Artigo de Ane Caroline dos Santos Silva e Hellen Fernanda de Castro na coluna do estudante, sobre a tipicidade do ilícito penal de vadiagem e o sistema econômico, elaborado a partir de uma leitura histórica e econômica, vale a leitura! ''Tendo estes conceitos como base, pode-se entender que o sistema econômico lida com “normas de intervenção do Estado no domínio econômico”[14], ou seja, o Estado intervém nas relações econômicas para o seu desenvolvimento próprio através de normas fiscalizadores, controladores e proibitivas de condutas para regular a massa produtiva da sociedade. Assim, aquele que não produz, ou seja, o vadio, é punido pelo Estado, justamente por não produzir riquezas''. Por Ane Caroline dos Santos Silva e Hellen Fernanda de Castro É mister que para se adentrar ao assunto propriamente dito se faça uma breve exposição sobre a vadiagem. Logo após a Proclamação da República se fez necessário substituir as Ordenações do Reino por um ordenamento jurídico nacional, sendo assim, no ano de 1830 surge o Código Penal do Império do Brasil, onde em seu capítulo IV, artigo 295[1] traz a seguinte redação “Art. 295. Não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta, e util, de que passa subsistir, depois de advertido pelo Juiz de Paz, não tendo renda sufficiente.” Ocorre que, no dia 13 de maio de 1988 houve a abolição formal da escravidão no Brasil, fato este que acabou por sobrecarregar a mão-de-obra nos centros urbanos, como bem explica Chalhoub[2] “A abolição da escravatura liberou mão-de-obra do campo para a cidade, formando-se um mercado de trabalho com superabundância de oferta, na medida em que o afluxo de imigrantes veio a reforçar o contingente dos libertos e a melhoria das condições de higiene, reduzir a mortalidade”. No mesmo ano, vem um projeto de lei da Câmara dos Deputados pelo Ministro da Justiça Ferreira Vianna, onde este “imaginava que o número excessivo de libertos, sem emprego e sem moradia, era fator potencial ao aumento da criminalidade; isso devido ao ócio que experimentavam”[3]. O Código Penal de 1890, também trazia em um de seus artigos a repressão pelo ócio[4] e, ainda, fazia com que o mesmo assinasse um termo se comprometendo a tomar ocupação dentro de 15 dias contados do cumprimento da pena, algo inviável nos dias atuais. Posteriormente, em 1941 com o Decreto-Lei n° 3.688 a mesma matéria é tratada em seu artigo 59, porém, não é bem recebida por doutrinadores e jurisprudências, além de se ter um entendimento predominante pela sua não recepção pela Constituição de 1988[5]. Deste modo, no Recurso Extraordinário n° 583.523, onde o Ministro Gilmar Mendes julgou pela não recepção do artigo 25 da LCP, acabou por citar Paulo Lúcio Nogueira[6]: “O problema da vadiagem é mais sociológico do que jurídico e o seu combate é mais preventivo do que repressivo. Não se pode reprimir eficazmente uma situação criada com o concurso do próprio Estado, que nada faz no campo preventivo em favor de muitos infelizes. Dispondo de vastas áreas e de meios eficazes, cumpria ao Estado cultivá-las mediante o trabalho dos desocupados habituais. Seria a maneira ideal de empregá-los, obrigando-os a um trabalho sério e produtivo.” Veja-se que, muitos entendem que o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais não se encaixa no mundo contemporâneo, justamente por este ser concebido durante a Ditadura Militar, no governo de Getúlio Vargas. Ainda, o mundo moderno traz um número alarmante de desemprego, fruto do descaso por parte do Estado e que afeta desproporcionalmente a população de baixa renda, principal afetada no que diz respeito a aplicabilidade do ilícito penal em questão.
O ato em si tem como sujeito ativo qualquer pessoa, desde que esta esteja válida para o trabalho e como sujeito passivo, o próprio Estado. Ainda, Jesus bem explica que o vadio ou ocioso é aquele que não trabalha, “aquele que, sendo apto pra o trabalho, não possui ocupação, não tendo renda para sua subsistência”.[8] Ao frisarmos a seguinte passagem supracitada “não tendo renda para sua subsistência”, pode-se concluir que o tipo vem para incriminar uma parcela da sociedade, aquela que se encontra à margem do centro social, justamente porque aquele que possui uma renda, foge da elementar da figura contravencional. Assim, há “um tratamento para miseráveis, “pés de chinelo”, ignorantes e pobres, e um tratamento para ricos e criminosos do colarinho branco”.[9] Segundo o Infopen – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias[10], no ano de 2016 a população total carcerária estava dividida em 53% Negros e 46% Brancos. Já no que diz respeito ao grau de escolaridade, o índice de pessoas privadas de liberdade com o Ensino Fundamental Incompleto era de 51%, enquanto o de pessoas com Nível Superior Completo era de 15% e de Ensino acima de Superior Completo era de 4%. Ainda, é válido ressaltar a questão do alto índice de desemprego no país, o que evidentemente acarreta o ócio. Porém, não é somente o ócio que está contravenção vem reprimir, mas sim, “o estado de vadiagem, por motivo da periculosidade, que pode ser meramente social ou criminal”.[11]
“A ordem econômica constitui, portanto, um sistema próprio, ou se apreciado do todo constitucional, de um subsistema de normas e princípios que dão dimensão jurídica à ordem econômica, adotando formalmente o sistema econômico capitalista, haja vista que ela se apóia inteiramente na apropriação privada dos meios de produção e na iniciativa privada (art. 170 vs. art. 173). E, justamente pela adoção desse sistema econômico, é que se justifica a criação de uma ordem econômica como instrumento regulador, pois a liberdade de iniciativa requer a presença firme do Estado – enquanto agente da ordem política – para disciplinar o mercado.” Neste sentido, Silva[13] complementa com as 3 peças fundamentais para um Estado bem desenvolvido: “São, principalmente, três as variáveis necessárias para o crescimento econômico, que vem a proporcionar maior disponibilidade de bens e serviços: a) população (cidadãos); b) capital (investimento e poupança); e c) tecnologia (P&D). Para o crescimento econômico é importante o aumento da produtividade do trabalho. A produtividade é reflexo da intensificação na utilização do capital e do avanço tecnológico. Não obstante, a mão-de-obra empregada no processo produtivo é, também, fundamental para o crescimento econômico”. Tendo estes conceitos como base, pode-se entender que o sistema econômico lida com “normas de intervenção do Estado no domínio econômico”[14], ou seja, o Estado intervém nas relações econômicas para o seu desenvolvimento próprio através de normas fiscalizadores, controladores e proibitivas de condutas para regular a massa produtiva da sociedade. Assim, aquele que não produz, ou seja, o vadio, é punido pelo Estado, justamente por não produzir riquezas. Para o Estado, vadio é aquele que “não contribui com seu tempo de trabalho para a produção geral da sociedade, ou seja, definitivamente, quem não tem ocupação”[15] Deste modo, tem-se como exemplo o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais, ou seja, a vadiagem vem como forma do Estado punir aquele que não produz riquezas, mas somente aqueles que não produzem e não podem continuar consumindo, pois aqueles que ainda podem consumir, mesmo estando no ócio, não são alvos do tipo contravencional. A explicação para este tipo de punição é o custo que o Estado tem com o vadio, principalmente no que diz respeito a saúde, moradia, dentre outros. Como bem aponta Silva[16], “Pune-se o assalariado vadio e a vadiagem do capitalista é aceita no contrato coletivo nas sociedades capitalistas e execrada nas sociedades mais comunitárias”. Desta forma, um questionamento deve ser levantado: o vadio realmente escolhe ser vadio ou acaba estando nesta posição por um descaso por parte do Estado?
De acordo com o Instituto “são investigados 211.344 domicílios particulares permanentes, em aproximadamente 16.000 setores censitários, distribuídos em cerca de 3.500 municípios”[17]. Tabela 1: elaborada pelas autoras deste artigo com base nos dados do IBGE.
Observa-se o crescente aumento na taxa de desocupação desde 2014 até os anos atuais. Entre 2014 e 2015, Dilma Roussef ocupava o cargo de Presidente e em 2016 houve o impeachment da Presidente[1], ocupando o cargo seu vice Michel Temer. Em 2017, entra em vigência a Lei n° 13.467, trazendo mudanças na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT)[2]. Em 2019, Jair Bolsonaro assume o cargo no Poder Executivo. De acordo com debates em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação participativa, realizada dia 14 de maio de 2018, “a Reforma Trabalhista impede o acesso do trabalhador à Justiça, além de gerar desemprego e trabalho análogo à escravidão”[3].
Como exemplo de como a contravenção estudada era tida na ordem jurídica, tem-se um acordão do ano de 1984: RHC 61364 / SP - SÃO PAULO RECURSO EM HABEAS CORPUS Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK Julgamento: 10/04/1984 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação DJ 18-05-1984 PP-07727 EMENT VOL-01336-01 PP-00084 Parte(s) RECTE.: JOSIMAR RIBEIRO GUTEMBERG. ADV.: MAGDA CRISTINA MUNIZ. RECDO.: TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. Ementa HABEAS CORPUS. VADIAGEM. JUSTA CAUSA. PACIENTE QUE NÃO PROVA ESTAR EXERCENDO O OFICIO PARA O QUAL SE DIZ HABILITADO, OU CONTAR COM RENDA LICITA, A GARANTIR-LHE A SUBSISTENCIA. ANTERIOR SINDICANCIA POR VADIAGEM, SEM QUE ISSO TENHA LEVADO O PACIENTE A OPÇÃO POR ALGUMA FORMA DE TRABALHO. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER QUE CONTAMINE O PROCESSO CONTRAVENCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. No caso em questão, o auto de prisão em flagrante trazia que, alguns policiais, ao investigarem um suposto roubo, detiveram um paciente que não estava portando seus documentos, e que segundo eles “perambulava, alta noite, com outros travestis”[4]. Verificou-se na delegacia que o mesmo já possuía uma sindicância por vadiagem, mas que no prazo estipulado não assumiu ocupação lícita. Sendo assim, o Habeas Corpus não foi concedido por não ser verificada “prova idônea de que tenha ele alguma renda lícita, a garantir-lhe a subsistência”[5] Diante o exposto, a percepção predominante é de que bastando a verificação de impossibilidade de subsistência, cabe ao sujeito o título de “vadio”. Nos dias atuais, a jurisprudência acaba por ser mais branda, ao trazer requisitos a mais para tal enquadramento, fazendo com que a verificação do ato contravencional vadiagem seja mais rigoroso. Como meio de melhor elucidação dos dias atuais, tem-se o Recurso Crime n° 71003349370 RS: APELAÇÃO CRIMINAL. VADIAGEM. ART 59 DA LCP. SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DEFENSIVO. INSUFICIENCIA PROBATÓRIA. Carecendo a instrução de provas seguras e suficientes a cerca da autoria e da materialidade delitiva, assim como de anterior habitualidade ociosa ou de previsão de subsistência mediante ocupação ilícita, impositiva a reforma da sentença condenatória. RECURSO DEFENSIVO PROVIDO. (Recurso Crime N° 71003349370, Turma Recursal Criminal, Turmas Recursais, Relator: Edson Jorge Cechet, Julgado em 30/01/2012). Com relação a ementa supracitada, o caso gira sob a denuncia e condenação do recorrente por abordar pessoas em frente a um supermercado, pedindo dinheiro e “os perturbando”[6]. Foi imputado a ele o artigo 59 da Lei de Contravenções Penais, onde o relator vota contra, alegando que há somente uma testemunha, onde segundo ele “sequer presenciou a pratica delitiva”[7]. Ainda, levanta a questão de que o ato contravencional não é aplicado se “não se prova a habitualidade, o estado em que o indivíduo, podendo trabalhar, não o faz porque não quer”[8]. Por fim, cita que é necessário comprovação anterior da habitual ociosidade, uma vez que alguém pode a qualquer momento ser surpreendida com o desemprego.
Nota-se, durante todo o histórico da vadiagem, que o intuito era perseguir os mais pobres, ficando evidente uma prática odiosa. A partir dos dados de desemprego e condutas dos governantes, fica refletido na sociedade a quem se dirige a preocupação por parte do Estado. É mais fácil punir do que tratar os problemas sociais. Observa-se de forma camuflada, a exclusão social, no artigo 59 da referida lei, o qual ainda se encontra vigente. Tanto no Brasil, quanto no exterior, há muitas pessoas que estão desempregadas por conta do sistema capitalista, consequência das formas de governo, onde propostas são apresentadas e aprovadas e assim acabam por prejudicar ainda mais a situação da classe desfavorecida. Roesler, Juiz do Trabalho da 4a Região e membro da Associação Juízes para Democracia (AJD) diz:“Por essas terras tupiniquins, sempre foi mais fácil criminalizar determinados comportamentos que iam de encontro ao senso comum das “pessoas de bem” do que tratar de resolver nossas chagas sociais”[9]. Diante do exposto, é notável que só é punido pelo ato contravencional o “vadio” que não possui dinheiro para a sua subsistência, o que acaba evidenciando o descaso por parte do Estado ao não desenvolver métodos que possam coibir o aumento em massa do número de desempregados, que não encontram outro método de sobrevivência senão as ruas das cidades. Hellen Fernanda de Castro Acadêmica de Direito (UNINTER); E-mail: [email protected] Ane Caroline dos Santos Silva Acadêmica de Direito (UNINTER), Graduada em Ciências Biológicas; E-mail: [email protected] REFERÊNCIAS E NOTAS: [1] Impeachment de Dilma Roussef. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/destaque-de-materias/impeachment-da-presidente-dilma. Acesso em: 29 de outubro de 2019. [2] Justiça do Trabalho. Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: http://www.tst.jus.br/noticias/-/asset_publisher/89Dk/content/primeiro-ano-da-reforma-trabalhista-efeitos?inheritRedirect=false. Acesso em: 06 de novembro de 2019. [3] Senado Notícias. Reforma Trabalhista gera desemprego e impede acesso à Justiça, dizem debatedores. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2018/05/14/reforma-trabalhista-gera-desemprego-e-impede-acesso-a-justica-dizem-debatedores. Acesso em: 6 de novembro de 2019. [4] RHC 61364 / SP - SÃO PAULO. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14684294/recurso-em-habeas-corpus-rhc-61364-sp/inteiro-teor-103078379?ref=juris-tabs [5] Ibidem. [6] Recurso Crime N° 71003349370. Disponível em: https://tjrs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21174682/recurso-crime-rc-71003349370-rs-tjrs [7] Ibidem. [8] Ibidem. [9] Sobre a Vadiagem e o preconceito nosso de cada dia. Disponível em: https://portal-justificando.jusbrasil.com.br/noticias/371606631/sobre-a-vadiagem-e-o-preconceito-nosso-de-cada-dia?ref=topic_feed. Acesso em: 6 de novembro de 2019.
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