Artigo de Leomar Rippel no sala de aula criminal, sobre o golpe militar de 1964 no Brasil, vale a leitura! ''À vista disso, o golpe é a extensão da crise do populismo, que tem suas origens em 1930, quando o Brasil deixa de ser apenas agroexportador para realizar a industrialização de bens de consumo rápido, por meio de um modelo de desenvolvimento que não necessita de amplo investimento tecnológico. Portanto, esse impasse do capitalismo brasileiro, baseado em pouco investimento em capital tecnológico e forte dependência externa, levou à estagnação econômica e à crise na mediação dos interesses e das classes sociais brasileiras''. Por Leomar Rippel ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
O objetivo deste texto é analisar o golpe empresarial civil-militar ocorrido no Brasil, em 1º de abril de 1964, como sendo um processo bem articulado há anos e não como um fato isolado e uma mera improvisação por parte das classes dominantes. Nesse sentido, inúmeras pesquisas, realizadas por perspectivas teóricas diversas, analisam suas as causas, a partir de pontos de vista que ora se complementam, ora se contradizem. Para os saudosistas da ditadura, por exemplo, foi um movimento preventivo, contrarrevolucionário, de reação ao avanço do comunismo. Já para a concepção que denominaremos de “neutra”, o golpe foi fruto de causalidade e imprevisibilidade histórica, pois os fatos poderiam ter ocorrido de outra forma. E ainda há aqueles que defendem que o golpe foi o resultado das polarizações de extrema esquerda e de extrema direita ocorridas na época, e que o presidente João Goulart foi incapaz de apaziguar os ânimos dos extremistas. Mesmo entre os críticos que defendem que o golpe interrompeu a normalidade das regras democráticas burguesas, há variantes interpretativas. Alguns argumentam que se tratou de um episódio da crise do “populismo” no Brasil, em que a última liderança de destaque, Goulart, “teria contado com bases político-sindicais de alcance limitado, atingindo apenas o próprio Executivo” (MENDONÇA, 2004, p. 31). Entretanto para outros, prossegue a autora, “seria a própria defasagem entre a cúpula e as bases dos sindicatos de esquerda a principal responsável pela desativação do ‘dispositivo sindical-militar’ que sustentara o último presidente civil, resultando no golpe” (MENDONÇA, 2004, p. 31). Ainda há aqueles que argumentam que o grande peso do capital estrangeiro, principalmente o americano, foi um elemento articulador do golpe civil-miliar, uma vez que estava em jogo a defesa dos investimentos diretos e indiretos dos Estados Unidos no Brasil. Para tanto, desconsiderar a polêmica seria simplificar a análise diante da complexidade dos fatos. Levando em consideração o exposto acima, acreditamos que o golpe empresarial civil-militar foi resultado de “múltiplos fatores e interesses, todos eles profundamente relacionados por redefinições imprimidas, a partir de meados da década de 1950, ao padrão da acumulação capitalista no Brasil” (MENDONÇA, 2004, p. 32). Dessa maneira, o golpe constituiu-se, enquanto acontecimento histórico, a partir de uma síntese de múltiplas determinações ou de uma unidade na/da diversidade. Nesse sentido, defendemos a necessidade de um olhar empenhado diante dos discursos cristalizados sobre o golpe empresarial civil-militar de 1964, pois a ausência de reflexão em torno das relações de poder que engendraram esse acontecimento – determinado por diferentes grupos econômicos e políticos – produz uma leitura alienada das representações simbólicas que circulam socialmente sobre esse fato histórico, seja nos livros escolares de História seja nos demais formatos de relatos historiográficos. Por isso, é ilusória a pretensão de entender o golpe a partir de um silenciamento das contradições de classes que influenciavam a configuração econômica da época, tornando-se imprescindível uma leitura pormenorizada dos fatos e de suas implicações na totalidade do acontecimento. 1.1 O PROBLEMA DAS HIPÓTESES CONTRAFACTUAIS E DA SUPOSTA “NEUTRALIDADE” NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO Nesta seção, iremos analisar quais são as problemáticas das hipóteses contrafactuais e a sua suposta neutralidade na produção do conhecimento histórico, cujo argumento de uso, em relação ao golpe militar de 1964, apoia-se na radicalização da esquerda e da direita para defender as teses sobre o golpe. Sobre essa questão, apresentaremos duas obras: a primeira, do jornalista Carlos Chagas, intitulada “A ditadura militar e os golpes dentro do golpe (1964-1968)”; e a segunda, de Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes, de nome “1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil”. De acordo com Chagas (2017), desde 1962 desenvolvia-se intensa campanha em torno das reformas de base e quem estava à frente das ações instigadas pelas esquerdas – inclusive as sindicais –, era João Goulart. Para ele, os assuntos mais discutidos eram: novos direitos trabalhistas, participação dos trabalhadores no lucro das empresas, estatização das grandes companhias privadas, a iniciar pelas refinarias de petróleo, intervenção nos laboratórios de medicamentos, limitação da remessa de lucros para o exterior, ensino público exclusivo e outras propostas ditas socializantes. Os setores conservadores, já conspiravam. (CHAGAS, 2017, p. 36). Para Chagas, o problema era a radicalização da esquerda, que ele denominou de “esquerda radical”, que “encarregava-se de esmagar” o anseio “socialista de boa parte da população. Ao apelar para o discurso e até ações provocativas, empurrava a opinião pública para os braços da reação. Sem esquecer a Igreja, então baluarte da direita, exceção de uns poucos bispos, como D. Helder Câmara” (CHAGAS, 2017, p. 38). Para Ferreira e Gomes, essa radicalização também foi o motivo do golpe, pois Jango estava diante de grande resistência organizada de lideranças e grupos da esquerda, que se negavam a negociar com o Partido Social Democrático (PSD), já que “Não queriam a conciliação e sim o confronto. Diante dessa situação cada vez mais ameaçadora, os pessedistas buscariam uma aproximação com os udenistas, mesmo que isso significasse o risco de engrossar a radicalização da direita” (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 215). Ferreira e Gomes, ao discorrerem sobre o golpe de 1964, tentam sustentar seus argumentos por meio de hipóteses contrafactuais. Segundo essa perspectiva, os fatos que aconteceram, poderiam não ter acontecido, sendo eles apenas resultado da imprevisibilidade histórica. Da mesma maneira que Coelho (2017), acreditamos que não existe nenhum problema em explorar hipóteses contrafactuais, no entanto, é importante saber como sustentar tais reflexões. Ferreira e Gomes defendem, como eixo central da sua análise, a imprevisibilidade histórica “para nela pendurar sua tese central, pouco original, de que havia alternativas à disposição dos ‘personagens históricos’ para evitar o golpe através de negociação e entendimento (a ‘outra história’ que poderia ter ocorrido)” (COELHO, 2017, p. 118). À guisa de exemplo, citamos a passagem abaixo para ilustrar as ideias e a argumentação de Ferreira e Gomes: aquilo que aconteceu ao final não tinha de forma alguma que acontecer. O golpe civil e militar de 1964 não estava contido na profunda crise política que abalou o Brasil em 1961. Tal golpe tampouco estava contido na crise política de 1954, que resultou no suicídio de Getúlio Vargas, como algumas vezes se aventa. Os que vivenciaram o governo Goulart não poderiam saber que o resultado das ações então empreendidas geraria um golpe, menos ainda com as características que tomou em seus desdobramentos. Nós, que estamos no futuro, é que sabemos o que aconteceu naquele passado. Por isso, ao longo de nossa narrativa, desejamos mostrar ao leitor como, em diversas oportunidades, se os personagens históricos tivessem se comportado de outra maneira, se tivessem adotado outras estratégias políticas, outra teria sido a história. O golpe de 1964 aconteceu, mas poderia não ter acontecido. (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 16). Na continuação do excerto, os autores prosseguem dizendo que jamais será possível saber os rumos que a história tomaria e como seria essa história que não aconteceu e que possuía alternativas “para contornar a crise política e margens para escolhas para os que viveram esse tempo. Elas poderiam abrir novos caminhos; outros futuros para o presente que então se vivia. Sem golpe de Estado” (FERREIRA; GOMES 2014, p. 16). Porém, sabe-se que os historiadores devem trabalhar a partir dos fatos do passado e não com suposições do que e como poderia ter sido, já que “se a explicação para o que ocorreu não for buscada no passado – se o passado (na verdade: o que sabemos sobre ele) não estiver contida nela – então estaríamos certamente diante de algo muito diferente de uma explicação histórica” (COELHO, 2017, p. 119). Ferreira e Gomes afirmam que o golpe de 1964 não estava contido na crise da renúncia de Jânio Quadros, mas, algumas dezenas de páginas, depois se contradizem, alegando que a crise já estava agravada após a renúncia de Jânio, uma vez que três ministros militares foram responsáveis por emitir “58 bilhões de cruzeiros em apenas duas semanas. Esse foi o custo de pôr em movimento a máquina militar para tentar impedir a posse de Goulart. Custou caro a tentativa de ruptura da ordem constitucional: caro, politicamente e financeiramente” (FERREIRA; GOMES, 2014, p. 88). Podemos afirmar, portanto, de forma categórica – como buscaremos demonstrar nas páginas que se seguem – que o golpe não foi mero fruto da imprevisibilidade histórica ou força do acaso, mas sim almejado e articulado por um conjunto de sujeitos históricos da época, visto que “eles não eram néscios, sabiam o que faziam. A apreciação histórica de suas intervenções exige a consideração das complexas conexões entre as suas intenções manifestas e o resultado prático de seus atos” (COELHO, 2017, p. 121). 1.2 O GOLPE EMPRESARIAL CIVIL-MILITAR COMO UMA UNIDADE DE MÚLTIPLAS DETERMINAÇÕES E MEDIAÇÕES Nossa intenção, neste tópico, é defender a tese de que o golpe reverberado na esfera política e institucional do Brasil tem suas explicações nas especificidades do capitalismo dependente brasileiro. Nesse caso, as dificuldades encontradas pelo governo João Goulart não eram apenas de natureza política e observáveis pelo modo como o Congresso rejeitava a maioria das propostas reformistas. Mas, acima de tudo, o golpe se explica pela forma como a nossa elite comercial, agrária, industrial e bancária optou por um desenvolvimento econômico brasileiro baseado, a saber: em uma economia extremamente concentrada e dependente do capital-imperialista, ou seja, extremamente assimétrica e subalterna em relação aos oligopólios do centro capitalista mundial. O imobilismo político do governo João Goulart tem suas explicações, por isso, na estagnação do crescimento industrial e no fim da mediação das tensões sociais. Se observarmos os dados econômicos do Brasil da época, notamos que, a partir de 1962, a taxa de investimento declinou, significando uma queda tendencial na taxa de lucros. Nesse momento, “os movimentos reivindicativos da classe operária e da pequena burguesia tornam-se cada vez mais agressivos. Era evidente que a economia brasileira estava num beco sem saída” (MARINI, 2000, p. 36). Para melhor elucidar tais argumentos, realizaremos uma análise sobre as especificidades do desenvolvimento capitalista brasileiro a partir de 1930, o que terá implicações diretas nas crises reverberadas na estrutura do Estado brasileiro. 1.2.1 As especificidades do desenvolvimento capitalista brasileiro Quando Getúlio Vargas assume o poder em 1930, a industrialização brasileira era incipiente, de modo que um dos principais projetos do governo Vargas era promover um amplo programa de industrialização, via substituição de importação, e tendo o Estado como o grande indutor e gerenciador desse processo. Porém, nosso processo de industrialização não ocorreu alterando a concentração da estrutura econômica, dentre elas a agrária, nem a dependência dos países imperialistas. Nesse sentido, para compreendermos como nosso capitalismo se desenvolveu a partir do início do século XX, precisamos levar em consideração o papel desempenhado por duas variáveis de fundamental importância em nossa economia: as exportações e importações. A exportação é uma variável exógena “responsável pela geração de importante parcela da Renda Nacional e pelo crescimento da mesma” (TAVARES, 1972, p. 29), e a importação pode ser entendida “como fonte flexível de suprimento dos vários tipos de bens e serviços necessários ao atendimento de parte apreciável da demanda interna” (TAVARES, 1972, p. 29). As