Me arriscarei em águas misteriosas e com alguns Icebergs pelo caminho a ser percorrido. Seguindo o exemplo de Paulo Silas e André Pontarolli, tentarei nas próximas linhas realizar uma abordagem entre a arte (filme) e o processo penal.
Acredito que sem chances em dar um “Spoiler” do filme Titanic, pois penso que todos um dia já tenham assistido. Passarei a relatar uma cena específica do filme. Não será o naufrágio do navio (embora o processo penal e suas garantias estejam caminhando ao mesmo destino da referida embarcação). Em certa cena Rose, interpretada pela atriz Kate Winslet, em um ato de desespero, vai até a proa do navio, sobe a grade e passa para o lado de fora, agarrando-se às grades do navio. Neste momento chega Jack, interpretado por Leonardo Di Caprio, e começa a falar com a moça, até então conhecida somente de vista por ele. Para que Rose não pule, Jack começa a tentar a convence-la a não saltar, relatando que as águas são extremamente frias, que sobreviveria ao impacto na água, porém acabaria com a respiração dificultada por causa da água gelada e morreria pelo frio, sendo uma morte horrível. Não conseguindo convencer Rose, Jack menciona que se ela pulasse, como já estava envolvido, teria que pular na água gelada, começando a retirar seu colete e suas botas. Após alguns minutos da cena, Jack convence Rose a voltar para dentro do navio, estendendo-lhe a mão, momento este, que Rose escorrega e Jack a segura, e ela grita por socorro. Ouvindo os gritos, os marujos da embarcação correm em direção a proa para averiguar o que estava ocorrendo, e neste meio tempo, Jack consegue puxar a moça de volta ao navio, e ambos caem no chão, sendo que ele cai por cima de Rose. Neste exato instante, em que Jack está por cima de Rose, os marujos chegam e avistam esta cena. Prolegômenos necessários: Jack fazia parte de um grupo de irlandeses pobres que viajava no navio, mais precisamente nos porões da embarcação, Jack ganhou uma passagem para a viagem em uma mesa de jogo, enquanto Rose era uma moça de família rica (porém vivia de aparência, pois estavam falidos), e que viajava na parte de cima com os demais de sua classe social, ou seja, na primeira classe, o que já demonstra claramente a segregação social e distanciamento entre classes. Retornando a cena, quando os marujos avistam ambos no chão, verificam que as botas e o colete de Jack estão no chão, e ele em cima da moça, então ordenam que ele se afaste dela e não se mova, e chamam a segurança. Logo após, vem a cena de Rose sendo consolada e recebendo água, e Jack sendo algemado e confrontado pelo noivo de Rose, que lhe indaga: “Isso é inaceitável, o que o fez pensar que poderia pôr suas mãos em minha noiva?” Então Rose intervêm e menciona que foi um acidente, e inventa a história de que ela tentou ver a hélice, escorregou, momento este que Jack a salvou. Mesmo após a intervenção da moça, o guarda ainda questiona Jack: “Foi assim que aconteceu?” (Seria esse o contraditório?) e ele confirma, sendo, portanto, desalgemado. Mas o que isto tem em comum com o processo penal? Vamos lá! No Processo Penal, as testemunhas servem como meio probatório e estão disciplinadas entre os artigos 202 e ao 225, do Código de Processo Penal. Importante relembrar que, ao menos no papel, não existem provas que valem mais que as outras, devendo ser avaliado todo um conjunto, para que assim possa o julgador chegar a um veredicto. Suponhamos que a moça não sobrevivesse por alguma outra causa, desde sua queda no chão batendo com a cabeça, até outras causas que porventura, a deixasse inconsciente. Então, teríamos 03 testemunhas (os marujos) que visualizaram, um jovem, estrangeiro, pobre, sem as botas e o colete, por cima de uma moça rica e bonita, contra a palavra do acusado (Jack). E como é cediço na jurisprudência pátria, as testemunhas possuem maior valor probatório do que a palavra do acusado, tendo em vista que, conforme comumente é dito nos tribunais e doutrinas, as testemunhas nada têm contra o acusado para prejudicá-lo. Há um fator importante a ser levado em conta na valoração da prova, o momento que a testemunha viu os fatos, isso sem mencionar as falsas memórias bem exploradas por Franco Cordeiro. Nesta toada, as testemunhas relatam aquilo que viram, mas não só isso, por se tratarem de seres humanos, a partir de algo que se viu, elaboram dentro de si toda uma situação fática, que por muitas vezes, não chegou nem a ocorrer. Nesta imaginação, ou uma falsa memória, a pessoa leva em conta a cena que avistou, as condições do lugar, e mais importante, a aparência e classe social que pertencem as pessoas envolvidas na cena. Podemos analisar o caso do Titanic, e fazer uma pergunta inversa, se o homem que estivesse por cima de Rose, fosse alguém pertencente a primeira classe do navio? Qual seria a reação dos marujos ao avistarem a cena? Quais as conclusões que elaborariam em suas mentes? Seria ele automaticamente algemado? São fatores a serem levados em consideração na avaliação do testemunho, por muitas vezes nos deparamos com depoimentos em que, a pessoa sequer estava no local, mas relata com tanta certeza os acontecimentos, que para ela é como se lá estivesse. Isto é produzido pelas suas falsas memórias, ou seja, ela tenta preencher uma lacuna em sua memória com algo que possa fazer sentido com a cena que avistou, e isso retira a fidedignidade de seu depoimento. Deve-se mencionar que a testemunha não realiza isso de caso pensado, mas sim, seu cérebro, quando provocado a se recordar de algo, tenta buscar aquilo que avistou, e o preenchimento de lacunas é automático, sendo que a própria testemunha acredita que aquilo que ela está recordando seja verdade. Outro fator importante a se relembrar, é que os depoimentos de ambas as testemunhas, que viram os mesmos fatos, podem ser divergentes entre si, justamente por causa da percepção de cada uma aliada as lacunas da memória. Não por menos, que alguns doutrinadores chamam testemunhas como a prostituta das provas, pois são pouco confiáveis, e quiçá podem ser a única prova de uma condenação. Não esqueçamos ainda, que são seres humanos, passíveis de erros, confusões mentais, egos, e propósitos próprios capazes de conduzir um depoimento proposital para beneficiar ou prejudicar uma parte. Se houvesse uma audiência, e os marujos do Titanic fossem chamados, suas mentes certamente tentariam preencher as cenas pretéritas, correndo-se o risco de algum deles falar ainda, que viu que o acusado (Jack) estava tentando forçar a moça (Rose) a praticar algum ato contra sua vontade. Como não posso deixar de mencionar, em praticamente todos os escritos, faço a correlação no que tange os crimes de entorpecentes. Usualmente nos tribunais as únicas testemunhas nos delitos de entorpecentes são os policiais que realizam a abordagem, normalmente na calada da noite, em indivíduos que estão em atitude suspeita (confesso que nunca entendi muito bem essa atitude suspeita). Enfim, no momento da abordagem, o indivíduo está portando entorpecentes, e como já relatado em vários artigos escritos na coluna sobre política de drogas, com a lei realizando uma diferenciação tão tênue entre usuário e o traficante, fatalmente o usuário será indiciado como traficante e preso em flagrante. Ocorre que, um grande problema está formado, que provas serão produzidas no processo além da substância apreendida? Aí que entra a palavra do policial! Não raro, os policiais relatam em audiência de instrução, que a região onde ocorreu a abordagem é conhecida por tráfico de entorpecentes, ou que há várias narcodenúncias que na região ocorria o tráfico, bem como localizaram a substância com o acusado. Não digo que os policiais estão mentindo em audiência, pois, convenhamos que para um usuário comprar entorpecentes, ele deverá se deslocar até um local de venda, ou seja, um ponto de tráfico. E corriqueiramente, se vê a valoração da palavra dos policiais como fundamento para o decreto condenatório, baseando-se no que os policiais avistaram no ato da abordagem (região conhecida por tráfico aliada a posse do entorpecente) para se ter uma condenação pelo artigo 33 da lei 11.343/06. Perceba o problema, estes são os marujos chegando ao Jack e a Rose, avistando somente o fim, e não os atos que antecederam, ou seja, se o acusado foi comprar a substância na região e estava retornando para utilizá-la em outro lugar, não podendo precisar se a substância se destinava ao consumo ou ao tráfico. Aliado este fator, está o julgador olhando o acusado, que poderá ser pobre, não possuir trabalho, usuário de entorpecentes, formando sua convicção, de que o acusado não teria dinheiro suficiente para comprar aquela substância para o uso recreativo. E quando o magistrado se depara com uma situação inversa do que havia preconcebido em sua mente, se estabelece o quadro mental paranoico como menciona Franco Cordeiro. Pois todas as suas convicções que antes afirmaram, caem por terra, e ele tentará buscar outros elementos para tentar apoiar a sua concepção anterior, ou seja, de que aquele sujeito é culpado por exemplo. Menciono isso, porque em uma rápida busca jurisprudencial, verifica-se situações em que o sujeito é preso com a posse de entorpecentes, o defensor consegue comprovar nos autos que o acusado trata-se de um usuário, através de laudos médicos, internamentos anteriores em clínicas de reabilitação, e demais provas, mas mesmo assim, chega-se a um decreto condenatório pelo tráfico, pelos seguintes dizeres: “Não raro, usuários de entorpecentes realizam a mercancia para sustentar seu vício, e, portanto, o fato de ser o acusado usuário não afasta a tipificação do artigo 33 da lei 11.343/06”. Como o acusado se defenderá de uma situação destas? No exemplo do filme, caso Rose não estivesse ali para contrariar a palavra dos marujos, a palavra de Jack certamente perderia forças diante a palavra das testemunhas. O que se pretende demonstrar com o presente escrito, é que se faça uma reflexão acerca da valoração demasiada e equivocada da palavra da testemunha, e adotando-a como critério objetivo e único de uma condenação, sem avaliar realmente o caso concreto, estaríamos consequentemente condenando mais um Jack, sem a dramaturgia e Rose para salvá-lo das algemas, e com isso, o processo penal das garantias, inevitavelmente, rumará ao mesmo destino do Titanic. Bryan Bueno Lechenakoski Advogado Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Pós-graduando em Direito Contemporâneo pelo Curso Jurídico. Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |