O Tribunal do Júri é uma garantia constitucional, a qual se encontra elencada no inciso XXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal. Na doutrina jurídica temos alguns nomes que levantam pontos críticos com relação ao instituto, enquanto outros veem com bons olhos desde que respeitada a finalidade de tal garantia.
Os pontos a serem levantados e debatidos com relação ao Tribunal do Júri são vários. Diversos. Há muito que se discutir. Mas para a finalidade do presente escrito, me atenho àquilo que se vem à mente quando o termo “Tribunal do Júri” é mencionado. Aqui é um dos poucos pontos em que o imaginário popular e a ritualística forense se encontram com alguns acertos, já que a imagem que qualquer pessoa tem quando o instituto é mencionado é justamente o que de fato é, ou pelo menos que se assemelha. Digo isso diante do fato de que em decorrência da influência dos filmes estadunidenses de tribunais, muitos pensam que toda e qualquer audiência aqui no Brasil ocorre conforme nos filmes. Os leitores (ou pelo menos a maioria) sabem que não é bem assim, pois o Júri é competente para julgar apenas os crimes dolosos contra a vida. Enfim, foquemos aqui na última fase do rito do Júri, a saber, a sessão em plenário. A estrutura hodierna do Tribunal do Júri é composta por um juiz togado, um promotor, eventualmente um assistente de acusação, a defesa e vinte e cinco jurados, dos quais sete são sorteados a fim de compor o conselho de sentença. A função do juiz é a de presidir os trabalhos, já que a decisão sobre a acusação que pende contra o acusado compete aos jurados. Desta forma, temos que o destino do réu se encontra nas mãos dos jurados. São os sete membros que compõem o conselho de sentença que irão ouvir as alegações, arguições, provas e manifestações tanto da acusação como da defesa, para que então, após toda a instrução ocorrida em plenário, julguem pela condenação ou absolvição do acusado. O ponto da reflexão conclamada reside aqui. Sete pessoas, sem formação jurídica específica (não necessariamente), decidem o futuro de um acusado de crime doloso contra a vida. Sete pessoas que têm suas próprias vidas. Médicos, contadores, desempregados, mecânicos, empresários, administradores, atendentes ou qualquer ocupação que seja – não há óbice impeditivo em tal sentido para que uma pessoa seja jurada. A principal ideia por trás da lógica do Júri é justamente essa: o julgamento do acusado por seus pares. Mas até que ponto isso torna a decisão mais justa? Há uma maior compreensão acerca dos fatos e das circunstâncias do acusado pelos jurados pelo fato de serem pessoas (sem uma investidura formal referente a um cargo efetivo) julgando pessoas? A análise do caso, pela forma com a qual é feita, ou seja, sem que haja a necessidade de uma fundamentação formal e jurídica constante na decisão dos jurados, torna o resultado mais escorreito para o acusado? Os pares julgadores são de fato pares do acusado? Menciono aqui as reflexões sobre tal questionamento constante num clássico da literatura. “O Vermelho e o Negro”, bela obra de Stendhal, a qual retrata a vida de Julien, um rapaz que é agraciado com uma oportunidade única, saindo assim da pobreza e colocando em prática o seu intento de galgar socialmente. O romance se passa na França pós-queda de Napoleão, quando na obra é possível notar todo o ambiente político que insuflava à época. Julien, que sempre sonhou obter sucesso pela espada, tal qual Napoleão, por quem nutria confessado afeto e admiração, acaba se vendo agarrando a oportunidade de ascender socialmente por meio do clero. E é através do clero que Julien consegue realizar seus estudos, quando por meio do seminário, da igreja, da política religiosa, ascende socialmente. O outrora filho de carpinteiro, pobre, sem perspectiva de vida, se torna uma personalidade cujo nome é mencionado e lembrado nos mais altos níveis econômicos e de elite da sociedade. É um livro que vale a leitura! A passagem que aqui menciono está presente na parte do julgamento de Julien. Após alguns percalços na vida do protagonista, este se vê atentando contra a vida da senhora de Rênal, um antigo amor de Julien. Diante de uma situação gerada pela senhora de Rênal, a qual frustrou significativamente a vida de Julien, este, intencionando mata-la, atira contra a mulher durante uma missa. Julien é preso e passa a responder pelo crime de homicídio (em que pese a vítima tenha sobrevivido ao ataque). Pois bem, diversas nuances acerca do julgamento de Julien merecem reflexões e comentários, porém, o foco da presente abordagem se dá no discurso do acusado quando do julgamento. Após toda a instrução plenária, Julien, que até então havia optado por calar-se, ao ser indagado se possuía o interesse de se manifestar sobre o caso, resolveu que falaria, quando passou a discursar para os jurados que decidiriam sua sentença:
Eis o ponto reflexivo. Julien confessara seu crime. Por mais que a vítima tivesse sobrevivido ao ataque, o fato é que de maneira premeditada Julien fez o que fez. Num momento de ira, viajou até a cidade em que estava a mulher que sofreria sua vingança e atirou contra esta. O intento era a morte. O resultado foi diverso do pretendido, mas a intenção homicida ocorreu e foi confessada por Julien. Entretanto, o ponto fulcral no discurso deJulien está além do julgamento pelo crime em si. Julien pondera que “ainda que fosse menos culpado”, seria condenado de igual modo, pois não havia “nos bancos dos jurados nenhum camponês enriquecido”. Inexistiam os pares prometidos pelo Tribunal do Júri. Havia ali presente muita irresignação não para com o crime, mas para com questões diversas muito mais profundas. Estava em julgamento não apenas um homicida, mas também um ser repugnante que ousou sair de sua baixa classe social para tentar a sorte com a nobreza. Este era o seu pior crime. Jamais deveria ter saído da pobreza, pois tal qual num sistema de castas, cada qual deveria nascer e morrer na classe social a que pertenceria. A mensagem de Julien em tal sentido é clara. O fim de Julien é óbvio, conforme o próprio já imaginava e mencionou em seu discurso. Mas o conteúdo do que disse em sua defesa ainda paira chamuscando. Indago, trazendo a questão para o nosso cotidiano jurídico: o Tribunal do Júri julga o acusado por seus pares? Há mais equidade? Há maior respeito? Vale lembrar que o Tribunal do Júri consta na Constituição Federal como sendo uma garantia, de modo que a lógica em tal sentido deve(ria) imperar. É por esta linha que Adriano Bretas constrói a sua defesa ao instituto, tecendo pontuais considerações sobre o tema, transcrevendo-se aqui parte de sua doutrina para resumir o entendimento do jurista:
Conforme se observa, a linha traçada nesta defesa é justamente com o intuito de evidenciar e explicitar a lógica do Tribunal do Júri como sendo uma garantia. Em tal brilhante construção lógica do mencionado autor, o Tribunal do Júri atenderia a sua finalidade proposta. Já Aury Lopes Jr. tece expressivas considerações críticas ao Tribunal do Júri, tanto no aspecto formal como no plano prático. Dentre as pontuações que tal autor realiza, situam-se em sua visão crítica: a “participação popular” que rege o Júri não ocorre de modo que preencha o conceito esperado de uma democracia (dizendo que “com certeza o fato de sete jurados, aleatoriamente escolhidos, participarem de um julgamento é uma leitura bastante reducionista do que seja democracia”); a ausência de uma verdadeira legitimidade dos jurados diante da forma com a qual são “eleitos”; a inexistência de uma independência dos jurados, pois sofrem com “pressões e influências políticas, econômicas e, principalmente, midiática, na medida em que carecem das garantias orgânicas da magistratura”; entre outros. Tem-se então fundamentos, bases e argumentos para tecer comentários pró ou contra a instituição do Tribunal do Júri. A doutrina desempenha muito bem este papel de debate. No presente escrito, busco contextualizar tal questão pela intersecção do direito com a literatura. No caso, independente dos argumentos utilizados ou do campo do diálogo em que se situe, o fato é Julien foi condenado. E finalizo perguntando: quantos Julienstemos por aí? Quantos Juliens são julgados de fato pelo crime de que são acusados, e quantos Juliens são julgados como foi o protagonista de “O Vermelho e o Negro”? Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia BIBLIOGRAFIA CONSULTADA BRETAS, Adriano Sérgio Nunes. Estigma de Pilatos: a desconstrução do mito in dubio pro societateda pronúncia no rito do júri e a sua repercussão jurisprudencial. Curitiba: Juruá, 2010. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 9ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. STENDHAL. O Vermelho e o Negro. Porto Alegre: Dublinense, 2016. Comments are closed.
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