei”. Da mesma forma, o TEDH, reiteradamente, afirma que “any judge in respect of whom there is a legitimate reason to fear a lack of impartiality must withdraw”. Por Iuri Machado 4 PROBLEMATIZAÇÃO
Nas últimas colunas[1], foram feitas análises dos casos Piersack e De Cubber, ambos julgados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH). Nelas, foi firmado o entendimento de que não basta que o juiz ou tribunal seja imparcial, também é necessário que pareça ser imparcial, i.e., a sociedade deve ver o julgador como um terceiro independente. Por tal razão, em todos os casos que chegam ao TEDH sob fundamento de ofensa ao art. 6, 1, da Convenção Europeia de Direitos do Homem, a imparcialidade deve ser analisada sob dois prismas, a imparcialidade subjetiva e a objetiva. Tal qual os julgados anteriormente estudados, o presente, também, pode ser analisado sob a perspectiva do TEDH, desta feita com base no caso Hauschildt Contra Dinamarca. No caso, o Juiz Larsen, único juiz togado do julgamento, o qual era composto por mais dois juízes leigos, proferiu ao longo da investigação 15 decisões de manutenção da prisão preventiva e cinco determinando a incomunicabilidade de Haulschildt (dentre outras decisões). No processo criminal, o juiz Larsen prorrogou a manutenção da prisão por mais de 21 vezes. Haulschildt recorreu das decisões por 19 vezes, tendo elas sido mantidas. O Tribunal presidido pelo juiz Larsen condenou Haulschildt à pena de 7 anos de prisão. Em recurso, inicialmente sustentou a imparcialidade do juiz, todavia, tal pleito foi retirado. Algumas das decisões proferidas pelo juiz Larsen foram tomadas com base no art. 762.2 da legislação dinamarquesa, o qual previa:
O demandante afirmou ao TEDH que a forma de proceder do juiz se amoldava a causa de impedimento prevista no art. 60.2, da legislação o qual dispunha que o juiz não podia julgar quando tinha “un especial interés en el resultado del caso”, pois a natureza de algumas decisões “lo cual influirá en su valoración de los medios de prueba y de las cuestiones controvertidas durante el posterior juicio”. O governo dinamarquês e a Comissão Europeia de Direitos Humanos chegaram à mesma conclusão, no sentido de que a simples participação do julgador na fase pré-processual não acarreta por si em ofensa à sua imparcialidade, veja-se trecho do julgado e do parecer da Comissão: 44. Para el Gobierno y la mayoría de la Comisión, no se puede entender que la mera circunstancia de que un magistrado de los que intervengan en el juicio decretara com anterioridad la prisión provisional de una persona u otras medidas procesales que la afectaron comprometa su imparcialidad; y, en el caso de autos, no se ha demostrado que exista ningún otro motivo para poner en duda que tanto el Tribunal de instancia como el de apelación eran imparciales. […] 111. En cuanto al hecho de que los jueces que resolvieron sobre la libertad provisional del (ahora) demandante y sobre varias cuestiones procesales debieron adquirir necesariamente algún conocimiento de los autos antes del juicio, la Comisión opina que no se puede dudar por ello de la imparcialidad del Tribunal al pronunciarse sobre la culpabilidad. En muchos sistemas europeos, es normal que cualquier magistrado del Tribunal conozca las actuaciones con anterioridad al juicio. En opinión de la Comisión, lo dicho no es motivo suficiente para poner en duda la imparcialidad del órgano que juzga. Quanto à demanda, o TEDH consignou que a imparcialidade subjetiva não foi alvo da demanda e que ela se presume até prova encontrário; quanto à imparcialidade objetiva ressaltou que "Lo que está en juego es la confianza que los tribunales de una sociedad democrática deben merecer a los que acuden a ellos y, sobre todo, en cuestiones penales a los acusados". A partir de tal diferenciação, o TEDH passou a analisar as funções do juiz no ordenamento dimarquês, tendo ressaltado que as circunstâncias fáticas e jurídicas eram diferentes das analisadas nos casos Piersack e De Cubber: 50. [...] La verdad es que el caso de autos se diferencia de los llamados Piersack, De Cubber, ya citados antes, y Ben Yaacoub (Sentencia de 27 de noviembre de 1987, serie A, núm. 127-A, pág. 7, apartado 9) por la índole de las tareas desempeñadas por los jueces antes de intervenir en el juicio. Además, las cuestiones que un juez tiene que resolver antes del proceso propiamente dicho no son las mismas a que se refiere el fallo definitivo. Cuando se pronuncia sobre la prisión provisional o sobre otros problemas de esta clase en la fase previa, aprecia sumariamente los datos disponibles para determinar si, a primera vista, las sospechas de la policía tienen algún fundamento; cuando dicta la sentencia al final del juicio, tiene que averiguar si las pruebas practicadas y discutidas en él son suficientes para justificar la condena. No se pueden equiparar las sospechas con una declaración formal de culpabilidad (véase, por ejemplo, la Sentencia Lutz de 25 de agosto de 1987, serie A, núm. 1231, págs. 25 y 26, apartado 62). Tal diferença, também, foi apontada pela Comissão Europeia de Direitos Humanos que consignou: 107. Desde este punto de vista, el caso que nos ocupa se diferencia claramente del Piersack y del Cubber. En los dos había incompatibilidad de funciones, debido a que un magistrado que tenía que pronunciarse imparcialmente sobre la culpabilidad de un acusado había desempeñado anteriormente otras funciones en relación con la instrucción de los mismos delitos o con las acusaciones correspondientes. No sucede así en el caso de autos. (destacou-se) Tal constatação feita pelo TEDH é importante na medida em que alguns doutrinadores do Brasil[2] entendem que houve uma "superação" no entendimento daquele, quando na verdade houve uma "distinção". Veja-se o que afirma Badaró: “inaugura uma nova etapa na forma de interpretar o direito ao juiz imparcial”. Passou a considerar que não só a intervenção prévia do julgador na fase de investigação, mas, sobretudo, a natureza dos atos por ele praticados em tal fase, é relevante para determinar se é fundada ou não a dúvida sobre a imparcialidade do julgador, que poderá ser comprometida em seu aspecto objetivo. Ou seja, o tribunal não se preocupa apenas em constatar a participação prévia na fase de investigação do magistrado que posteriormente irá julgar ou integrar o órgão julgador da causa, passando a levar em conta a natureza e a intensidade de suas atuações na fase de investigação. Trata-se, pois, de uma análise casuística, que pode gerar mais insegurança e incerteza quanto ao direito a um juiz imparcial. O TEDH consignou que o simples fato de um juiz ter tomado decisões na fase pré-processual não o impede de julgar o mérito, afirmou que embora "haya dictado ya resoluciones antes del juicio, especialmente sobre la libertad provisional, no basta para justificar los temores sobre su imparcialidad". Nada obstante, para o TEDH, o fato de o juiz Larson ter tomado decisões com base no art. 762.2, o tornaria impedido de julgar o mérito do processo: 52. Ahora bien, un juez, para aplicar el artículo 762.2, debe inter alia, asegurarse de que hay «sospechas confirmadas» de que el acusado ha cometido el delito que se le imputa. Según las explicaciones oficiales, quiere decir esto que debe estar convencido de que es «muy clara» la culpabilidad (apartados 34 y 35). De esta manera, la diferencia entre la cuestión que hay que resolver para aplicar dicho artículo y la que es objeto del juicio se convierte, en tal supuesto, en muy pequeña. Por consiguiente, entiende el Tribunal que, en las circunstancias que concurren en este caso, la imparcialidad de los tribunales competentes suscitaba dudas y que los temores del señor Hauschildt, a este respecto, pueden considerarse objetivamente justificados. 53. En conclusión, se ha violado el artículo 6.1 del Convenio. Importante destacar que a decisão deste caso, diferentemente dos casos Piersack e De Cubber, foi tomada pelo plenário do TEDH, tendo votos dissidentes para não reconhecer a ofensa ao julgamento por um juiz imparcial e, também, dissidências para reconhecer a ofensa em maior extensão. Da análise do julgado proferido pelo TEDH, que é tomado como base para o reconhecimento da ofensa da imparcialidade objetiva desde então, o que importa para fins de verificar se o juiz aparenta ou não ser imparcial é a valoração das provas, o proferimento de uma decisão que antecipe o conteúdo de mérito do processo. Assim, percebe que a recente fala do professor Lênio Streck sobre a atuação do juiz Larsen está em completo desacordo com o que aconteceu na situação concreta: Ou seja, a Constituição do Brasil e o Tribunal Europeu dos DH abominam o modelo "juiz Larsen" (Caso Hauschildt vs. Áustria) — esse juiz (Larsen) pré-julgava e aplicava sua opinião independentemente do caso concreto. Não havia um modelo abominável de juiz, mas sim uma faculdade legal de determinação de prisão preventiva com base em uma possível culpa do acusado (que sequer a Comissão entendeu como causa de ofensa à imparcialidade). Inclusive, dois anos antes do julgamento pelo TEDH, o legislador dinamarquês criou hipótese de impedimento para juízes que decretassem prisões preventivas nos termos do art. 762.2: “el juez que haya ordenado la prisión provisional fundándose solamente en el artículo 762.2 no podrá actuar en el proceso posterior, salvo que el acusado se declare culpable”. Assim, percebe-se que o erro da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal passa outros caminhos, que se cruzam com o entendimento do TEDH. Em primeiro lugar, não há como o legislador prever todas as hipóteses que acarretam em ofensa à imparcialidade do julgador, não por outro motivo, no artigo da última coluna, demonstrou-se que o Supremo Tribunal Federal já proferiu decisão reconhecendo que “a imparcialidade da jurisdição é exigência primária do princípio do devido processo legal, entendido como justo processo da lei”. Da mesma forma, o TEDH, reiteradamente, afirma que “any judge in respect of whom there is a legitimate reason to fear a lack of impartiality must withdraw”. De tal modo, qualquer afirmativa no sentido de que as hipóteses de suspeição e impedimento são taxativas esbarram no devido processo legal, esbarram em uma devida interpretação do princípio da imparcialidade. Tal forma de interpretação foi exposta pelo juiz Vandenberghe, em seu voto dissidente proferido no caso Hauschildt: “7. Por otra parte, el concepto de «tribunal imparcial» no se puede interpretar in abstracto. El Tribunal no puede limitarse a consideraciones generales en esta cuestión. El concepto requiere lógicamente una interpretación tajante que suponga una definición más bien de fondo que formal”. Em segundo lugar, conforme afirmado, o TEDH exige que haja uma valoração da prova e aprofundamento cognitivo de sua parte ou que o juiz aja de ofício na fase preliminar para que seja tido como imparcial. No caso em análise, desde a primeira decisão de decretação da prisão preventiva, o juiz Sérgio Moro já havia valorado as provas e se manifestado acerca da provável culpa dos acusados, bem como, no decorrer da persecução penal, agiu de ofício quanto às diversas cautelares. Veja-se dentre tantas afirmativas: “Alcançando as cifras mais de quinhentos milhões de reais, é absolutamente improvável que a fraude fosse desconhecida dos dirigentes da entidade”, “isso não significa mesmo juízo em relação à decretação de sua prisão, para o que exige-se uma carga probatória mais elevada”, “É, provável, porém, que o estratagema tenha servido para ocultar o produto de diversos crimes, desde sonegação fiscal a crimes mais graves como corrupção de agentes públicos, peculato e até mesmo tráfico de drogas.”