Quatro horas da manhã. Três amigos se dirigem a uma batalha que concentra em si mesma muito do que significa hoje em nosso país lidar com o direito penal. Os três compartilham não só o trajeto. Compartilham ideais, histórias, objetivos. No caminho as apreensões e expectativas relacionadas à dura tarefa que possuem à sua frente é dissolvida no prazer de conseguir encontrar, em meio à vida agitada e compromissada, um momento para trocar risadas, resenhas, músicas e projetos. Os assuntos sérios e os supérfluos se intercalam na fluidez própria das ocasiões em que podemos nos despir de fingimentos, protocolos e amarras próprios de uma sociedade de aparências. Algumas horas depois do encontro inicial, a chegada na cidade de destino anuncia a necessidade de concentração. Daqui para frente estarão em jogo questões extremamente delicadas. A vida de um ser humano será traçada, em alguma medida, de acordo com o desempenho destes três amigos, em especial daquele que foi designado para a árdua tarefa – a defesa no Tribunal do Júri. A cidade em que ocorrerá o julgamento, no interior do Paraná, é acolhedora. Com o ritmo tranquilo e quieto, típico de uma cidade pequena, é difícil sequer imaginar um Júri ocorrendo ali. O início foi marcado para as 8h30, porém ocorreu de fato cerca de uma hora depois. Possíveis jurados apreensivos nas cadeiras do Fórum, os três amigos dividindo a bancada da defesa e tendo de assistir ao ritual rotineiro de troca de intimidades entre magistrado e promotor. Até quando teremos esta configuração inquisidora no Tribunal do Júri? Até quando formaremos magistrados profundamente comprometidos com a tese da acusação? Enfim, os nomes dos jurados começaram a ser anunciados conforme a urna secreta os provia. O advogado da defesa, dativo, havia feito um trabalho exemplar na pesquisa dos possíveis jurados. Com muito cuidado procurou usar seu direito de veto e posso dizer que o fez com maestria. Definido o corpo de jurados, testemunhas foram ouvidas. Seis delas. Cinco de acusação. Todas familiares da vítima. Todas com versões um tanto distoantes. Doí, literalmente, lembrar o que transcorreu a partir daí. Quando chegarmos ao final ficará claro o motivo. A acusação apontava o réu como co-autor de um crime de homicídio ocorrido da seguinte forma, com narração extremamente sucinta: dois homens discutiram num baile. Um deles sacou uma arma e desferiu alguns tiros que a ninguém atingiu. O outro homem tomou esta arma após os disparos. Querendo vingar-se, o que teve a arma tomada organizou uma emboscada. Selecionou outros três (ou quatro, isso nunca ficou claro) “comparsas” para irem até a casa do outro homem. Convidaram este para sair. Ato contínuo, ele foi com eles, entrando no carro em que estava o instigador da ação. Após alguns minutos fizeram com que a vítima saísse do carro e desferiram contra ele disparos de arma de fogo, resultando em sua morte no local. Pormenores não serão relatados por falta de relevância. Segundo as testemunhas o acusado seria um dos que participaram da emboscada. Detalhe importante: todos os acusados participaram juntos da audiência que resultou na pronúncia. Sem a autorização do acusado, mas de modo coerente com sua função, o advogado deste recorreu da decisão de pronúncia. Enquanto corria o recurso contra a decisão de pronúncia os outros réus foram a júri. Um deles assumiu a responsabilidade pela ação. Coerentemente, os outros foram absolvidos. Quando o recurso foi denegado, a pronúncia confirmada levou o acusado a júri de forma autônoma, ou seja, a um julgamento individual como co-autor. Para este julgamento é que os três amigos mencionados no início se dirigiram. Apenas um deles teve a possibilitar de se manifestar durante ojulgamento, na qualidade de advogado dativo do acusado, mas os outros dois procuraram contribuir da melhor forma possível. A defesa poderia utilizar-se de diversas teses. Uma que teria condições de se mostrar bastante eficaz seria a argumentação em torno da ausência de dolo, pelo desconhecimento do plano delitivo. Ainda outra opção seria a alegação de que não houve co-autoria, desviando para participação mínima não eficaz. Possível ainda o argumento de dolo diverso, menos gravoso; enfim, uma série de possibilidades. O problema é que o réu foi claro em não aceitar nenhuma destas por um motivo extremamente relevante: ele não estava lá no momento do crime. Ele estava pescando e tinha ao menos um bom álibi para provar isso. Ele confiava num desfecho positivo. Não vou discorrer todo o julgamento nestas linhas. Avançarei para o final, para aquilo que acredito tenham sido os motivos determinantes que levaram ao resultado que me tirou o sono e a tranquilidade por muitos dias: condenação a 16 anos de reclusão. Neste momento o leitor deve estar perplexo (assim espero) com a desproporção entre a suposta participação (que, segundo a própria acusação, consistiu em o acusado ir até casa da vítima e chamá-la para sair, com os outros acusados, a fim de que pudesse ser executado a alguns quarteirões dali), aliada ao fato de possuir um álibi com reputação idônea que o retirava da cena do crime, e a pena aplicada. Detalhes importantes: para tornar ainda mais sombrio o desfecho é preciso salientar que o acusado não costumava andar na companhia dos demais acusados; na realidade nunca era visto com estes na cidade. Ainda mais: o acusado tinha emprego fixo, além de mulher e filho que estavam presentes no tribunal no dia do julgamento. Não possuía nenhum antecedente envolvendo crimes violentos e nenhuma inimizade ou rixa com a vítima, fato confirmado pela família do falecido. Assim, o que fez com que a condenação acontecesse, com um desfecho tão gravoso? Uma defesa deficiente? Que ressoe alto e claro – NÃO! O colega que assumiu a responsabilidade pela defesa foi combativo, estava bem preparado, discorreu os argumentos de forma clara e precisa. Interrogou as testemunhas de modo hábil e coordenou sua tese de modo indefectível. Então o quê? Em poucas palavras: uma “passagem” por tráfico (apanhado com 57 gramas de maconha há cinco anos trás – pena de um ano e um mês) + o apelo da acusação por vingança para a família que viu três acusados serem absolvidos + uma retórica que não se preocupou em provar que o acusado estava na cena do crime, mas em invalidar o álibi do acusado. Para este último desígnio, procurou a acusação levantar dúvidas acerca da idoneidade do álibi, uma vez que este não foi trazido à tona em momento anterior. A resposta do acusado: a família tentou fazer isso, vindo até o fórum com a pessoa com quem o acusado alegava ter passado o dia em que o crime aconteceu. Foram informados de que era necessário aguardar o julgamento. Pessoas simples, aceitaram passivamente a “recomendação”. Nada foi colhido; nada foi escrito. O acusado alegou ainda que, na delegacia, tentou diversas vezes dizer que havia alguém que poderia provar sua ausência do local do crime, mas que a resposta das autoridades era sempre de que ele estava mentindo. A acusação escorraçou esta afirmação dizendo que “todo acusado alega coação policial”. Aqui quero caminhar para o fim aludindo a tudo aquilo que tenho pesquisado, lido, debatido e que está conectado com esta narrativa. O direito penal está estruturado sobre intrincadas cadeias de percepções formadas por preconceitos, estigmas e maniqueísmos. Não há saída. Aqueles que procuram oferecer resistência, batalhando cotidianamente contra estes precisam ter o “estômago” necessário para seguir em frente depois de situações como essas. Mas não vamos fingir que é fácil. No caminho de volta fiquei atônito meditando aquilo que vi ao fim do julgamento. Condenação por homicídio qualificado por meio que impossibilitou defesa e motivo fútil. Dezesseis anos. Dezesseis anos. Dezesseis anos. Não saia de minha mente a sentença, proferida calmamente por alguém que havia ficado ao celular durante a maior parte das alegações. Findo o ritual da sentença a família se dirigiu até o acusado. Perguntei ao policial se eles poderiam ao menos despedir-se e este, de modo muito educado, disse que sim, desde que não houvesse contato físico. Não foi possível atender à exigência. A mãe e a esposa do apenado se lançaram aos seus braços em prantos. Pessoas extremamente simples. A esposa dirigiu seu olhar diretamente para mim e perguntou: “e agora doutor?” Nunca senti tanto ódio da palavra doutor. Ela não significava nada ali. Não havia nada que o “doutor” pudesse fazer. Nenhum deles. Voltamos para casa. No caminho jantamos bem. Chegamos em Curitiba perto da meia noite. Cansados. Tomei um banho quente, relaxei numa cama cheirosa, confortável, ao lado de minha esposa. E o condenado, onde dormiu? Esse pensamento me tirou boa parte da noite de sono. O único pedido que ele nos fez foi conseguir a transferência de presídio – onde ele estava “a coisa estava difícil”. Aos que me chamarem de sentimentalista: obrigado! Aos colegas com quem vivenciei esta experiência: obrigado pelas lições! No dia seguinte uma certeza solidificou-se em minha mente: há duas coisas que quero fazer o resto da vida – trabalhar na defesa de casos levados ao tribunal do júri e dar aula. Uma nota final: a família e amigos do condenado nos agradeceram até o excesso. Elogiaram o trabalho feito em demasia. O colega que realizou a fala da defesa foi quase ovacionado. O condenado, quando nos dirigimos a ele, tentando articular algumas palavras de consolo, agradeceu profundamente e se resignou a dizer que a justiça humana falha, mas a divina não. Só consegui dizer a ele que permanecesse saudável. Paulo Roberto Incott Jr Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal Pós-graduando em Criminologia Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |