O amigo Paulo Incott discorreu minuciosamente aqui em sua coluna sobre a questão da mídia enquanto processo de criminalização, abordando e propondo um viés específico dessa temática (ver aqui: parte 1, parte 2, parte 3, parte 4 e parte 5). Partindo dessa ideia, aproveito para ilustrar a questão com um possível exemplo apresentado pela literatura. Falo aqui da peça “O Beijo no Asfalto”, escrita por Nelson Rodrigues, cuja história apresenta as consequências vividas e sentidas por alguém que, de uma hora para outra, vê-se vítima de uma implacável perseguição midiática. Arandir é o protagonista da obra, um sujeito que convive com seus próprios demônios, dominando-os – tal como as demais personagens presentes na história (tal como todos nós). Em determinada ocasião, Arandir e seu sogro presenciam um acidente, o qual acaba por vitimar o atingido. Desfalecido junto ao asfalto, o rapaz atingido, em seus últimos suspiros, encontra os lábios de Arandir antes que seus olhos se fechem para sempre. A cena de Arandir se prostrando junto ao acidentado e beijando-o no momento de sua morte é presenciada não apenas pelo sogro ali presente, mas também por diversos transeuntes, dentre os quais um repórter ávido por uma matéria explosiva e sensacionalista. Eis a oportunidade, ali, no beijo no asfalto, para se vender muito jornal. O repórter corre até o delegado da cidade, insistindo em lhe fazer uma proposta. Inicialmente o delegado não estava muito a fim de receber o jornalista. Pudera, vez que o próprio delegado havia sido vítima de uma perseguição midiática em decorrência de um aparente exagero no noticiar de evento embaraçoso. Pelo que se depreende do diálogo entre o delegado e o jornalista, uma recente notícia que recebera diversas manchetes mencionava uma agressão cometida pelo delegado contra uma mulher grávida, agressão esta que teria ocasionado um aborto, quando na realidade, segundo o delegado, a agressão teria consistido num único tapa, não sendo este o motivo do aborto. Seja como for, a notícia havia vinculado uma coisa à outra, ensejando numa perseguição midiática contra o delegado, que ainda sofria com as consequências dessa interpretação equivocada dos fatos que teria sido perpetrada pelo jornalista. Daí a fúria do delegado contra o repórter. A proposta feita pelo jornalista consistia em apagar essa história do aborto com outra que fosse protagonizada por outro alguém. A reputação do delegado poderia voltar à tona assim que o caso do tapa/aborto fosse esquecido. Bastaria encontrar uma história mais impactante, mais grave, mais chamativa. Seria isso ou fabricar uma história com esses elementos, e é justamente aí que residia a proposta feita pelo jornalista. Arandir deveria figurar como o mais novo personagem emblemático a ser taxado pela sociedade. Assim que o jornalista viu a cena do beijo no asfalto, vislumbrou ali a oportunidade de se criar uma grande história. O que era um simples tapa que teria dado ensejo a um aborto perto da história de um beijo entre dois homens enquanto um desses desfalecia da própria vida? O delegado, claro, gostou da história, já que deixaria de figurar como o perseguido pelas manchetes dos jornais. O jornalista, por razões óbvias, iniciaria a sua empreitada naquele mesmo momento, pois enquanto conversavam, Arandir prestava depoimento, ali na delegacia, sobre o acidente na qualidade de testemunha. O acidente não recebeu qualquer importância dada pela mídia. Já o beijo... Ah, o beijo. O beijo no asfalto. Isso sim rendeu uma boa história. Da maneira com a qual foi articulada no noticiário, Arandir recebera um destaque peculiar, não do tipo que alguém gostaria de receber. Numa sociedade ainda mais preconceituosa como a atual, um beijo dado num quase morto do mesmo sexo era o suficiente para que a perseguição midiática tivesse início. E assim foi. Arandir passa, a partir desse momento, a sofrer com as terríveis consequências de uma perseguição midiática. Seu rosto estava estampado em todos os jornais como o protagonista do beijo no asfalto. Os reflexos, obviamente negativos, desse ocorrido foram sentidos no meio familiar de Arandir, bem como em sua vizinhança e no seu trabalho. Auxiliado pelo delegado na construção da história como fosse um tipo de crime o ocorrido, o jornalista propiciou a Arandir uma experiência avassaladora de diversos prejuízos decorrentes daquele processo de criminalização midiática. O beijo no asfalto havia se transformado em algo além de um pecado. Tratava-se de um crime. Arandir, sendo então um criminoso, deveria responder por seus atos. A pena passa ali da pessoa do já condenado midiaticamente. A esposa e a cunhada de Arandir sofrem com incessantes ligações ofensivas em sua residência, com os comentários mesquinhos da vizinhança e com a postura de seu pai. Arandir perde o emprego – foi forçado a sair por não ter aguentado os comentários e olhares de seus colegas de trabalho. A polícia se exacerba na condução de um peculiar inquérito, trazendo consequências não apenas para Arandir, mas também para a sua esposa. Tudo isso enquanto a mídia prossegue em sua implacável perseguição contra Arandir. “O Beijo no Asfalto” é uma narrativa típica de Nelson Rodrigues, onde o leitor pode contar com intrigas, vicissitudes humanas escancaradas, hipocrisias expostas, crises e problematizações sobre o que pouco costuma se falar. Dentro da proposta da presente coluna, a ideia é a de vislumbrar também na história a presença de elementos do mencionado processo de criminalização através da mídia. Eis o exemplo de Arandir, vítima desse fenômeno, para que se possa problematizar a questão proposta através de um caso presente na literatura. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR E-mail: [email protected] BIBLIOGRAFIA CONSULTADA RODRIGUES, Nelson. O Beijo no Asfalto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014 Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |