O liame entre Direito e Literatura nos apresenta cada vez mais a possibilidade de se estabelecer elos entre ficção e realidade, possibilitando, não raras vezes, a compreensão do cotidiano tal qual nos é apresentado.
Em se tratando de crimes, a literatura nos brinda com inúmeras referências, permitindo a análise criminológica e sociológica de diversas épocas, inclusive do presente. Na obra “A hora do lobisomem”, Stephen King nos apresenta uma pacata cidade que em determinado momento é assolada por estranhos acontecimentos e mortes misteriosas. O causador dos crimes: um lobisomem. No transcurso da escrita o autor deixa a duvida transparecer ao leitor para somente nos capítulos finais (que no livro são contados pelos meses do ano) revelar de fato quem da comunidade transforma-se na fera assassina que tanto temor gera nos moradores do local. Alegorias à parte, o livro nos permite refletir sobre a questão criminal e sua autoria. Ao final da escrita, se descobre que o homem amaldiçoado é, na verdade, o padre da comunidade alvo de uma maldição e que, ao praticar os crimes, quando se transforma em lobo, nada lembra no dia seguinte. Referido padre, inclusive, também passa uma parte do livro tentando buscar o indivíduo que atemoriza a todos e mata sem freios, sem sequer imaginar ser ele mesmo o algoz. A metáfora do lobisomem apresentada por King nos remete ao fato muito atual, diga-se de passagem, de que todo individuo tem o costume reiterado de acreditar que o criminoso sempre mora ao lado, jamais em sua casa ou que seja ele mesmo. O discurso de ódio da atualidade ganhou forças descomunais e alimenta diariamente a política, o relacionamento familiar, as relações de emprego. De tanto ódio somente uma coisa pode frutificar: mais ódio. Traduz-se nas palavras de Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr.:
E dentro deste ódio o ser humano, você, eu, nós todos, nos colocamos no papel de etiquetadores, aludindo desta vez à Teoria do Etiquetamento Social (Labeling Approach Theory) desenvolvida pela Criminologia em sua vertente crítica e utilizada para explicar situações em que o sistema social vigente cria seus próprios delinquentes. Aqueles que, por serem oriundos de determinadas localidades ou por integrarem determinado grupo social, são taxados e etiquetados como problema a ser tratado, o que nas palavras e pensamentos que se proliferam atualmente pode ser traduzido como “problema a ser extirpado”. Nos tornamos abalizados e nos sentimos autorizados a estabelecer conceitos pré-constituídos e disseminamos assim um discurso, e nisto incluo a minha pessoa e a sua, não raras vezes apartado da realidade. A problemática do “ser delinquente” não é matéria esgotada na seara jurídica, nem mesmo se esgotará um dia, dada a particularidade mutável do ser humano e sua capacidade de ora estar do lado de cá do rio, ora do lado de lá. Diversos autores se debruçaram sobre o tema e ainda continuam tecendo estudos sobre o mesmo. O que nos importa ligar entre a obra de Stephen King e a atualidade é a necessidade sempre urgente de o ser humano depositar a culpa no outro. Polarizamos, como tudo, as relações sociais e o delito praticado pelo vizinho merece punição exemplar, posto que é delinquente, enquanto eu mereço o perdão, afinal não pratiquei crime, no meu caso foi apenas um deslize. Referido posicionamento se presta a acirrar os ânimos nas teias sociais e contribui em muito para o crescimento desenfreado da imputação precária, da investigação deficiente e das sentenças condenatórias proferidas a rodo e em uma espécie de êxtase sobre-humano do ‘fazer justiça’ (minúsculo mesmo porque de justa não tem nada). Enquanto o pensamento se fortalecer desta forma excludente, não compreenderemos o dito criminoso (ele etiquetado) tampouco ele compreenderá a nós (que etiquetamos), ao passo que as determinantes do comportamento desviado muitas das vezes escapa da compreensão superficial e se reflete em um amálgama muito maior de imbricadas relações sociais, muitas vezes falhas por conta do próprio sistema vigente. Como o padre da obra “A hora do lobisomem” também nós nos colocamos enquanto órgãos de julgamento moral, acreditando na gravidade elevada do crime praticado ao lado, buscando sempre o causador de tamanha aberração, crentes no nosso senso apurado de justeza. Jamais nos colocamos enquanto causadores do crime; talvez não diretamente, como quem segura o revólver e dispara, mas indiretamente ao passo que somos também responsáveis pelo sistema que vige na sociedade, pela exclusão, pelo desamparo. Talvez estes elementos sejam piores do que o resultado finalístico do crime. Permanecemos, contudo, no mesmo dilema moral, retratado por Paulo Silas Filho na sequência, “Abre o olho”. “Quem já fez, faz de novo”. “Você confiaria em alguém assim pra ficar na sua empresa?”. Diversos são os nefastos brocardos que corroboram para com a estigmatização. Falamos em segunda chance, mas não damos nem a nós mesmos tal oportunidade.[2] Com estas palavras encerro a presente divagação. Lutemos, pois, para não sermos como o padre-lobisomem de Stephen King, desesperado por encontrar o culpado quando o criminoso morava dentro de si. Lutemos contra o estigma. Nem sempre o criminoso mora ao lado. Gabriel Maravieski Pós-graduando em Direitos Humanos e Realidades Regionais (UNICESUMAR) Especialista em Direito Ambiental (UNINTER) Graduado em Direito (CESCAGE) Assessor na 4ª Vara Judicial de Irati/PR REFERÊNCIAS KING, Stephen. A hora do lobisomem. Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2017. SILAS FILHO, Paulo. O direito pela literatura: algumas abordagens. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. ROSA, Alexandre Morais da. KHALED JR., Salah H. Neopenalismo e Constrangimentos Democráticos. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. [1] ROSA, Alexandre Morais da. KHALED JR., Salah H. Neopenalismo e Constrangimentos Democráticos. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 30. [2] SILAS FILHO, Paulo. O direito pela literatura: algumas abordagens. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 43. Comments are closed.
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