exportações dos produtos primários, no caso brasileiro, resultaram desse modo, em um aumento da Renda Nacional e, por consequência, em um aumento da capacidade de importar, movendo desse modo o processo industrial que houvera iniciado. Ou seja, pelo fato de o Brasil ter uma extrema concentração de riqueza nas mãos de poucos, isso resultou na ausência de um amplo mercado consumidor interno, capaz de dinamizar o processo de industrialização através das bases endógenas, ficando então vulnerável a um conjunto de variáveis da economia dos países centrais do capitalismo. Por outro lado, nos países do centro capitalista, segundo Tavares, apesar de serem componentes importantes na formação da Renda Nacional, as exportações não são as únicas responsáveis pelo crescimento econômico, visto que há amplo mercado consumidor interno capaz de impulsionar e movimentar a economia. Nos países periféricos, a atividade industrial se torna extremamente restrita e dependente dos produtos agroexportadores, como foi o caso do Brasil, cujo setor agrícola de subsistência mostrou-se insuficiente para manter o dinamismo interno próprio. Por isso mesmo, “o crescimento econômico ficava basicamente atrelado ao comportamento da demanda externa por produtos primários, dando o caráter iminentemente dependente e reflexos de nossas economias” (TAVARES, 1972, p. 31). A industrialização nacional, mesmo considerando esses fatores, teve seu verdadeiro “impulso” a partir do conjunto de mudanças ocorridas ao longo da década de 1930. Nesse momento, foram estabelecidos “os contornos iniciais da implantação de um núcleo de indústrias de base, assim como a definição de um novo papel do Estado em matéria econômica, voltado para a afirmação do polo urbano-industrial enquanto eixo dinâmico da economia” (MENDONÇA, 1990, p. 327). Para Francisco de Oliveira (1988), o ano de 1930 marca o fim de um ciclo e o início de outro na economia brasileira: “o fim da hegemonia agrário-exportadora e o início da predominância da estrutura produtiva de base urbano-industrial. Ainda que essa predominância não se concretize em termos da participação da indústria na renda interna senão em 1956” (OLIVEIRA, 1988, p. 14). A expansão industrial brasileira, após 1930, é movida pela capacidade e dependência de pouquíssimos produtos primários na pauta de exportação. Dessa forma, uma economia com essas características, além de importar as crises econômicas, torna-se extremamente vulnerável às oscilações de precificações internacionais dos referidos produtos. Desse modo, as características da economia brasileira, latifundiária, monocultora, agroexportadora, herança de quase 400 anos de escravidão, fundamenta-se, a partir da utilização da receita cambial na importação de mercadorias manufaturadas como máquinas e equipamentos capazes de proporcionar o aumento e a diversificação da plataforma industrial. Nesse sentido, a crise no sistema de exportação brasileiro, iniciada a partir de 1929, apesar de outras configurações internas e extrenas, é retomada com intensidade nos anos 1950 e “lança a sociedade brasileira num processo de radicalização de suas contradições, que expressa a impossibilidade de seguir processando-se o desenvolvimento industrial dentro dos marcos semicolonais até então existente” (MARINI, 2000, p. 54). Concluímos que a depreciação dos preços dos produtos primários de exportação representou uma queda significativa na oferta de divisa, resultando em uma crise cambial e, com isso, em um encarecimento dos produtos importados. Como consequência, essa forma específica de desenvolvimento, associado e dependente, tem dificuldades de manter, com as divisas das exportações, os níveis de incrementos na plataforma industrial e, além disso, uma incapacidade de diversificá-las. Para Francisco de Oliveira, uma reflexão deve ser feita sobre o papel do capital estrangeiro no Brasil e sobre as relações entre um capitalismo que se desenvolve aqui com o capitalismo internacional. Não há dúvida que a expansão do capitalismo no Brasil é impensável autonomamente, isto é, não haveria capitalismo aqui se não existisse um sistema capitalista mundial. Não há dúvida também, que em muitas etapas, principalmente na sua fase agrário-exportadora, que é a mais longa de nossa