Artigo da Colunista Carla Tortato, com reflexões fundamentais sobre o Tribunal do Júri, vale a leitura! ''O que de fato extinguiria a primeira fase do rito do júri, e assim prevaleceria o princípio da oralidade, bem como a produção probatória se daria na sua totalidade perante o jurado. Sem sombra de dúvidas teríamos outros problemas a enfrentar. Contudo, o tempo de maturação do processo merece pleno respeito, bem como o acusado merece um Processo Penal em conformidade com as garantias constitucionais''. Por Carla Tortato O título da presente manifestação pode parecer exagerado ou até mesmo sensacionalista, no entanto algo me faz acreditar que ao final da presente leitura não parecerá exacerbado, e sim tema de cogente discussão.
Vamos ao cerne da questão: sugestão de Alteração Legislativa - Projeto de Lei Nº xxxx, de 2020, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça, a qual altera e revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos ao Tribunal do Júri. A proposta de alteração legislativa, em síntese, almeja sumarizar o rito do júri, mais precisamente, o tempo do procedimento durante a sessão plenária. Ela foi motivada a partir da análise realizada pelo Conselho Nacional de Justiça de ocorrência de múltiplas sessões do Tribunal do Júri e sua repercussão para o tempo de tramitação processual. O relatório evidenciou que o desfecho mais recorrente nos processos de competência do Tribunal do Júri é a condenação (47,9%), mas também demonstra as decisões pela extinção da punibilidade (32,4%), bem como as decisões absolutórias (19,6%). Sobre a forma que se realizou a pesquisa referente ao Diagnóstico das ações penais de competência do Tribunal do Júri, o qual foi publicado em 2019 pelo CNJ (p.07-08): “As informações que se seguem foram extraídas da base de dados da “Replicação Nacional” - que consiste no envio de todos os processos em trâmite pelos tribunais ao CNJ, como parte dos requisitos da premiação “Selo Justiça em Números”, de forma a comprovar e verificar a qualidade dos registros processuais. Essa base de dados contêm o histórico da movimentação processual de todos os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais do País, da classe Ação Penal de Competência do Júri, no intervalo entre os anos de 2015 e 2018.(...) Os dados compreendidos neste Relatório abrangem os casos decididos nos últimos quatro anos - um universo de 28.984 sessões do tribunal do júri realizadas. Tal quantitativo, no entanto, não representa a totalidade das sessões realizadas, pois alguns tribunais não registram corretamente em seus sistemas processuais os movimentos conforme as Tabelas Processuais Unificadas (TPUs).” A partir da análise das sugestões de alteração de lei, as quais percorrerão adiante, observa-se que o principal argumento ou preocupação fundante foi a prescrição, ou seja, com o tempo exasperado da duração de alguns processos de competência do júri. Assim, o projeto de lei sugere algumas medidas de sumarização do rito do júri, por exemplo, a diminuição da possibilidade de arrolamento de testemunhas pelas partes de 5 (cinco) para 3 (três) – fase do art. 422 do CPP - nos casos das modalidades de homicídio simples e tentado, como se nota a seguir:
Ademais, a redução de testemunhas em plenário implicaria, principalmente, na expressa violação da garantia constitucional da plenitude de defesa, pois restringe consideravelmente o acervo probatório produzido pelas partes perante o jurado durante o julgamento. O princípio constitucional da plenitude de defesa está descrito no art. 5º, inc. XXXVIII, alínea “a”, da Constituição da República. O projeto, ainda com intuito de reduzir o tempo despendido do judiciário nas sessões plenárias, propõe reduzir o corpo de sentença de 7 (sete) jurados para 5 (cinco) jurados. Essa sugestão de alteração vai contra todas as garantias fundamentais do acusado, ela é, com a devida vênia, um contrassenso. É notória a necessidade imperativa do júri de aumentar o corpo de jurados, além de permitir o número par dos mesmos com o fim de garantir ao acusado o “tão surrado” princípio in dubio pro reo do Processo Penal atual. “Art. 447. Parágrafo único. Nos casos em que o crime doloso contra a vida, que motivou a decisão de pronúncia, for na modalidade tentada ou tratar-se de homicídio simples e daqueles crimes previstos nos arts. 122 a 126 do Código Penal, o Conselho de Sentença será formado por 5 (cinco) jurados, sorteados dentre os alistados. “ Prepare-se, caro leitor, pois agora vem a parte mais assustadora do projeto, e insisto, com a devida vênia. Conforme a redação contida no art. 477 do CPP o tempo da fala das partes é de uma hora e meia, e uma hora para a réplica e tréplica em todos os processos de competência do Tribunal do Júri. O atual projeto de lei ambiciona reduzir o tempo de fala pelas partes para uma hora, e meia hora para a tréplica e réplica nos processos de crime de homicídio na sua modalidade simples, tentada, e artigos 122 aos 126 do CP. Ademais, deixa uma infeliz brecha nos processos de suposta “baixa complexidade” para as partes pleitearem, com a devida anuência do magistrado, a redução maior ainda do tempo das orações (em até metade do tempo estipulado no caput!), como se demonstra a seguir:
Diante disso se questiona em como será possível aferir o que é um caso de “baixa complexidade” para o jurado? Afinal, é ele quem vai julgar. Aborda-se, nesse momento, o tempo mínimo e necessário para uma construção exauriente da cognição processual dos jurados. Sim, a cognição exauriente, e não a sumária como é a almejada pelo projeto de lei. O Processo Penal inserido na complexidade do ritual judiciário almeja fazer uma reconstrução aproximada de um fato passado. Isso ocorre através das provas que permitem a construção de atividade cognitiva, a partir da qual se produzirá o convencimento externado na sentença. Assim, se dá os modos de construção do convencimento do julgador que formará sua convicção e legitimará o poder contido na sentença. (LOPES, 2007, p. 506). Sumarizar no direito sugere trazer à tona o problema do tempo, pois são os tempos do processo como, por exemplo, tempo do transcurso do processo, tempo para conhecer o processo, tempo para a reconstrução dos fatos, tempo para as partes trabalharem, tempo para a produção probatória, tempo da maturação do processo, tempo para as tomadas de decisão do magistrado, tempo para se verificar a eficácia das decisões, etc. que podem reger as garantias individuais daquele ser humano que irá ser julgado como culpado ou inocente de um determinado crime. Abreviar o tempo para um julgamento ou sumarizar a cognição do processo implica na demonstração da ambição do legislador em resolver as consequências jurídicas de um suposto ato ilícito de forme célere e deficiente, e não resolver, por exemplo, as causas que permitem a demora da prestação jurisdicional no Brasil. Ocorre que estamos vivendo em uma sociedade acelerada, a qual está sempre conectada ao tempo digital dos meios de comunicação face à tecnologia que rege o mundo. Deste modo, percebe-se uma confusão entre o tempo (digital/social) com o tempo que se deve coordenar um processo, e, por conseguinte, a cognição do processo. Complexo é o ato de sumarizar o processo, pois significa abreviar o tempo de um mecanismo essencial que é o princípio constitucional do devido processo legal. Faz-se necessário que o processo decante, ou seja, que seja purificado das vicissitudes patológicas do nosso senil Código de Processo Penal – necessidade de “reforma acusatória” (SILVEIRA, 2018, p. 352). Tudo isso de acordo com uma razoável duração do processo penal (outro tema complexo). Não esqueçamos que a sumarização será sempre uma quebra do paradigma ideal de processo. Acredita-se que quebra do paradigma ideal de processo não pode ocorrer com o tempo da construção de cognição pelos jurados, pois se é nítido que o jurado irá julgar um processo criminal sem exaurimento de sua cognição. Importante mencionar que não se sabe qual é o tempo ideal da formação de cognição para os jurados, mas reduzi-lo não parece ser a mais segura opção jurídica. Aí você pode (e deve) se questionar: mas quem garante que a cognição dos juízes togados são exaurientes? Nada, no entanto, existe o dever de fundamentação na decisão do juiz togado. “Nesse sentido, os estudos demonstram que não existe qualquer incompatibilidade entre o conteúdo da garantia de motivação das decisões judiciais e dos princípios inerentes ao juízo popular, os quais podem ser perfeitamente harmonizados em âmbito infraconstitucional.” (NARDELLI, 2019, p.528) No sentido do risco – efeitos negativos - em que se encontra a sumarização do tempo em detrimento das garantias processuais: O subterfúgio das discussões que têm em seu centro o tempo como responsável pela lentidão processual, torna-se evidente. Num estratagema falho, muitas vezes fomentador de reformas superficiais, distanciam-se da realidade do problema, dificultando-lhe a solução. A morosidade não estaria ligada ao processo (ou procedimento), mas sim à ineficaz, e muitas vezes desestruturada, prestação da atividade jurisdicional monopolizada pelo Estado-Juiz. (FREITAS; FREITAS apud SOUZA, 2019) O tempo no júri sempre foi alvo do legislador, por exemplo, vale observar a reforma de 2008, momento em que ele foi reduzido consideravelmente também com o intuito do legislador de sanar aquela mesma problemática anterior: o tempo. O que está acontecendo com o atual projeto de lei não é diferente. Por qual razão a sugestão legislativa não foi no sentido de instruir todo o Processo Penal de competência do Tribunal do Júri na forma oral, e em uma única sessão plenária frente aos jurados, já que a preocupação é o tempo do processo? O que de fato extinguiria a primeira fase do rito do júri, e assim prevaleceria o princípio da oralidade, bem como a produção probatória se daria na sua totalidade perante o jurado. Sem sombra de dúvidas teríamos outros problemas a enfrentar. Contudo, o tempo de maturação do processo merece pleno respeito, bem como o acusado merece um Processo Penal em conformidade com as garantias constitucionais. Para finalizar, registra-se uma frase do Diagnóstico das ações penais de competência do Tribunal do Júri (p.14), ou seja, do mesmo texto que influenciou a sugestão legislativa do corrente ano para uma aguda reflexão. “É possível conjecturar que a própria dinâmica do procedimento do Tribunal do Júri exerça uma influência nesses resultados. A sentença de pronúncia já veicula uma manifestação judicial formal no sentido da materialidade do crime e dos indícios de autoria e, muito embora esteja assentada em um juízo prelibatório, seu conteúdo, somado à atuação do Ministério Público na persecução criminal, reforçam uma posição inicial do Estado pela punição do réu cujas influências sobre o Conselho de Sentença ainda estão por ser melhor estudadas. “ Carla Tortato Mestre em Teoria e História da Jurisdição (UNINTER). Especialista em Direito Penal e Processual Penal (ABDCONST). Advogada REFERÊNCIAS Diagnóstico das Ações Penais de Competência do Tribunal do Júri. Conselho Nacional de Justiça – Brasília: CNJ, 2019. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/553b50f521d5d129f155d820729b8464_4bde6f567b21f4790c5b11e4aedf1d92.pdf Acesso em 11 de maio de 2020. FREITAS, Sérgio Henrique Zandona de; FREITAS, Carla Regina Clark da Costa Zandoná. A cautelaridade no processo constitucional: estudo dos institutos do tempo, duração razoável, celeridade e efetividade no Estado Democrático de Direito. In: João Antonio Lima Castro (Coord.). Direito Processual: fundamentos constitucionais. Belo Horizonte: PUC Minas, Instituto de Educação Continuada, 2009. p. 660-684. Apud SOUZA, Maria Ester Alcantara de. O tempo (d)no processo: considerações no Processo Civil Brasileiro sob o enfoque dos princípios institutivos no Estado Democrático de direito. Disponível em: < http://ambitojuridico.com.br/ccadernos/direito-processual-civil/o-tempo-d-no-processo-consideraçoes-sobre-a-sumarizaçao-da-cogniçao-no-processo-civil-brasileiro-sob-o-enfoque-dos-principios-institutivos-do-processo-no-estado-democratico-de-direito/ > Acesso em 01 de dezembro de 2019. LOPES JUNIOR, A. Direito processual penal e sua conformidade com a constituição: Vol. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. NARDELII, Marcella Mascarenhas. A prova no Tribunal do Júri: uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro; Lumen juris, 2019. SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Por uma teoria da ação processual penal: aspectos teóricos atuai e considerações sobre a necessária reforma acusatória do processo penal brasileiro. Curitiba: Coleção Mentalidade Acusatória, 2018. Sugestão de Alteração Legislativa Projeto de Lei nºXXX, de 2020. Disponível em https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/02/Sugest%C3%A3oLegislativa-TribunalDoJuri-19022020.pdf Acesso em 10 de maio de 2020.
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