‘’El día que una mujer pueda no amar con su debilidad sino con su fuerza, no escapar de sí misma sino encontrarse, no humillarse sino afirmarse, ese día el amor será para ella, como para el hombre, fuente de vida y no un peligro mortal’’.
Simone de Beauvoir Analisando por uma perspectiva histórica, o direito penal classificou a mulher e possuía a preocupação como sujeito passivo dos crimes sexuais, utilizando termos como ‘’mulher honesta’’[1], ‘’virgem’’, ‘’prostituta’’, ou ‘’pública’’ no qual fizeram parte da composição do ordenamento jurídico e do Código Penal brasileiro. Em situação oposta, no polo ativo dos delitos, a mulher sempre pode cometer qualquer crime, sem minoração na aplicação da pena, mesmo quando o próprio Código Civil considerava um ser humano menos hábil, possuindo diversas restrições em seus direitos[2]. Por diversos anos, a justificativa para essas diferenças, primordialmente no direito penal, não era a preocupação de quando a mulher cometia algum crime, mas quando era vítima, criando uma clara diferenciação entre as mulheres. Nesse sentido preceitua MONTENEGRO: ‘’ O conceito de mulher honesta, que vincula a honestidade feminina à sua sexualidade, tão bem reproduzido pelo Direito Penal, foi uma importante maneira de a lei legitimar o padrão esperado da conduta feminina’’[3]. No que tange aos papéis desenvolvidos na sociedade entre o feminino e o masculino, vislumbra-se uma naturalização de determinados comportamentos. Interessante notar o condicionamento para algumas tarefas desde a infância, quando mulheres ganham seus brinquedos (bonecas, fogãozinho, brinquedos para limpar a casinha das bonecas), enquanto os brinquedos masculinos se compõem por carros, tanques de guerra, quebra-cabeças, brinquedos de experimentos científicos, o que contribui para a própria manutenção da construção social, do que espera-se da conduta feminina e masculina. O comportamento sexual interfere demasiadamente na reputação das mulheres, e esse termo da mulher honesta permeou não só os crimes contra o costume, mas também os crimes contra a vida, a integridade física e a honra. Nesse sentido, se uma mulher traísse seu marido, não era mais um referencial da mulher honesta, justificando agressões e até sua morte em decorrência de seu comportamento. Os debates relativos a violência contra a mulher e o Direito Penal se intensificaram nos anos 80, em decorrência da criação da Delegacia da Mulher. A Constituição preocupou-se em garantir a igualdade entre homens e mulheres, bem como buscou coibir a violência doméstica e demais agressões[4]. Com o intuito de proporcionar um maior acesso à justiça, criou-se em 1995 os Juizados Especiais Civis e Criminais, nos quais nos Juizados Especiais Criminais a prioridade foi atender os casos de violência doméstica, bem como os crimes de lesão corporal e ameaças, tendo em vista o aumento exacerbado de casos e relatos de agressões. Nesse sentido, vislumbra-se a importância da criação da referida lei, analisando casos concretos e dados sobre a violência de gênero, feminicídio, assédios sexuais e abusos. Conforme dados do Mapa da violência até o ano de 2015, estima-se que entre 1980 e 2013, em uma escala crescente ao decorrer dos anos, morreram 106.093 mulheres vítimas de homicídio. Em 1980 as vítimas somavam 1.353 mortes e em 2013 chegaram a 4.762 mortes, um aumento de 252%. Em 2006 fora sancionada a Lei nº 11.340 conhecida como Lei Maria da Penha e observando o período de 2006 a 2013 após a vigência da lei observa-se a diminuição dos números de homicídios, caindo esse percentual para 2,6% no ano[5]. Analisando estatísticas internacionais, o Brasil ocupa a 5ª posição nas mortes das mulheres, conforme dados da Organização Mundial da Saúde, em um grupo composto por 83 países no mundo, tendo em vista a taxa de 4,8 de homicídios a cada 100 mil mulheres no país. Somente El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Federação Russa possuem taxas maiores que do Brasil. Um índice efetivamente preocupante[6]. No Estado do Paraná, havia em andamento no Ministério Público até o ano de 2015, 400 casos de feminicídio e no Brasil como um todo foi registrado entre 2016 e 2017, 2.925 casos, totalizando oito casos por dia[7]. Conforme a Promotora de Justiça Mariana Bazzo: "Infelizmente quando chega no feminicídio, já aconteceram outras violências que compõem um ciclo de violências psicológicas, e, depois, uma lesão corporal, e aí culmina com o feminicídio. Desse número, mais de 90% se refere à violência doméstica e familiar"[8]. Dessa forma, vislumbra-se a importância do debate sobre as questões suscitadas bem como a análise de questões históricas relativas a violência contra a mulher na sociedade. DA MULHER HONESTA À PROMULGAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA: O FEMINISMO NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA. Nas palavras de MONTENEGRO:
Nessa forma, observa-se a clara colocação e distinção dos papeis na sociedade para que não houvesse conflitos. O homem sempre fora dotado de ser provedor, racional, manter a casa, ser o dono da situação, para a mulher, assumia o papel de frágil, doce, doméstica, sensível, tratada como um objeto de satisfação masculino. Nesse entendimento, o fato das mulheres não serem socialmente propensas a crimes e condutas delitivas, despertou o interesse de estudo de diversos criminólogos. Um dos livros mais conhecidos foi La donna delinquente, escrito por Lombroso e Giovanni Ferrero. Na obra é abordado que as mulheres são portadoras de características determinadas fisiologicamente como a passividade e imobilidade[10]. Aduz MONTENEGRO:
Nesse sentido, é claro a forma na qual a mulher era percebida como o sujeito passivo da sociedade, pelas determinações sociais colocando-a sempre como frágil, delicada e sensível perante todas as questões suscitadas. Essas questões não são exclusividade do ordenamento jurídico brasileiro mas sim diversos códigos da época[12]. Interessante analisar a evolução legislativa e a figura da mulher, desde as Ordenações do Reino até o ordenamento jurídico atual. Nesse sentido:
Posteriormente, no Código Criminal do Império eram utilizados a terminologia da ‘’mulher honesta’’ em diversos tipos penais, como no artigo 224 que preceituava: ‘’ seduzir mulher honesta, menor de dezessete anos e ter com ella copula carnal’’. No que tange aos tipos penais referentes ao estupro, não era previsto penas caso o mesmo ocorresse durante o casamento, conforme disposição do artigo 219, e da última parte conforme preceituava o artigo 225[14]. No Código Penal de 1890, foram analisados inúmeros erros, sendo considerado um código inferior ao anterior, pois possuía inúmeras lacunas legislativas. Não houveram mudanças significativas nos crimes sexuais, a mulher continuava sendo tratada como virgem, honesta e prostituta[15]. No código penal atual de 1940, observa-se mudanças em diversas questões e nos crimes contra os costumes. A primeira ocorreu com a promulgação da Lei dos crimes hediondos, nº 8.072/90, no qual equiparou e aumentou as penas dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Com a Lei nº 12.015/2009, foi afastada a lógica dos crimes contra os costumes para tutelar a dignidade sexual, entre as mudanças, alterou-se a lei em que a vítima poderia ser somente a mulher nos casos de estupro, podendo qualquer pessoa ser o sujeito passivo[16]. Referente a Lei Maria da Penha, o feminismo no Brasil e sua relação com o Direito Penal, vislumbra-se a importância da luta e do movimento para a busca de igualdade de gênero, bem como para um transformação efetiva no Direito e na cultura. O marco e a principal mudança no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, no qual equiparou em direitos e garantias os homens e as mulheres. Contudo, no Direito Civil, tal equiparação só ocorreu no código de 2002[17]. A Lei nº 11.340/2006 possui um forte valor simbólico, criada com o intuito de dar um tratamento efetivo às mulheres que encontrem-se em situação de risco e vulnerabilidade. A tutela penal nesses crimes e sua expansão não ocorreu somente no Brasil, está ocorrendo na Europa e América Latina. Na Espanha em 2004 entrou em vigor a lei que prevê medidas protetivas integrais contra a violência de gênero. No Brasil torna-se comum a promulgação de leis com nomes simbólicos, primordialmente de casos com grande repercussão midiática[18]. Em 1983, Maria da Penha, mulher na qual a lei promulgada faz referência, sofreu duas tentativas de homicídio. A primeira tentativa foi um tiro que a deixou paraplégica, e na segunda recebeu uma descarga elétrica durante um banho. Em 2002, após 19 anos da prática do crime, o marido de Maria da Penha permaneceu dois anos preso. Posteriormente, foi feita uma denúncia a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no qual foi reconhecido pela primeira vez a denúncia de um crime de violência doméstica[19]. Portanto, a relação do direito penal com a mulher historicamente permeou o controle de sua sexualidade. Conforme demonstrado na análise dos códigos e questões históricas referentes as mulheres e seu papel social, vislumbra-se que nesses crimes a mulher só poderia ser vítima quando considerada honesta. A própria configuração da mulher honesta ultrapassou as barreiras dos crimes contra os costumes sendo discutida inclusive nos crimes contra a vida e integridade física. A Constituição Federal de 1988 foi um marco na equiparação dos direitos e garantias das mulheres, bem como posteriormente a promulgação da Lei Maria da Penha no combate a violência de gênero. Contudo, as mudanças legislativas ainda possuem forte valor simbólico, pois há muito a ser feito para a devida aplicação no ordenamento jurídico brasileiro em sua totalidade. A visibilidade da violência doméstica ocorreu com a Lei nº 9.099/95 e a criação dos Juizados Especiais Criminais para tratar dos crimes de menor potencial