Seus Problemas Acabaram!

Da Série: "Baseado em Casos Sur(reais)!"
​Episódio 2

“Não, doutor. Fui ao médico e ele me receitou esses óculos. Fiquei na dúvida sobre mandar fazê-los, então ouvi no rádio que, em caso de dúvidas, poderia procurar o Ministério Público da minha cidade... o que o doutor me diz?”. Respirei fundo e disse que deveria acatar a recomendação do médico, que era especialista na área. A senhorinha respirou aliviada, agradeceu e seguiu, agora segura, para a ótica.

​Por Marion Bach

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 “Seus direitos foram violados? Você se sente desamparado? Seus problemas acabaram! Procure o Ministério Público da sua cidade!”.

Tal anúncio – de autoria do Promotor de Justiça que me antecedeu – era o mais executado na rádio 97.3 FM, de Telêmaco Borba.

Dentre as poucas certezas que eu tinha à época, recém-aprovado que era no concurso do Ministério Público, uma se destacava: todo habitante daquela Comarca ouvia a 97.3 FM – e acreditava firmemente em seus anúncios. Só isso explicava a cena que eu presenciava da janela do meu gabinete, que ficava no segundo andar do Fórum: uma fila que dobrava esquinas e fazia a alegria dos pipoqueiros.

Uma senhora, imagino que perto de completar oitenta anos – não que eu fique imaginando a idade das senhoras -, entra no gabinete. Sem cumprimentos ou explicações, apenas me entrega um papel. Uma receita oftalmológica, recomendando a utilização de óculos. Presbiopia.

“Senhora, como posso ajudar?”. Em silêncio, ela me apontou a receita médica, como se fosse autoexplicativa. “É uma receita. Posso ver. Mas qual o problema?”. Ela insiste em apontar a receita. “Olha aí, doutor. Olha aí!”. “Estou vendo, senhora. Mas então? A senhora não pode arcar com o custo dos óculos? A ótica não prestou um bom serviço?”.

“Não, doutor. Fui ao médico e ele me receitou esses óculos. Fiquei na dúvida sobre mandar fazê-los, então ouvi no rádio que, em caso de dúvidas, poderia procurar o Ministério Público da minha cidade... o que o doutor me diz?”. Respirei fundo e disse que deveria acatar a recomendação do médico, que era especialista na área. A senhorinha respirou aliviada, agradeceu e seguiu, agora segura, para a ótica.

Próximo atendimento. Duas famílias invadem o gabinete. Duas crianças – ele, com 12 anos; ela, com 11 – e os respectivos pais, mães, avôs, avós. “No que posso ajudar?”. Um dos pais assume o papel de porta-voz e, apontando para as crianças, desabafa: “doutor, eles fugiram!”. “Bom, ao menos vejo que o problema está solucionado! Fugiram, mas já foram localizados.” “Não. O doutor não entendeu. Eles fugiram!”. “Entendo. Fugiram, mas viram todas as dificuldades das ruas. Viram a importância da família. Do lar...”. O porta-voz interrompe o meu discurso. “Doutor...eles fu-gi-ram!”. Só então entendi. Não em razão da palavra ter sido soletrada, claro, mas pelos gestos indiscretos que o porta-voz fez questão de reproduzir. As crianças haviam tido relações sexuais.

Diante da impossibilidade de emancipá-los e casá-los, apenas aconselhei: já que se amam – como pode um simples Promotor impedir o amor? -, que namorem. Mãos dadas, no máximo. No sofá da sala. E sob a supervisão da mãe da menina.

Que entre o próximo. Antes do próximo, porém, o cheiro do próximo. Álcool. Opto por me sentar. Entra um casal. “Doutor, ele bebe e me bate!”. O marido não nega. E, vermelho e inchado que era, nem poderia negar. “Bato, doutor... mas é porque ela quer ir para a casa da mãe sempre que bebo! Pode isso? Casou comigo. Fica na minha casa!”. À época, nem traços da lei Maria da Penha. Tentei alternativas. Separar estava fora de questão. “É que gosto dele, doutor...”. Internar em clínica de recuperação, também. “É que gosto de beber, doutor...”.

“Bom, então faremos um termo de bom convívio. Cada um terá de ceder de algum modo. Quanto o senhor bebe por dia? Um litro de pinga? A partir de hoje, beberá no máximo meio litro. E não encostará um dedo na sua esposa. A senhora também respeitará o acordo: se ele não ultrapassar o meio litro, ficará ao lado dele, sem fugir - fugir, literalmente - para a casa da mãe. Se ele beber mais de meio litro, está autorizada a sair de casa. Se ele voltar a lhe bater, a senhora me procure.”

Ela assinou o termo. Ele tentou assinar. Um brinde ao bom convívio.

Fim dos atendimentos. Voltei para a casa, ouvindo a 97.3 FM. Me sentindo médico. Padre. Psicólogo. Me sentindo desamparado. E foi assim que decidi procurar o Ministério Público da minha cidade.

Marion Bach
Advogada
Mestre em Teoria do Estado pela UFPR
Professora de Direito Penal da UNICURITIBA e UNIFAE

Nota de fim de filme (crônica): os fatos reais (ou quase reais) narrados foram protagonizados pelo Procurador Rodrigo Régnier Chemim Guimarães. Em breve, novos protagonistas.

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