história econômica, a expansão capitalista no Brasil foi um produto da expansão do capitalismo em escala internacional, sendo o crescimento da economia brasileira mero reflexo daquela. (OLIVEIRA, 1988, p. 48). Em resumo, a impossibilidade da expansão industrial ter uma continuidade torna-se concreta por duas limitações estruturais de nossa economia, segundo Marini (2000), a primeira se configura com a crise do comércio externo, havendo uma tendência constante de incapacidade do principal comprador brasileiro, os Estados Unidos da América, de absorver nossos produtos, impossibilitando desse modo as importações necessárias à industrialização; já a segunda limitação decorre do regime de propriedade das terras, o qual reduz ao máximo a oferta de gêneros alimentícios e de matérias-primas exigidas pela industrialização, aliado ao aumento da população urbana “que, além de impulsionar a alta dos preços (que estimula, por sua vez, os movimentos reinvindicativos de massas), concentra os rendimentos da agricultura em mãos de uma minoria e obstrui a expansão do mercado interno para a produção industrial” (MARINI, 2000, p. 55). A fómula encontrada dentro do capitalismo dependente e associado brasileiro pelos governos Café Filho e Juscelino Kubitschek (JK), no intuito de dirimir os conflitos entre capital e trabalho e tentar superar a crise econômica, foi abrir ainda mais a economia brasileira ao capital internacional, principalmente estadunidense, reduzindo, a curto prazo, a pressão sobre o câmbio, contudo, na verdade, apenas retardou-a, mas quando retornou foi com muito mais intensidade. Nesse sentido, a instrução 113 da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC) atual Banco Central, “cria o marco jurídico para essa política, que chega a seu auge com o Plano de Metas do governo JK, que arrecada cerca de 2,5 milhões de dólares em investimentos e financiamentos e impulsiona de novo a expansão industrial” (MARINI, 2000, p. 55). Contudo, a renúncia de Jânio Quadros e o iníco do governo Jango motivou o aumento das mobilizações e das greves de cunho eminentemente político. Os trabalhadores passaram a defender a democratização do Estado e aprovação de reformas amplas, não se restringindo a demandas corporativas. Ao mesmo tempo, aumentavam as mobilizações por reformas econômicas mais profundas, sintetizadas na defesa das chamadas ‘reformas de base’, pela crescente ampliação das conquistas sociais ou concessões obtidas durante o período de expansão e crescimento econômico, e a exigência de maior liberdade de organização sindical. Outro fator decisivo foi a emergência política dos trabalhadores rurais reivindicando direitos sociais e reforma agrária, atemorizando a burguesia agrária. Desde o início dos anos 1960, cresceram exponencialmente os movimentos dos trabalhadores rurais, com a constituição das ligas Camponesas e dos sindicatos rurais. Tais reivindicações não eram intrinsecamente anticapitalistas, mas produziam fissuras no bloco no poder, levando a burguesia agrária a uma sistemática oposição ao governo João Goulart e ao modelo político vigente (CALIL, 2014, p. 101-102). À vista disso, o golpe é a extensão da crise do populismo, que tem suas origens em 1930, quando o Brasil deixa de ser apenas agroexportador para realizar a industrialização de bens de consumo rápido, por meio de um modelo de desenvolvimento que não necessita de amplo investimento tecnológico. Portanto, esse impasse do capitalismo brasileiro, baseado em pouco investimento em capital tecnológico e forte dependência externa, levou à estagnação econômica e à crise na mediação dos interesses e das classes sociais brasileiras. 