Qualquer avanço no sentido de ampliar um saber passa pela atitude de desconfiança para com a compreensão já construída acerca do objeto daquele saber. Isso significa que a abordagem mais indicada para quem quer produzir conhecimento e contribuir com o debate e desenvolvimento de uma pesquisa, de modo a alavancar novos horizontes, é a colocação em dúvida do que já foi produzido. Obviamente isso não significa o desprezo ou descarte do que já se descobriu, mas o desejo de superação, de contribuição aditiva, de ampliação dos limites do que já se compreendeu.
Partindo desse pressuposto, para quem se empenha no estudo das ciências sociais, com enfoque naquilo que desagua no direito, uma ferramenta basilar de trabalho são as perguntas: Por que essa lei e não outra? De onde surgiu a peculiar sensibilidade (incômodo) que permitiu a criação deste dispositivo normativo? A que possíveis interesses esta legislação atende? São estes interesses republicanos e democráticos? Quais os possíveis efeitos não previstos ou previstos e ignorados da vigência desta norma? Infelizmente é raro perceber esta atitude crítica bem fundamentada nos debates onde se originam as leis que regerão condutas humanas. Há sim debates, mas feitos de forma apressada, como superação de uma etapa mecânica na linha de montagem da lei que virá. Na confecção de leis penais isso se mostra extremamente prejudicial. É comum perceber o pouco crédito conferido ao desenvolvimento dogmático e aos estudos sociais relevantes quando da feitura de novas leis. Em muitos casos a “voz” mais ouvida são a dos “empreendedores morais” travestidos de “voz do povo”. O propósito deste breve artigo é oferecer uma reflexão sobre a política de criminalização de drogas a partir da atitude descrita nos dois primeiros parágrafos. Significa que não vou me ater a um estudo da lei em si (no caso específico a Lei 11.433/06) mas quero tecer alguns comentários sobre o que “vem antes”, ou seja, sobre qual a sensibilidade que permite que o uso e comércio (condutas finalísticas de acordo com a moderna teoria do delito) de determinadas substâncias seja criminalizado enquanto outras similares circulam no mercado livremente. Interessa precipuamente a esta reflexão o modo como a sociedade vem lidando com a questão do vício. Naturalmente o espaço de que aqui disponho é significativamente reduzido para que se possa retratar um estudo profundo sobre a “anatomia” do vício. Essa tarefa precisa inclusive ser enfrentada sob uma multiplicidade de análises, calcada em saberes bastante diversificados. Ainda assim, se propõe aqui lançar uma pequena semente que pode brotar para estimular novas digressões e fomentar novas questões que serão tratadas com mais vigor em outros momentos. Para iniciar surge a seguinte questão: o vício é característica de personalidades voltadas ao crime? Melhor, o vício é “propriedade” de alguns poucos cidadãos “desviantes”? A resposta pode ser fornecida a partir de avaliações de cunho moral, religioso, anatomopatológico, psicanalítico, enfim, pode-se procurar uma “causa” em diversos ramos de conhecimento. Isso seria a atitude “clássica” ou “positivista” de abordagem da questão. Porém, a história é repleta de exemplos que desincentivam esta forma de análise. Isso porque diante de fenômenos sociais as respostas etiológicas são sempre parciais e arbitrárias. Não dão conta da complexidade. Pensa-se então numa resposta sociológica. Aqui aparecem desdobramentos interessantes. Quando se fala de “vício” nossa mente encaminha para este significante imediatamente a imagem estigmatizada do viciado em drogas[1]. Somos, afinal, produto de nossos pré-conceitos. Isso é inevitável. Mas se queremos alcançar novos horizontes, como vimos, precisamos iniciar negando o que acreditamos saber. Então, vamos negar que o “vício” seja aquilo que nossa mente projetou quando lemos ou ouvimos esta palavra. Vamos suspender nossa concepção voltada para o usuário de entorpecentes (ou mesmo o alcoólatra, embora para crítica social que aqui se constrói já haveria uma modesta diferença a ser analisada no modo como a sociedade se projeta sobre ambos). Partindo disso, será possível identificar vício em outras condutas? Rapidamente poderíamos citar o vício nas diversas formas de jogos de azar. É interessante notar que já aqui percebemos uma diferença mais robusta no modo como são percebidos estes viciados em relação aos citados no parágrafo anterior. Nota-se em geral uma relação diferente da sociedade com estes últimos. Enquanto para aqueles parece haver uma maior reprovação moral/social, em geral a estes últimos se atribui de pronto uma justificação médica. Seria interessante levantar a pergunta sobre por quê essa diferença se dá. Porém, iremos um pouco mais adiante. Existiriam formas de vício que são absorvidas pela sociedade sem qualquer reprovação social ou moral? Haveriam vícios “úteis” à lógica do sistema de consumo que passam inócuos ao radar moral e/ou sancionatório (penal) do Estado? Nos ateremos a dois exemplos. O primeiro deles diz respeito aos workaholics. Em tradução livre: trabalhadores compulsivos. Não vou entrar aqui no mérito da tênue divisão que pode parecer haver entre os que amam seu trabalho e os que são compulsivamente ligados a ele. Não me parece inclusive que a linha seja tão tênue ao final. De qualquer modo, em que pese essa ligação ser hoje encarada por algumas frentes pscicanalíticas como um transtorno (em geral ligado ao TOC ou algo similar) o fato é que estamos diante de um vício que possui um status social completamente diferente dos anteriormente mencionados. Primeiramente vejamos se a compulsão por trabalho se enquadram no significante vício. A neurociência atual diagnostica ou procura definir determinada relação do homem com algo externo a si como um vício pelo tipo de transformação causada pelo exercício desta relação no cérebro do paciente. Esta transformação não precisa obrigatoriamente ser visualizada através de um exame de avaliação neurológica em si (como um eletroencefalograma ou uma ressonância), sendo possível seu diagnóstico pela avaliação clínica. Dá-se ênfase especial para percepção da relação atividade/recompensa/alívio entre o paciente e conduta ou o objeto do vício. Partindo para uma análise complementar que permita a definição de determinado comportamento como viciado, um critério razoavelmente pacificado de aferição (confirmação) é a existência de controle da pessoa sobre a conduta, de modo a não permitir efeitos prejudicais sobre suas relações com outras pessoas, sua autoestima, sua saúde física, etc. Partindo desses e de outros critérios é possível definir, sem sombra de dúvidas, a compulsão pelo trabalho como um vício. Porém, o que nos interessa neste esboço é a percepção social que se tem do viciado. Neste sentido não é difícil observar uma drástica diferença para com os primeiros grupos de viciados já citados. A imagem do trabalhador compulsivo, longe do estigma segregante, adquire na sociedade de consumo o status de modelo, literalmente falando. Ora, não raro se vê nas campanhas publicitárias o retrato do homem bem sucedido justamente na imagem do viciado em trabalho. O homem que nunca possui tempo para família, que corre atrás de seu melhor desempenho profissional, que vive sobrecarregado de compromissos e na busca de novas possibilidades e cargos é presença obrigatória nas produções hollywoodianas como protótipo da versão do sonho americano adaptado ao neoliberalismo. A pergunta que surge para o pesquisador social que procura se debruçar sobre o tema proposto neste artigo fica sendo: por que aquele vício é criminalizado e não esse? Mais uma vez: o que cria a sensibilidade que permite a tipificação penal do comércio daquelas substâncias voltados ao alívio ou prazer, mas não permite, por exemplo, uma alegação de abandono afetivo ensejador de dano moral no caso de um pai que enche os filhos de brinquedos, mas raramente se encontra em casa ou disposto a empreender qualquer atividade recreativa com estes? Note: não se está pleiteando que esta última possibilidade seja tornada factível; não é esse o caminho, que fique clara minha posição neste sentido. O que se indaga aqui é sobre aquilo que permite a diferenciação. Que permite, por um lado a valorização social de um comportamento viciado e de um outro lado a estigmatização e penalização de outro comportamento com um princípio social que guarda relações de semelhança não absolutas, mas com um elo claramente perceptível. Não se argumenta o ponto anterior no sentido de que não hajam diferenças, de que não hajam consequências diversas no modo como estes vícios são satisfeitos, ou melhor, amenizados. Nem se argumenta no sentido de que o vício em substâncias entorpecentes não possui sérios efeitos deletérios sobre quem as consome e sobre quem precisa conviver com quem as consome. Note que aquilo que se pretende colocar é uma análise de pressupostos penais, ou seja, do que vem antes da decisão incriminadora. Neste sentido, sobra pouca lógica de cunho social, calcada em questões de saúde pública, para justificar a diferenciação e tipificação. O argumento que sobrará será aquele com viés de lógica autopoiética – é crime porque a lei diz que é crime. Um segundo exemplo: estudos cada vez mais frequentes tem relatado o crescente vício em dopamina, relacionado ao uso de aparelhos eletrônicos, em especial no tocante ao acesso às redes sociais. A dopamina é um neurotransmissor ligado diretamente ao sistema de comportamento conectado à recompensa, precursora da adrenalina e da noradrenalina (uma das principais responsáveis pelo nosso humor, controle da ansiedade, sono, apetite, etc). Segundo apontam as conclusões destes estudos[2] a constante checagem das reações de outros a seus comentários ou postagens nas redes sociais, em especial quando se tratam de fotos ou notícias de consecuções pessoais, está diretamente relacionada com a liberação da dopamina. O grande problema é que nossa relação com a dopamina tende a se tornar significativamente viciada se não for bem administrada. Somando-se isso ao fato de que adolescentes recebem como presente dos pais e amigos cada vez mais cedo aparelhos eletrônicos capazes de acessar as redes sociais, psiquiatras e neurocientistas manifestam grande preocupação com os efeitos de longo prazo neste vício por aprovação (por dopamina na verdade). O problema já tem levado um grande número de jovens (e não tão jovens) às salas de psicanálise. É curioso notar que, quando a pessoa não possuí uma vida social muito interessante para retratar nas redes sociais costuma-se fabricar uma completamente diferente da real, agravando o quadro compulsivo (vício) com a criação de uma projeção de personalidade desconectada da vivência concreta, operando quadros de delírio e estreitando os limites com uma esquizofrenia (de origem mais social do que psíquica). Também pessoas sem habilidades sociais significativas e que não são dotadas de atributos naturais valorizados (beleza preferencialmente) costumam demonstrar um comportamento mais agressivo nas redes sociais, com o intuito de polemizar suas opiniões para conseguir acesso a liberação de dopamina oriunda da atenção recebida. Em que pese uma crescente preocupação com este assunto e uma ampliação do debate acerca de quais limites deveriam ser trabalhados com os filhos no tocante ao acesso às redes socais, qual a reação social geral relacionada a este vício? Para o que nos interessa de modo primordial neste texto, qual o grau de estigmatização que enfrentam os que não largam seus smartphones nem numa refeição em família? Quem sabe uma ou outra admoestação paterna ou dos amigos, mas quem pensaria em criminalizar o uso destes aparelhos dentro de ambientes sociais, numa tentativa de reduzir a incidência do vício em dopamina? Quando recentemente uma escola decidiu que os alunos precisariam entregar seus aparelhos celulares aos professores antes do início da aula a reação de muitos foi vigorosa no sentido de que isto desrespeitava um direito fundamental de decidir sobre si mesmo. Assim, daquilo que se propôs colocar nestas linhas como semente de desconforto e desconfiança frente a atual política de drogas, fica a provocação para refletirmos a partir de um ponto de vista que permita uma coerência e uma avaliação cuidadosa da melhor abordagem para o problema do uso, do vício, do comércio de drogas e das consequências destas abordagens. Reitero aqui que não se está a propor a aceitação do uso das substâncias em geral tidas como ilícitas como algo inofensivo ou desejável. Longe disso. Qualquer pai, mãe ou amigo faz muito bem em intervir para impedir que um conhecido, um amigo, um familiar percorra o caminho que vai da experimentação à dependência. O que precisa ser discutido, e espero que o texto aqui contribua para isso, é a resposta que o direito penal deve dar (se é que deve dar alguma), dentro da lógica do Estado de Direito, para o comércio e consumo de substâncias psicoativas não prescritas por um profissional com formação reconhecida pelas entidades competentes (MEC, CFM, etc) em ciências da saúde. Paulo Roberto Incott Jr Mestrando em Direito Pós-Graduando em Direito Penal, Processual Penal e Criminologia Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal [1] Sempre que houver uma referência neste artigo a “drogas” se estará fazendo menção das substâncias elencadas na Portaria 344/98 da Anvisa. [2] Li diversos deles em periódicos científicos recentemente. Não ficarei relacionando aqui para poupar tempo. Entretanto, para que os argumentos não sejam taxados de falta de cientificidade me coloco à disposição para resgatar os artigos e enviar a quem queira me contatar pessoalmente Referências: BECKER, Howard Saul. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008 CARVALHO, Salo. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016 LEWIS, Marc. The Biology of Desire: Why Addiction Is Not a Disease. New York: PublicaAffaoirs, 2016 Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |