É póssível realizar sessões de julgamento perante o Tribunal do Júri em tempos de pandemia? Os autores analisam o Ato Normativo nº 0004587-94.2020.2.00.0000 do CNJ, que trata da possibilidade de realização de sessões plenárias do Tribunal do Júri por videoconferência em face da presente situação pandêmica. Por Bryan Bueno Lechenakoski e Khalil Vieira Proença Aquim A partir da publicação do Provimento nº 105/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), restou definido, ainda que de modo preliminar, que as atividades judiciárias presenciais não retornarão até 31 de dezembro de 2020. As audiências na seara criminal vêm ocorrendo de forma virtual, estando paralisados os processos de competência do Plenário do Tribunal do Júri.
Assim, em relação ao Tribunal do Júri, havia sido colocado em pauta para julgamento em plenário virutal o Ato Normativo nº 0004587-94.2020.2.00.0000 do CNJ, que trata da possibilidade de realização de sessões plenárias do Tribunal do Júri por videoconferência em face da presente situação pandêmica, ao que nos parece ser uma solução equivocada para os problemas da demora da prestação jurisdicional. Diante da mobilização de diversas entidades representativas, o feito foi destacado para julgamento em sessão presencial, ainda sem data. Parafraseando MORAIS DA ROSA (2013): “Perguntaram a um louco que havia perdido sua chave na floresta por que a procurava sob a luz do poste da rua, no que ele respondeu: aqui tem mais luz. Procurar flexibilizar as garantias constitucionais na perspectiva de resolver os problemas de Segurança Pública é buscar, como o louco, a chave no lugar errado”, ao que aparenta, estamos novamente como o louco, buscando as solução pela (de)mora na prestação jurisdicional provocadas pelo COVID-19 no lugar errado. Por outro lado, não se desconhece que há inúmeros casos de julgamentos perante o Tribunal do Júri que demandam análise urgente, seja por se tratarem de réus presos, seja por outras prioridades legais, nos casos de crimes contra a mulher nos termos da Lei nº 11.340/06, contra crianças ou que envolvam idosos. De todo modo, é imperativo ter premente que o Tribunal do Júri, instituição que expressa toda uma simbologia histórica do Judiciário, tem sua previsão insculpida no art. 5º, XXXVIII, da Constituição da República, sendo uma garantia fundamental tanto da sociedade como, principalmente, do acusado. Assim, ainda que se reconheça a necessidade de adaptação dos trabalhos, em uma possível atenção à garantia da razoável duração do processo prevista no artigo 5º, inciso LXXVIII da Constituição da República, não se pode desconsiderar o verdadeiro significado de razoável duração do processo, que “não se pode confundir com a demora jurisdicional para resolver o caso penal e muito menos com a sistemática do tempo mais curto, mas sim, como sendo o princípio norteador, que é responsável por assegurar as garantias ao acusado, como a ampla defesa e contraditório (dentre outras garantias processuais)” (LECHENAKOSKI, 2016). Seguindo esta linha de raciocínio, a razoável duração do processo deve resguardar o devido processo legal, e, nesta senda, medidas que impliquem supressão de garantias fundamentais não atendem o que pode ser compreendido como razoável duração do processo ou devido processo legal, neste sentido MORAIS DA ROSA e SILVEIRA FILHO (2014, p. 27):
Assim, para verificar se a medida atende uma celeridade processual compatível com as garantias da razoável duração do processo e do devido processo legal, os reflexos práticos de tais medidas devem ser balizados sob a ótica das garantias fundamentais inerentes ao acusado no Tribunal do Júri. O plenário do Tribunal do Júri, além de toda oralidade necessária para exposição das teses acusatórias e defensivas, envolve também diversas questões inerentes à própria ritualística para sua realização, sem descurar das próprias garantias constitucionais como a plenitude de defesa, a imparcialidade, incomunicabilidade dos jurados e o sigilo da votação, entre outras garantias indispensáveis para sua execução. Nesta perspectiva, o ato normativo proposto se reveste de grave inconstitucionalidade, considerando as claras violações à plenitude de defesa, e de inúmeras ilegalidades, pelas afrontas às normas processuais e princípios inerentes ao Tribunal do Júri. Considerando, portanto, que versam os julgamentos pelo Tribunal do Júri de crimes dolosos contra a vida, que tutelam o principal bem jurídico resguardado pela legislação pátria, imperativo se faz que as garantias sejam cumpridas com zelo ainda maior. Deste modo, a liturgia necessária ao ato faz com que a participação à distância dos atores processuais - juiz presidente, representante ministerial, advogados, acusados e jurados - seja absolutamente inviável. Sendo o Júri um juízo oral, em que as provas devem ser apresentadas para os jurados, que são efetivamente juízes de fato, a participação virtual de qualquer das partes é inviável. O juiz presidente deve, a todo instante, zelar pela correição dos trabalhos; acusação e defesa devem ter contato direto com os jurados, para a realização da exposição plena, sob pena de negligenciar o trabalho e deixar de cumprir, na integralidade, com seu mister; o acusado, para exercer seu direito à plena defesa, deve poder estar presente e expor sua versão aos jurados. Além disso, impedir o réu preso de estar presente na sessão de julgamento e obrigá-lo a comparecer por videoconferência implicará em exposição impactante aos jurados, notadamente quando legislação e jurisprudência há muito pacificaram a vedação do uso de algemas em plenário, justamente para esta preservação. Do mesmo modo, NUCCI (2015) para diferenciar a garantia da ampla defesa da garantia da plenitude de defesa o faz da seguinte forma: : “algo vasto, largo, copioso, enquanto pleno equivale a completo, perfeito, absoluto. Somente por esse lado já se pode visualizar a intencional diferenciação dos termos” (NUCCI, 2015, p. 25). Sem adentrar nas minúcias da plenitude de defesa e sua abrangência, tem-se que a plenitude de defesa exige da ritualística do júri, defensor, entre outros atores processuais, a própria perfeição de uma defesa absoluta e intransigente das garantias constitucionais do acusado, o que não se pode garantir com um júri virtual. Cabe destaque ainda dois fatos que interferem diretamente na plenitude de defesa do acusado, sendo o primeiro: a possível falha de conexão que poderá ocorrer (seja de um jurado, juiz, defensor, acusado); e a segunda: a possibilidade do jurado silenciar (diminuindo o volume do alto-falante de seu dispositivo, para não ouvir, por exemplo, o interrogatório do acusado, a sustentação da defesa, entre outros), dois motivos nitidamente que podem colocar em risco a possibilidade do Estado propiciar mecanismo para o exercício da defesa plena. Noutro passo, os jurados, devem se manter, além de atentos, incomunicáveis, de modo que apenas presencialmente poderá um oficial de justiça garantir tal incomunicabilidade. Vale ressaltar que, ainda que a minuta de resolução proposta pelo CNJ preveja a obrigatoriedade de comparecimento presencial dos jurados, a manifestação da Associação dos Magistrados Brasileiros sobre tal proposta é no sentido de que requerer a utilização de sistema de videoconferência para todas as partes, incluindo os jurados. Assim, rememorar princípios e garantias basilares do tribunal popular, notadamente a incomunicabilidade do Conselho de Sentença, é ainda necessário. Para além disso tudo, não se desconhece que, a despeito as facilidades das comunicações à distância, há sempre dificuldades de adaptação, bem como confusões humanas por trás de equívocos em ligar/desligar câmeras e microfones, e atrasos (delays) que, em julgamentos como os do Tribunal do Júri, em que é necessária presença plena a todo instante, sendo que os jurados decidem sem expor os motivos de sua decisão, qualquer dificuldade ou falha tecnológica pode ser decisiva para uma condenação ou absolvição, vilipendiando o devido processo legal e o mais amplo senso de justiça. Não há que se perder de vista que o Tribunal do Júri trabalha com vidas, geralmente com uma que se esvaiu deste mundo e outra que esta sendo julgada, até porque ninguém se atreve dizer que além de toda tormenta do processo enfrentada pelo acusado, 12 (doze) anos de prisão (pena mínima para acusação de homicídio qualificado), não simbolizam praticamente uma vida perdida atrás dos muros da prisão. Se continuarmos tentando encontrar a solução da (de)mora na prestação jurisdicional sempre buscando o mais fácil, ou seja embaixo do poste de luz (flexibilização de garantias) como no caso do louco procurando a chave no começo do presente escrito, continuaremos buscando a chave no lugar errado. Se atualmente, utilizando as expressões de MORAIS DA ROSA (2013) vivemos a “Mc-donaldização do processo penal”, sofrendo com uma ausência de análise de casos concretos para proferir sentenças, ou seja, com “sentenças que são prolatadas no estilo “peça pelo número””, como se cada acusado recebesse uma “Mc-Pena Feliz”, nos atrevemos dizer que além do Processo Penal Fast-Food, em tempos de Covid-19 e Júri Virtual, podemos pedir um delivery de processo penal, ou como se fosse em Drive-Thru, se o pedido vier errado, é só arrumar no próximo, como se a vida do acusado sendo julgado fosse o picles que se tira do sanduíche e se joga fora. Bryan Bueno Lechenakoski Professor na Universidade do Contestado (UnC), Mestre em Direito pelo Centro Universitário Internacional - Uninter. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Advogado criminalista. E-mail: [email protected] Khalil Vieira Proença Aquim Advogado Criminalista Professor de Direito Penal da Faculdade Inspirar Mestrando em Teoria e História da Jurisdição na Uninter Membro do Conselho Estadual da Associação Paranaense dos Advogados Criminalistas (APACRIMI) Ex-presidente da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR (gestão 2016/2018) Referência bibliográfica LECHENAKOSKI, Bryan Bueno. A razoável duração do processo x prescrição retroativa após alteração da lei 12.234/2010. Artigo publicado no portal Empório do Direito. Pub. 07/02/2016. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/a-razoavel-duracao-do-processo-x-prescricao-retroativa-apos-alteracao-da-lei-12-234-2010>. Acesso em 01/07/2020. MORAIS DA ROSA, Alexandre. McDonaldização do Processo Penal e analfabetos funcionais. Artigo do Conjur. Pub. em: 19/10/2013, disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-out-19/diario-classe-mcdonaldizacao-processo-penal-analfabetos-funcionais> Acesso em: 30/06/2020. MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Medidas Compensatórias da demora jurisdicional. A efetivação do direito fundamental à duração razoável do processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2014. NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. 6ª Ed. Rev. Atual. e amp. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
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