. Veja-se que o juiz faz afirmações veementes acerca da provável culpa dos acusados (afirmações inexigíveis por parte da legislação), inclusive, afirma que para decretar a prisão preventiva deve existir carga probatória elevada, mais elevada que a exigida, inclusive, para o início do processo penal. Tal forma de proceder do magistrado acarreta, tal qual no caso Hauschildt, em inegável dúvida acerca da imparcialidade do julgador. Dúvida que decorre não só da valoração de inúmeras provas de forma antecipada, mas, também, pela intensa atividade de ofício (tem-se de se ressaltar que o TEDH, no caso Hauschildt, deixou claro que o juiz somente atuava quando provocado), decretando prisões sem oitiva das partes, atuando de forma planejada em duas ações penais, de forma a burlar as instâncias revisoras e as defesas. Em terceiro lugar, talvez o maior erro da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal tenha sido reconhecer os abusos cometidos pelo juiz Sérgio Moro, mas não decretar a nulidade dos autos. Se desde o recebimento da denúncia já podia antever o prejulgamento por parte do Juiz, não como se falar que não era possível identificar o momento em que o processo se tornou nulo, tampouco era possível afirmar que o fato de as prisões terem sido reformadas seria suficiente para sanear o processo. O direito ao julgamento por um juiz imparcial não está ligado, nem poderia estar, com eventual liberdade concedida ou com o julgamento de mérito e de eventuais recursos. Não há como reconhecer abusos, ofensa aos princípios constitucionais e convencionais e deixar de reconhecer a consequente nulidade. Não há jurisdição sem imparcialidade, como bem pontuou o Ministro Cezar Peluso: “não há, deveras, como conceber-se processo jurisdicional – que, como categoria jurídica, tem por pressuposto de validez absoluta a concreta realização da promessa constitucional de ser justou ou devido por justiça (due process) -, sem o predicado da imparcialidade da jurisdição”. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito e Processo Penal. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-PR. Ig: @advogado_iurimachado REFERÊNCIAS BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao julgamento por um juiz imparcial: como assegurar a imparcialidade objetiva no juiz nos sistemas em que não há a função do juiz das garantias. Disponível em: <http://www.badaroadvogados.com.br/ano-2011-direito-ao-julgamento-por-juiz-imparcial-como-assegurar-a-imparcialidade-objetiva-no-juiz-nos-sistemas-em-que-nao-ha-a-funcao-do-juiz-de-garantias.html>. Acesso em 28/04/2020. European Court Of Human Rights court (CHAMBER) Case Of Piersack V. Belgium (Application No. 8692/79). _____ (PLENARY) Case Of Hauschildt V. Denmark (Application No. 10486/83). LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 17. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020. MACHADO, Iuri Victor Romero Machado. Quem investiga pode julgar? O Supremo Tribunal Federal e o caso De Cubber contra Bélgica. Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/quem-investiga-pode-julgar-o-supremo-tribunal-federal-e-o-caso-de-cubber-contra-belgica>. Acesso em 28.05.20. STRECK, Lênio. Suspeição de Moro: o que fazer quando se sabe que se sabe?. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-25/lenio-streck-suspeicao-moro>. Acesso em 28.05.20. NOTAS: [1] Disponível em: <http://www.salacriminal.com/home/quem-acusa-pode-julgar>. E em: <http://www.salacriminal.com/home/quem-investiga-pode-julgar-o-supremo-tribunal-federal-e-o-caso-de-cubber-contra-belgica>. [2] Aury Lopes Jr. defende, de forma totalmente incoerente com os inúmeros posicionamentos do TEDH, que: “É importante destacar que existiu uma posterior oscilação na jurisprudência do TEDH, especialmente na década de 90, no sentido de relativizar essa presunção, recorrendo à análise do caso concreto (entre outros: Casos Hauschild, Sainte-Marie vs. França e Padovani vs. Itália). Essa variação é perfeitamente compreensível, na medida em que, como qualquer tribunal, o TEDH está suscetível demudanças de humor em razão dos influxos e pressões que sofre. Ademais, há que se compreender que os casos citados (Piersack [1982] e De Cubber vs. Bélgica [1984]) são do início da década de 80,momento sensível no que tange ao processo penal europeu, onde o modelo de juizado de instrução (juiz instrutor/inquisidor) ainda era predominante e começava a ser seriamente questionado.”. Veja-se que não houve oscilação, mas, sim, uma especificação das situações levadas ao Tribunal. Outrossim, o caso em estudo é utilizado como precedente ao longo de todos os anos no TEDH.
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |