Coluna de Adriano Bretas no sala de aula criminal, vale a leitura! ''A transmissão online de júris atendeu a um importante propósito de dar publicidade aos atos processuais especialmente durante o período da pandemia do COVID-19. Todavia, por paradoxal que possa parecer, atualmente, vencida a quadra histórica do período pandêmico, a transmissão de júris pelo YouTube milita justamente em sentido contrário ao que se prestou num primeiro momento. Com efeito, a transmissão de julgamentos online tem afastado as pessoas dos recintos forenses. Em vez de comparecer à solenidade processual, o público assiste remotamente o ato. Enquanto o YouTube atinge picos de audiência virtual, os plenários, não raro, ficam vazios, as galerias às moscas. Assim, paradoxalmente, a transmissão online de júris vem na contramão do que pretende ser um julgamento popular, o ingresso do povo no ambiente forense''. Por Adriano Bretas A publicidade dos atos judiciais é, sem dúvida alguma, uma das garantias individuais inerentes ao Estado Democrático de Direito. Não por acaso, o legislador deu-lhe assento constitucional em cláusula pétrea, insculpida no art. 5º, LX, da Magna Carta. No Tribunal do Júri, essa garantia se eleva à máxima potência, especialmente porque se trata de um julgamento popular, pautado pela participação do povo. Essa regra, contudo, não é absoluta. Comporta modulações. Inclusive no próprio Tribunal do Júri. Evidentemente, não é usual que um julgamento perante o Tribunal do Júri seja realizado a portas fechadas. Entretanto, embora incomum, essa possibilidade vem sendo aplicada para casos excepcionais, seja para a preservação da segurança dos presentes, seja para a preservação do sigilo de dados sensíveis, tais como medidas de combate ao crime organizado, testemunhas incluídas em programas de proteção e provas que contenham exposição da intimidade, mormente quando se trata de casos que têm como pano de fundo organizações criminosas. Neste diapasão, o art. 189 do Código de Processo Civil, que se aplica por analogia ao rito do júri, conforme autoriza o art. 3º do Código de Processo Penal, estabelece hipóteses legais de restrição à publicidade dos atos judiciais. Este, um extremo: júri a portas fechadas. Há outro, diametralmente oposto: júri transmitido pelo YouTube. Com efeito, a transmissão de julgamentos em tempo real tem ocorrido amiúde em tribunais togados, desde o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça até Tribunais Estaduais e Regionais Federais. Isso não é novidade. Contudo, a transmissão pelo YouTube de julgamentos pelo Tribunal do Júri merece uma reflexão mais detida, porquanto encerra peculiaridades ínsitas ao rito especial. É que, diferentemente de julgamentos togados, o júri popular encerra instrução com produção de provas e participação de jurados leigos. Em algumas comarcas, porém, há uma agravante. E merece ser indigitada. Além da transmissão pelo YouTube, alguns magistrados também facultam às testemunhas que prestem seus depoimentos por videoconferência. Aqui, uma observação. Não se ignora que, desde a pandemia do COVID-19, avanços tecnológicos inauguraram conquistas para o cotidiano de trabalho da atividade judiciária. Tanto é assim que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu a Resolução 329 de 30/07/2020, regulamentando a realização de atos processuais por videoconferência. Já àquela época discutiu-se se a Resolução seria (ou não) aplicável à etapa plenária do Tribunal do Júri. Prevaleceu o entendimento que, sim, seria possível produzir prova por videoconferência no judicum causae. Seja como for, ultrapassada a quadra histórica de calamidade sanitária, o próprio CNJ emitiu a Resolução 481, que revogou as disposições acerca de atos processuais por videoconferência e recomendou o retorno às atividades presenciais. Embora consagrada a praxis de inquirição de testemunha por videoconferência, no Tribunal do Júri, a produção da prova icto oculi, perante os olhos vivos dos destinatários da prova, é o mais recomendável. Tanto é assim que o Código de Processo Penal, em seus arts. 458 e seguintes, regulamenta providências que deverão ser adotadas pelo não comparecimento de testemunhas. E por não comparecimento deve-se entender não comparecimento presencial, óbvio. Não é por outra razão, aliás, que o art. 461, §1º, do CPP estabelece hipótese de condução coercitiva da testemunha imprescindível que, intimada, não comparece na sessão do júri. Resta evidente que a hipótese trata de comparecimento físico e não virtual. Existem situações, claro, que a videoconferência no júri é bem-vinda: (a) quando se trata de testemunha que não reside na comarca processante e fique demonstrada a impossibilidade de seu deslocamento; (b) quando se trata de caso que sofreu desaforamento e as provas não puderem ser produzidas na nova comarca; (c) quando a testemunha padece de enfermidade ou outra situação extrema que impossibilite seu comparecimento; (d) quando, enfim, a excepcionalidade restar configurada a ponto de justificar, no caso concreto, a inquirição remota, a videoconferência pode (e deve) ser adotada. Não é o mais recomendável, claro. O ideal é a inquirição tête-à-tête, presencial, perante os jurados. Todavia, se – e somente se – demonstrada a imperiosa necessidade de adoção da videoconferência, como medida extravagante, é possível excepcionar a regra da inquirição presencial das testemunhas na produção da prova, não sem a adoção de cautelas para preservar a higidez da prova. Não é o que vêm fazendo alguns juízes. A possibilidade de inquirição de testemunhas por videoconferência tornou-se praticamente uma regra. E isso tem-se aplicado inclusive para as testemunhas residentes na Comarca processante. Nos mandados de intimação, as testemunhas recebem link de acesso e, sem qualquer justificativa, podem ser inquiridas remotamente, à mercê de seu bel alvitre, de onde quer que se encontrem. Virou bagunça. Quem quer comparece. Quem não quer não comparece. Sem nenhuma cerimônia, testemunhas são inquiridas por celular, na direção de automóveis, na boleia de caminhões, quando não esparramadas em espreguiçadeiras na beira de piscinas ou refesteladas em sofás de suas salas de estar. Fez-se tábula rasa do art. 461 do CPP. Mas o pior é que, além de facultarem a inquirição por videoconferência, alguns juízes também adotam invariavelmente a transmissão do júri pelo canal do YouTube. Nada mais absurdo. Quando se tem em mente essa conjugação de fatores – transmissão pelo YouTube, de um lado e de outro lado, inquirição de testemunha por videoconferência – resta impossível preservar a incomunicabilidade estatuída no art. 460 do Código de Processo Penal. A testemunha tem à sua disposição a transmissão dos outros depoimentos em tempo real pelo YouTube. Bem se sabe que a publicidade dos atos processuais merece ser prestigiada, em especial no Tribunal do Júri. Mas, a pretexto de se dar publicidade aos atos processuais, não se pode promover a espetacularização do processo criminal. A transmissão do júri em tempo real pelo YouTube, quando testemunhas são inquiridas por videoconferência, merece o pronto rechaço por parte do CNJ, OAB, ANACRIM, ABRACRIM, ANAJURI, enfim todas as entidades que mantem interlocução institucional com o Tribunal do Júri. Mas não é só. Ao transmitir o júri pelo YouTube, alguns juízes também expõem os jurados. Não só a identidade deles. A fisionomia também. Seus nomes. Seus dados. Seus rostos. Tudo é captado e transmitido ao vivo para o mundo digital pelo YouTube. Apenas a título de exemplo, confira-se print do júri realizado em 25 de janeiro de 2024, em Curitiba, acessível em https://www.youtube.com/watch?v=taoRU756A78. No júri de 30/01/2024, também em Curitiba, uma câmera frontal capturou todos os jurados disponíveis para o sorteio, conforme se pode verificar em https://www.youtube.com/watch?v=EsgEfEcDncs&t=7s. E isso fica disponível na rede mundial de computadores, ad aeternum.
Tal procedimento ofende toda a política criminal sufragada na Lei nº 13.709/2018, conhecida como LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). Claro que servir ao Poder Judiciário como jurado é uma obrigação cívica inescusável. Mas, daí a ter seus nomes expostos, inclusive com a veiculação de seus rostos, que ficarão disponíveis, sabe Deus por quanto tempo, na plataforma do YouTube, é inadmissível. Bem de ver que o art. 5º, XI, da LGPD, dispõe sobre mecanismos para a anonimização de dados pessoais, justamente para evitar essa superexposição. Tanto pior quando se tem em mente casos em que ficam disponíveis dados sigilosos, que invadem a esfera de privacidade do jurisdicionado. Quando existem extrações de dados de celulares, seja dos acusados, seja das vítimas, a superexposição do júri pelo YouTube também viola direitos fundamentais e ofende o inciso IV, do art. 5º, da LGPD. Quando se trata de exposição de dados sensíveis (art. 5º, II, da LGPD) também se recomenda a abstenção da transmissão pelo YouTube. Basta dizer, por exemplo, que, durante o interrogatório, os acusados são qualificados, têm seus endereços expostos, seus dados conferidos. E não só os acusados. As testemunhas também. Durante uma inquirição, dados sensíveis podem ser expostos. E isso tudo, quando veiculado pelo YouTube, pode ofender a LGPD. Júri a portas fechadas? Júri transmitido pelo YouTube? Nem um. Nem outro. Há casos em que a boa prudência e a cautela recomendam o meio termo: júri público, sim, portas abertas, mas sem a espetacularização digital promovida pelo neo-cadafalso pós moderno liquefeito nas redes. Urge que a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), instituída pelo art. 55-A da LGPD, bem como o Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade, instituído pelo art. 58-A, da LGPD tomem providências para fazer cessar esse estado de coisas. A transmissão online de júris atendeu a um importante propósito de dar publicidade aos atos processuais especialmente durante o período da pandemia do COVID-19. Todavia, por paradoxal que possa parecer, atualmente, vencida a quadra histórica do período pandêmico, a transmissão de júris pelo YouTube milita justamente em sentido contrário ao que se prestou num primeiro momento. Com efeito, a transmissão de julgamentos online tem afastado as pessoas dos recintos forenses. Em vez de comparecer à solenidade processual, o público assiste remotamente o ato. Enquanto o YouTube atinge picos de audiência virtual, os plenários, não raro, ficam vazios, as galerias às moscas. Assim, paradoxalmente, a transmissão online de júris vem na contramão do que pretende ser um julgamento popular, o ingresso do povo no ambiente forense. Nada contra, em tese, a transmissão do júri pelo YouTube. Nada contra, em tese, a inquirição de testemunhas por videoconferência. Ninguém pode ser contra os avanços e as conquistas da tecnologia. Mas avanços tecnológicos, em alguns casos, podem constituir retrocessos humanitários. Essas possibilidades não podem ser guindadas à condição de regra geral e absoluta, de forma indiscriminada a todo e qualquer caso. Cada caso é um caso. O uso dessas ferramentas de tecnologia deve ser aplicado, cum grano salis, a casos concretos, conforme as exigências da ocasião, observado o que dispõe a legislação de regência. A diferença entre o remédio e o veneno é a dose. A publicidade dos atos processuais não pode se subverter em subterfúgio para a espetacularização midiática do processo criminal. Há uma salutar equidistância a meio caminho entre os extremos. Não se pode transformar a solenidade de um júri popular num reality show, para o deleite dos telespectadores que se regozijam nos chats do YouTube. Tanto pior quando a testemunha, a ser ouvida por videoconferência, pode acessar esses chats em tempo real, conforme a novela da vida real é transmitida pela plataforma digital. Adriano Bretas Advogado criminal, especialista em Direito Penal e Criminologia, professor de processo penal e membro fundador da ANAJÚRI.
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