É comum ouvirmos julgamentos falando que tal pessoa tem "duas caras". Mas é possível que, além desse tipo de pensamento, há, de fato, muito mais sobre a pessoa a quem destinou-se o comentário. A realidade é que o ser humano é um ser adaptável, já que deve conviver em ambientes diferentes e, portanto, apresentar comportamentos diferentes.
Entretanto, o que pensar quando encontramos essa adaptação a partir de um transtorno psiquiátrico que resultou em um crime? Muito provavelmente, essas situações são mais presentes do que imaginamos, mas podemos tomar como exemplo a vida da escritora Anne Perry. Sendo uma das autoras mais conceituadas da atualidade no gênero policial, nasceu na Inglaterra, em 1938. Acabou tendo que se mudar muito já em pequena idade, durante e logo após a guerra. Com seis anos, ficou doente, fazendo com que pulasse alguns anos no colégio. Mesmo assim, nunca perdeu o contato com os livros, o que teve um grande peso no desenvolvimento de sua imaginação e criatividade. Essa curta biografia nos dá uma ideia de quem a autora é, sendo que os dados foram retirados de seu site oficial. Mas como já falado, uma pessoa pode ser muito mais do que aquilo que falam dela. Anne Perry, na verdade, é o pseudônimo de Juliet Hulme. Junto com Pauline Parker, foi autora de outro feito também: o assassinato de Honorah Parker, em 1954, um dos crimes que mais chocou na época. Colegas na escola e amigas que compartilhavam histórias, Juliet e Pauline eram inseparáveis, tanto que, em determinado momento, a obsessão por estarem sempre juntas começou a tornar-se perigosa. Visto que os pais de ambas passaram a notar isso também, junto com o fato de Hulme, como já dito anteriormente, ter recaídas constantes por sua doença, ter sido aconselhada a mudar-se para um local mais quente, essa separação não foi aceita por elas. Dessa forma, Juliet e Pauline, com 15 e 16 anos respectivamente, planejaram a morte da mãe de Pauline, já que esta não concordava com a ideia da filha viajar junto com a amiga. Com o pretexto de caminharem, as meninas convidaram a Sra. Parker para um passeio no parque mas, no caminho, a acertaram mais de 20 vezes com um tijolo colocado dentro de uma meia (GILLIES, 2011). Elas foram condenadas e presas separadamente. Cerca de cinco anos depois, saíram em liberdade onde receberam novas identidades, seguindo suas vidas da forma mais comum quanto pode ser possível. Houveram especulações que diziam que elas poderiam ser soltas com a condição de que nunca mais se encontrassem, mas isso nunca foi confirmado. No filme que retrata o caso, Almas Gêmeas ("Heavenly Creatures", dirigido por Peter Jackson, em 1994), fica claro que a relação delas ia além da amizade. Conseguiam ver, uma na outra, alguém em quem confiar seus mais profundos sentimentos, e, sem julgamentos, podiam criar seu próprio mundo de fantasia, com histórias em que elas eram as personagens principais, numa intensidade que, muitas vezes, entrava no delírio. E isso foi alimentado por elas durante muito tempo, culminando no assassinato. Há um quadro clínico que assemelha-se ao ocorrido. O folie à deux, expressão francesa que significa "insanidade a dois", é "um transtorno mental no qual ideias delirantes são transferidas de um paciente primariamente afetado para um ou mais indivíduos intimamente a ele relacionados" (BALDAÇARA, NÓBREGA, MARQUES e SANCHES, 2006). Em separado, esse delírio pode não ocorrer, mas ele é significativamente reforçado quando os outros sujeitos estão envolvidos. Parece extremamente improvável uma situação como essa, já que os sintomas são bem particulares, mas o caso Parker-Hulme ilustra esse transtorno de uma forma extraordinária, ao pensarmos a que ponto pode chegar a mente humana. Para as questões jurídicas, há apenas o que especular: sabendo que foi um crime premeditado, mas também tendo conhecimento de um possível transtorno psiquiátrico, como deveriam ter sido julgadas? Foi correto solta-las com apenas um pouco mais de cinco anos reclusas? É interessante pensar que, se continuassem presas, talvez Anne Perry nunca tivesse surgido e, consequentemente, a literatura policial estivesse mais pobre. O fato é que não há como ter certeza das consequências de nossas decisões. Assim como Juliet e Pauline tomaram como alternativa para ficarem juntas a morte da mãe, uma condenação, tanto quanto a soltura, trará muitos desdobramentos, os quais nem sempre temos condições de controlar. Ludmila Ângela Müller Psicóloga Especialista em Psicologia Jurídica REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS http://www.anneperry.co.uk/about BALDAÇARA, Leonardo, NÓBREGA, Luciana Porto Cavalcante, MARQUES, Ana Paula, SANCHES, Marsal. Folie a deux: conceito e relato de caso. In. Arq Med Hosp Fac Cienc Med Santa Casa São Paulo. 2006. Disponível em <http://fcmsantacasasp.edu.br/images/Arquivos_medicos/2006/51_2/vlm51n2_6.pdf>. Acesso em 28 mai. 2017. GILLIES, Abby. The Parker-Hulme murder: Why it still matters to us. Disponível em <http://www.nzherald.co.nz/nz/news/article.cfm?c_id=1&objectid=10765998>. Acesso em 28 mai. 2017. Comments are closed.
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