Imbricações Entre Direito Penal e Direito Constitucional
“Tudo me interessa e nada me prende. [...] Sou dois, e ambos têm a distância — irmãos siameses que não estão pegados. [...] Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos — um poço fitando o Céu.” (PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. 3ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 55-56 / trechos 10 e 11) Pensar nas imbricações entre direito constitucional e direito penal não configura, nem de longe, uma novidade. Em paragens tupiniquins é tema bastante recorrente, aliás: rios de tinta já foram gastos para frisar e sublinhar que todas as desinências jurídicas se subordinam às diretrizes constitucionais, se alinham (ou deveriam se alinhar) ao que, na primavera de 1988, foi definido como norte para a concretização do direito brasileiro como um todo – e não é o direito penal uma exceção à essa perspectiva. Muito embora tal apontamento seja evidentemente claro, no Brasil se está ainda muito distante da verticalização, na realidade, daquilo que se professa em ambiente acadêmico. Aparentemente, o “corredor escuro” que separa as salas de aula das salas de audiência indica que, no processo de cristalização da teoria em prática efetiva, algo se perdeu. E quiçá hoje tenhamos, com uma notoriedade não antes vista, algumas provas de tais problematizações. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal alterou vertiginosamente seu entendimento acerca da extensão e aplicação do dispositivo principiológico contido no art. 5º, LVII da Constituição Federal. Até a tarde do dia 17/02/2016, com o julgamento do Habeas Corpus nº 126.292/SP, o STF entendia pela interpretação literal de tal dispositivo constitucional, que determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” – entendimento esse alterado para que, doravante, sentenças penais condenatórias sejam passíveis de cumprimento se confirmadas em segundo grau de jurisdição (antes, portanto, do trânsito em julgado propriamente dito). Em apertadíssima síntese, o direcionamento majoritário dado pelo colegiado da Corte converge para o sentido de que o princípio da não culpabilidade não estaria atrelado ao trânsito em julgado da sentença penal – nada obstante existir disposição constitucional expressa sobre o tema –, mas sim à lógica do duplo grau de jurisdição. A tutela constitucional da liberdade, consolidada no texto de 1988 também por razões históricas, passa a sofrer uma relativização densa, que acaba por afastar ainda mais as diretrizes da Constituição da prática cotidiana do direito penal. Pontes de Miranda, já ao prefacio de seu “Tratado de Direito Privado”, indicava, na metade do século passado, que o operador do direito, para entender o fenômeno da juridicização dos fatos por meio da incidência das regras jurídicas, deve, antes, compreender a lógica e estruturação histórica do sistema jurídico que está a analisar. A lição, apesar de óbvia, parece ter sido relevada pelo nosso Supremo Tribunal, competente, veja-se só, para zelar pela própria Constituição. Triste coincidência. Na mesma medida, tem-se visto comumente na prática jurídica criminal de nosso país a utilização de provas amplamente questionáveis como meios legítimos para a promoção da persecução penal. O regramento legal deficiente das interceptações telefônicas, ante as lacunas da Lei nº 9.296/1996, é exemplo de tal perspectiva, que acolhe, na singela lógica de que os fins em um Estado Democrático de Direito podem justificar os meios, a possibilidade de superação de preceitos constitucionais para o combate de mazelas que se espalham tanto no aparato público como nos costumes das relações privadas. Recentemente, viu-se o Ministério Público Federal apresentar um rol de medidas (dis)postas ao combate à corrupção. Em síntese, a dezena de medidas sugeridas apontam, em maior ou menor sentido, para uma flexibilização de preceitos constitucionais e aumento do traço punitivo a ser observado pelo Estado. Promove-se, como bem analisou Melina Fachin, um diálogo da Constituição com o direito penal – que deveria ser considerado como última medida estatal – prevalecendo, de certo, a aplicação equivocada deste sobre as garantias dispostas no texto constitucional. De tudo isso, emerge uma triste certeza: o direito constitucional e o direito penal no Brasil, hoje, se acomodam em um distanciamento que, na concretude dos fatos, não encontra o respaldo dos debates acadêmicos. Apresentam-se, então, como se fossem a realidade dualista de Bernardo Soares (um dos maiores heterônimos de Fernando Pessoa), em seu confronto consigo mesmo: dois abismos; um poço fitando o céu. Urge alterar tais perspectivas, e não faltam convites para tanto. O momento atual do país aponta para a certeza de que muito mais importa como as soluções serão tomadas, nas searas criminal, constitucional e político-administrativa, do que as próprias soluções em si. Em uma democracia tão frágil e jovem como a brasileira, alcançar a linha de chegada necessariamente demanda trilhar o caminho adequado, desenhado ao norte do azimute capturado pelas diretrizes constitucionais. O poeta espanhol modernista Antonio Machado já há muito anunciou que o caminho se faz ao caminhar. Que não falte coragem a todos nós, pois, para fazermos, com nossos passos, a trilha que leve, finalmente, o direito penal ao encontro da Constituição. Rafael Corrêa Professor de Direito Constitucional Mestre em direito das Relações Sociais Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |