Há gente escrevendo sobre um tal 'garantismo hiperbólico monocular.' A tese é mais ou menos a seguinte: o Estado não poderia punir em demasia; ele tampouco poderia deixar de punir. O juiz deveria funcionar como o prumo, tentando equilibrar a busca de 'efetividade' do sistema de repressão criminal, de um lado, com as garantias dos suspeitos e acusados, de outro. Quem assim escreve alega ter descoberto a 'verdadeira' interpretação da concepção desenvolvida por Ferrajoli, em inúmeros livros. Com isso, acusa-se a doutrina brasileira de ser mais realista que o rei, como se o dito 'garantismo tupiniquim' fosse verdadeira jabuticaba. O problema todo dessa concepção é desconsiderar que a dita conjugação entre repressão penal, de um lado, e garantias fundamentais inerentes à defesa das liberdades públicas - i.e., direitos fundamentais de todo e qualquer potencial suspeito ou acusado - já foi empreendida pela Constituição. Esse intento de se 'ponderar', em cada caso concreto, o que deveria prevalecer (p.ex., a repressão de cogitados crimes graves ou a inutilidade probatória decorrente de meios probatórios ilícitos) é que se cuida de verdadeira degradação de teorias forâneas. A ser assim, lei para quê? Cada julgador deliberaria, ao seu gosto e talante, segundo uma pretensa 'intuição moral' ou 'senso de justiça', o que deveria prevalecer em cada caso. No final das contas, os direitos fundamentais restariam solapados cotidianamente - para além do que já são -, sempre ao argumento de que tais garantias deveriam ser mitigadas em busca da dita 'efetividade do sistema'. O equívoco disso é evidente, sobremodo quando alguém invoca um 'direito fundamental da totalidade da sociedade', como se houvesse tal coisa e como se isso possibilitasse a efetiva relativização de interdições da Lei Fundamental. O equívoco está na premissa, dado que categorias como a Untermaßverbot Grundsatz - postulado que está na base dessa concepção - olvida o princípio da ultima ratio. O Estado deve proteger certos interesses, feixes de posições jurídicas e direitos fundamentais das pessoas presentes em seu território, sem dúvida. Mas, quem invoca a repressão criminal, deve superar o ônus retórico e probatório de demonstrar que, para tanto, seria mesmo necessário o emprego da sanção penal. Não se pode desde logo tomar como dado que o Estado de Direito demandaria, em qualquer caso, uma contraposição entre a tutela de direitos fundamentais dos suspeitos e acusados, de um lado, e um dever de efetividade da punição criminal, de outro. Fazê-lo implicaria negar eficácia àqueles próprios direitos fundamentais, compreendidos enquanto proscrição de determinadas soluções, ainda que possam parecer, a olhos incautos, como as mais eficientes, oportunas ou relevantes. Essa é a razão pela qual não se pode condenar inocentes, ainda que disso decorra algum pretenso benefício social. Essa é a razão pela qual não se pode condenar alguém com base em provas ilícitas etc. Enfim, o erro está na premissa, ao se imaginar que um pretenso equilíbrio entre tais vetores deva ser promovido pelos juízes ou mesmo pelos legisladores. O equilíbrio foi imposto pela própria Constituição, não se podendo empregar dita conciliação para se converter poderes derivados em fonte primeva de deliberação e definição dos vetores supremos da nação. Se isso pode ou deve ser aceito em outras áreas do direito - questão criticada por Ernst-Wolfgang Böckenförde -, é certo que, no âmbito do Direito Penal, o tema deve ser visto com redobradas desconfianças. Na temática processual penal, forma é garantia, como diz Aury Lopes Jr; na temática penal, lei é feita para se controlar o poder punitivo, ao invés de simplesmente instrumentalizá-lo. Flávio Antônio da Cruz Doutor em Direito do Estado Bacharelando em matemática
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