ofensivo. Nas palavras de MONTEGRO:’’ Antes dessa lei, e isso foi demonstrado por diversos pesquisadores no Brasil, essas denúncias não saíam das delegacias, não chegavam a gerar nenhum procedimento formal, pois eram resolvidos ‘’amigavelmente’’ entre o comissário de polícia e as partes’’[20]. A lei nº 11.340/2006 possui grandes avanços na proteção da violência de gênero e agressões contra as mulheres, contudo, apresenta problemas na aplicação penal pois tornou-se conhecida em decorrência da grande divulgação midiática, e, possuindo forte valor simbólico na aplicação da pena vislumbra-se a melhor aplicação as medidas de caráter preventivo nos casos concretos[21]. Portanto, demonstra-se a importância do debate para efetivação dessas garantias no contexto atual. Paula Yurie Abiko Graduanda Centro Universitário Franciscano do Paraná – FAE Estagiária do Ministério Público Federal Membro do grupo de pesquisa O mal estar no Direito Modernas Tendências do Sistema Criminal Trial by Jury e Literatura Shakesperiana Membro do International Center for Criminal Studies e da Comissão de Criminologia Crítica do Canal Ciências Criminais Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica.Revan. 2015. https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/brasil-registra-oito-casos-de-feminicidio-por-dia-diz-ministerio-publico.ghtml, acesso em 20 de abril de 2018. https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/mp-pr-investiga-mais-de-400-casos-de-feminicidio-desde-2015-em-todo-o-estado.ghtml, acesso em 20 de abril de 2018. http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/RADIOAGENCIA/484154-FAZ-DEZ-ANOS-QUE-EXPRESSAO-MULHER-HONESTA-FOI-RETIRADA-DO-CODIGO-PENAL.htmlm , acesso em 20 de abril de 2018. MapaViolencia_2015_mulheres.pdf, acesso em 20 de abril de 2018. https://www.todamateria.com.br/lei-maria-da-penha/, acesso em 20 de abril de 2018. [1]‘’Até o ano de 2005, existia na lei brasileira um dispositivo curioso. Se uma mulher vítima de violência sexual se casasse com o seu agressor ou com outro homem, o crime simplesmente deixava de existir. O casamento arranjado era uma maneira de extinguir a pena do agressor. Isso estava previsto na Lei 11.106 do Código Penal. A legislação estava em vigor desde 1940, nos chamados "Crimes contra os Costumes". ‘’ Nesta semana se completam 10 anos que essa legislação foi alterada. Entre as mudanças feitas em 2005, também se destaca a retirada da expressão "mulher honesta" do Código Penal. Penas maiores foram criadas para abusos sexuais contra menores de 18 anos. E foi criada a tipificação penal para o crime de tráfico de pessoas. Em vez de "Dos Crimes contra os Costumes", a redação atual é de "Dos Crimes contra a Dignidade Sexual". http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/RADIOAGENCIA/484154-FAZ-DEZ-ANOS-QUE-EXPRESSAO-MULHER-HONESTA-FOI-RETIRADA-DO-CODIGO-PENAL.htmlm , acesso em 20 de abril de 2018. [2]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 27. [3]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 27. [4]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 27. [5]file:///C:/Users/Andreia/Downloads/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf, acesso em 20 de abril de 2018. p. 13. [6]file:///C:/Users/Andreia/Downloads/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf, acesso em 20 de abril de 2018. p. 29. [7]https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/brasil-registra-oito-casos-de-feminicidio-por-dia-diz-ministerio-publico.ghtml, acesso em 20 de abril de 2018. [8]https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/mp-pr-investiga-mais-de-400-casos-de-feminicidio-desde-2015-em-todo-o-estado.ghtml, acesso em 20 de abril de 2018. [9]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 33. [10]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 34. [11]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 35. [12]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 38. [13]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 40. [14]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 42. [15]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 44. [16]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 51. [17]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 99 e 100. [18]‘’ A Lei n.º 11.340, de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, é uma lei que visa proteger a mulher da violência doméstica e familiar. A lei ganhou este nome devido à luta da farmacêutica Maria da Penha para ver seu agressor condenado’’. https://www.todamateria.com.br/lei-maria-da-penha/, acesso em 20 de abril de 2018. [19]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 108 e 109. [20]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 195. [21]MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha. Uma análise criminológico crítica. Revan. 2015. p. 197. Comments are closed.
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