![]() Artigo do colunista Rafael Corrêa sobre a democracia constitucional e o processo eleitoral nos dias atuais, vale a leitura! ''Mesmo após a primavera constitucional, o Brasil assistiu um crescimento exponencial do poder punitivo e do estabelecimento de um discurso de poder que privilegiava o endurecimento potencializado da persecução penal. Talvez pelo reconhecimento de parte de sua história (e apenas uma fração dela), brasileiras e brasileiros acostumaram-se à ideia de viver em uma planície de impunidade que somente seria remodelada se todos aqueles que (em tese) transgredissem a ordem pública fossem punidos exemplarmente e de modo célere''. Por Rafael Corrêa Em recente participação no programa Violência e Retrocessos, organizado por acadêmicos da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, o Ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, fez uma importante – e acertada – afirmação: pela via da democracia deliberativa em 2022, brasileiras e brasileiros optarão entre duas agendas que se colocam em curso; uma de ordem constitucional e outra atrelada “em raízes de elogio à ditadura civil-militar [...],que mistura o nome de Deus com negócios do Estado e uma agenda que tem uma política armamentista, que desrespeita as instituições democráticas, que ofende a imprensa, que escolhe inimigos externos e que busca, entre outras coisas, o controle da educação e do ensino”.[1]
A preocupação do Ministro volta-se, em cotejo ao quadro que todas e todos assistimos, à expansão de um “endoautoritarismo” que, em suas palavras, mantém “[...] um verniz democrático e, por dentro as instituições serem corroídas a tal ponto de que o hospedeiro, que é a democracia, seja destruído pelo parasita, que é o autoritarismo”.[2] A afirmação remete a uma reflexão muito bem posta pelo Professor Oscar Vilhena Vieira e já mencionada neste espaço em outra oportunidade: o Brasil vive “tempos bicudos” que exigem “[...] saber se a democracia constitucional que se demonstrou surpreendentemente resiliente nas últimas décadas, inclusive ao longo dos últimos cinco anos, resistirá aos novos desafios e ameaças” potencializados principalmente após as eleições de 2018.[3] Essa resiliência da democracia constitucional, de fato, evidencia um dado extremamente relevante: na medida em que a história brasileira se posta em um movimento intermitente de avanço (propositadamente no singular) e retrocessos (desditosamente no plural), a ordem constitucional do país parece constantemente estar deslizando para posições de proteção, como um rei que, sobre o tabuleiro, busca espaço no qual peões e bispos, cavalos e torres não possam lhe alcançar e derrubar. E desse quadro, sobressai-se uma afirmação: está a ordem constitucional brasileira, de fato, sob um movimento de resistência e a exigir uma reflexão efetiva sobre resistência. É acerca destes dois pontos que tratam as breves ponderações abaixo. Mesmo após a primavera constitucional, o Brasil assistiu um crescimento exponencial do poder punitivo e do estabelecimento de um discurso de poder que privilegiava o endurecimento potencializado da persecução penal. Talvez pelo reconhecimento de parte de sua história (e apenas uma fração dela), brasileiras e brasileiros acostumaram-se à ideia de viver em uma planície de impunidade que somente seria remodelada se todos aqueles que (em tese) transgredissem a ordem pública fossem punidos exemplarmente e de modo célere. E essa premissa, a rigor, consubstanciou-se em uma escolha (ainda que não de todo deliberada) da sociedade brasileira. Como bem afirma Adel El Tasse em importante obra sobre o tema, “A opção punitiva representa uma renúncia à resolução da questão, e a eleição de um meio de força para tratar da matéria, apenas com o sentido simbólico de impor sofrimento a uma das partes envolvidas no conflito”.[4] Tal escolha refletiu-se abertamente nos debates realizados pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar a medida cautelar e, posteriormente, o conteúdo principal das ações declaratórias de constitucionalidade n º 43 e 44, nas quais, por determinado momento, optou-se por ignorar a literalidade do art. 5º, inciso LVII da Constituição da República a fim de permitir a projeção dos efeitos da culpabilidade mesmo antes do trânsito em julgado de sentença condenatória. Ao fim e ao cabo, esse “endoautoritarismo” a que se refere o Ministro Edson Fachin nada mais é do que o expresso autoritarismo que vinca a sociedade brasileira, inclusive em sentido histórico, quando trata de temas como escravidão, patrimonialismo, desigualdade social, raça, gênero, intolerância e violência, questões abordadas criticamente e com precisão por Lilia Moritz Schwarcz em recente obra, na qual, já na introdução, faz um alerta taxativo: “história não é bula de remédio”, mas colabora sobremaneira a lançar luzes sobre a compreensão do nosso passado, a interpretação do nosso presente e a projeção do nosso futuro.[5] Lamentavelmente, entretanto, ainda estamos a ignorar o nosso passado, tanto o mais distante quanto o mais próximo de nossos dias atuais. Também outros espaços importantes da democracia constitucional brasileira estão a agir “sob” resistência, buscando realizar os seus propósitos mesmo quando esse autoritarismo (seja ele endógeno ou exógeno) busca refrear-lhe a movimentação. Talvez viva parte da imprensa brasileira em um cenário que se assemelha à narrativa posta em “Afirma Pereira”, belíssima obra escrita por Antonio Tabucchi (talvez o autor mais português já nascido na província de Pisa) e publicada em 1994 que constitui um libelo à liberdade e uma homenagem à luta dos jornalistas portugueses que, mesmo sob censura, publicavam artigos cifrados contra o regime do Estado Novo salazarista. Afinal, mesmo em um país onde a opinião pública guia-se por mentiras travestidas de verdades, a imprensa deve ser livre para dizer o que, no fim das contas, precisa ser dito.[6] O que se está a assistir, portanto, é um agir da democracia constitucional “sob” resistência; ou seja: resistindo, buscando ser resiliente ainda que sua estrutura esteja passando pressão esgarçada. E estar sob resistência implica em refletir sobre ela, em descobrir, no fim das contas, o que é essa resistência. Julián Fuks, escritor brasileiro e filho de ativistas argentinos que buscaram exílio durante as perseguições políticas estabelecidas pelo regime liderado Onganía, Levingston e Lanusse, pontuou que “É preciso aprender a resistir. Nem ir, nem ficar, aprender a resistir”. Essa reflexão (realizada pelo autor em obra literária que lhe rendeu o Prêmio Jabuti em 2016), ao mesmo tempo que define temporariamente a resistência, convida a ponderar, em sentido prospectivo, o que é realmente resistir. E nesse ponto, Julián Fuks, impulsionando pela memória do pai, da mãe e de seu irmão adotivo, pergunta-se: “Resistir será aguentar em pé a queda dos outros, e até quando, até que as pernas próprias desabem? [...] Quanto do aprender a resistir não será aprender a perguntar-se?”.[7] O questionamento parece ser mesmo de todo importante. Até agora, resistimos; até o momento, de certo modo, a democracia constitucional vem resistindo. Mas até que ponto essa resistência perdurará? E, no que nos diz respeito, até que ponto essa resistência de nossa parte não é também uma expressão de inércia e de apatia com tudo que se está a assistir? Em sentido normativo, democrática constitucional não rima com as características de passividade mencionadas acima. Konrad Hesse, em obra fundamental sobre a matéria, bem assentou que Constituição (em seu viés, “Lei Fundamental”) alguma delimita conceitualmente o que é a democracia, estabelecendo a ela tão somente traços fundamentais, privilegiando uma discussão política livre e realização de ideias distintas entre si.[8] O que se assiste por aqui, entretanto, não é tanto participação ou realização; mas, talvez, abstenção e normalização desses diversos aspectos do absurdo que se está a testemunhar. Enfim, se estamos a resistir, se está a democracia constitucional sob resistência, é necessário que se reflita sobre esse ato de resistir. E é exatamente neste eixo de ponderação que a conclusão aqui posta se volta às primeiras palavras deste texto: em 2022 é possível que estejamos realmente diante de uma escolha “entre agendas”. O que se espera é que possamos olhar ao pretérito para conseguir, finalmente, mirar o futuro em sentido prospectivo, “resistindo” como deve ser a resistência: não permanecer firme enquanto o que está ao redor de esfacela, mas agir para manter a democracia constitucional substancialmente resiliente. Rafael Corrêa Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, pela Escola de Magistratura Federal do Estado do Paraná (ESMAFE/PR) e UniBrasil. Bacharel em Direito pela Faculdade Dom Bosco (Paraná). Professor das Disciplinas de Obrigações, Responsabilidade Civil, Direito do Consumidor, Linguagem & Estratégia Contratual e Ações Constitucionais do Centro Universitário Opet - UniOpet (Curitiba/PR). Professor dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Civil, do Consumo e Processo, bem como de Direito Imobiliário da Universidade Positivo. Editor e Coordenador Editorial da ÂNIMA: Revista do Curso de Direito do Centro Universitário Opet - UniOpet (2017/2018). Professor Convidado da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil - Seção do Paraná (ESA - OAB/PR - 2018). Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Direito Civil-Constitucional da Universidade Federal do Paraná (Virada de Copérnico/UFPR) no eixo de Relações Jurídicas Contratuais e Responsabilidade Civil. Autor e colaborador de diversos artigos publicados nos principais periódicos jurídicos do país. Assessor Jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Referenciais bibliográficas: FOLHA DE SÃO PAULO. Fachin diz que eleição coloca em disputa projeto autoritário a outro alinhado à Constituição. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/08/fachin-diz-que-eleicao-coloca-em-disputa-projeto-autoritario-a-outro-alinhado-a-constituicao.shtml>. Acesso em setembro de 2020. FUKS, Julian. A Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. TABUCCHI, Antonio. Afirma Pereira. Um testemunho. São Paulo: Estação Liberdade, 2020. TASSE, Adel El. O Que É A Impunidade? Curitiba: Juruá, 2009. VIEIRA, Oscar Vilhena. A Batalha dos Poderes. Da transição democrática ao mal-estar constitucional [Livro Eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018 NOTAS: [1] FOLHA DE SÃO PAULO. Fachin diz que eleição coloca em disputa projeto autoritário a outro alinhado à Constituição. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/08/fachin-diz-que-eleicao-coloca-em-disputa-projeto-autoritario-a-outro-alinhado-a-constituicao.shtml>. Acesso em setembro de 2020. [2] Idem. [3] VIEIRA, Oscar Vilhena. A Batalha dos Poderes. Da transição democrática ao mal-estar constitucional [Livro Eletrônico]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Posição 103. [4] TASSE, Adel El. O Que É A Impunidade? Curitiba: Juruá, 2009. p. 36. [5] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o Autoritarismo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 22. [6] TABUCCHI, Antonio. Afirma Pereira. Um testemunho. São Paulo: Estação Liberdade, 2020. O romance tem como pano de fundo a Lisboa da época salazarista, expondo como personagem principal a figura do Doutor Pereira, jornalista viúvo excessivamente doente que se dedica a editorar a página cultural de uma singela gazeta vespertina. Apesar de sua apatia com a política contemporânea, Doutor Pereira tem sua percepção de vida alterada diametralmente após conhecer duas outras personagens relevantes, que são decisivas ao desenrolar da história. Em determinado trecho do texto, Tabucchi erige um diálogo entre a personagem principal, Pereira, e um colega professor de literatura, evidenciando uma triste realidade daquela época: a tendência do povo seguir um líder que apregoa a violência e a luta dos jornalistas para noticiar aquilo que, na prática, todos sabem, mas preferem ignorar. Eis o trecho a que me refiro: “Ouça-me bem, Pereira, disse silva, você ainda acredita na opinião pública? [...] o clima não favorece as nossas ideias políticas, obedecemos quem grita mais alto, a quem manda. [...] Nós sempre precisamos de um chefe, ainda hoje precisamos de um chefe. Mas eu sou um jornalista, respondeu Pereira. E daí?, disse Silva. E daí que eu tenho que ser livre, disse Pereira, e informar as pessoas de modo correto.” (p. 52-53). [7] FUKS, Julian. A Resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 79. [8] HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 117.
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