1.2.2 Complexo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática e a participação dos Estados Unidos da América no golpe militar de 1964 As tentativas de golpe depois da morte de Vargas e a renúncia de Jânio Quadros começam a se delinear, de forma mais evidente, uma organização golpista meticulosa, no início dos anos 1960, por isso, o golpe não é fruto de mera improvisação ou acidente de percurso, trata-se de uma construção pormenorizada, posta em prática por parte dos diferentes segmentos das classes dominantes. Uma das obras mais ilustrativas sobre o golpe militar brasileiro é a de René Armand Dreifuss, intitulada “1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe”, na qual o autor demonstra, de forma minuciosa, toda articulação do golpe desde 1962: O período de ação de classe organizada, [...] estendeu-se de 1962 a 1964. Politicamente, significou uma mobilização conjuntural para o golpe, quando estratégia se converteu em política e atividades político-partidárias finalmente se transformaram em ação militar. Esse foi o estágio do ‘esforço positivo’ em que vários escritórios de consultoria e anéis burocrático empresariais, associações de classe e grupos de ação formaram um centro político estratégico, o complexo IPES/IBAD. (DREIFUSS, 1987, p. 229). O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) foi fundado em novembro de 1961, nele congregavam-se militares, políticos e, principalmente, empresários muito bem articulados com o capital externo e com os recursos internacionais. Mas não havia apenas essa agência trabalhando na organização do golpe, como demonstra também a existência e o funcionamento, na época, do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Dreifuss (1987) denominou a relação desses instituídos de “complexo IPES/IBAD”, no qual o IPES funcionou como o âmago “elaborador da estratégia golpista. [...]” de modo que “ambos configuravam o ‘verdadeiro partido da burguesia’, o seu estado-maior para a ação ideológica, política e militares. Tudo isso sem falar no papel equivalente desempenhado pela ESG nos meios militares” (MENDONÇA, 2004, p. 36-37). Em relação ao IPES, sua estrutura, formação, formas de ação, manobras políticas e suas estratégias foram “incitar setores civis e militares contra o regime, com objetivo de criar um clima propício para a deposição do governo de Goulart, que não atendia aos interesses econômicos e políticos do grupo do capital multinacional e associado” (BORTONE, 2013, p. 37). O “complexo” IPES/IBAD, portanto, promoveu violenta campanha contra o que consideravam a “bolchevização” do Brasil, “tendo por lemas a segurança interna e o desenvolvimento ‘racional’. Atuavam em âmbito nacional, aglutinando setores industriais urbanos e até mesmo grupos rurais, em função da ameaça potencial de reforma agrária” (MENDONÇA, 2004, p. 36-37). Mediante isto, para defender seus interesses frente a este Estado e ao crescimento das massas, o empresariado empreendeu uma campanha ideológica em diversas frentes e criou formas de representar e negociar seus interesses. O IPES surge, neste contexto, a fim de conquistar a hegemonia para influenciar nas diretrizes políticas do Brasil. Sua formação era composta por diferentes frações do empresariado brasileiro, militares, fundamentalmente da ESG, intelectuais, executivos de grandes corporações, empresariado estrangeiro e o governo norte-americano (BORTONE, 2013, p. 38-39). De acordo com Marini (2000), houve intervenção direta do governo estadunidense no golpe civil-militar de 1964. Dinheiro da Aliança para o Progresso (ALPRO), por exemplo, era direcionado para os governadores dispostos a fazerem oposição ao Jango. Um caso ilustrativo foi o do governador da Guanabara, Carlos Lacerda que, entre 1961 e 1963, recebeu 71 milhões de dólares por essa via. O embaixador Lincoln Gordon, por exemplo, promoveu uma intensa articulação junto às classes empresariais por meio do IBAD e “interferiu diretamente na vida política, apoiando um grupo parlamentar (Ação Democrática Parlamentar) e financiando, nas eleições, aos candidatos de sua preferência” (MARINI, 2000, p. 41). A propaganda anticomunista foi muito utilizada pela ALPRO no pré-golpe, para tanto, a história em quadrinhos é o tipo de material que mais se destaca nessas propagandas anticomunistas na América Latina. No “Brasil, estes materiais eram distribuídos pelo posto da USIA no Rio de Janeiro e repassados ao IPES que, posteriormente, os redistribuía para sindicatos, setores do Exército, associações de estudantes, organizações católicas, etc.” (SILVA, 2008, p. 63). Em relação à participação da embaixada dos Estados Unidos no golpe, o jornalista Carlos Chagas também é enfático: Enquanto isso, a embaixada dos Estados Unidos, mergulhada até o pescoço na conspiração, fornecia recursos para todo movimento e todo veículo de comunicação que se dispusesse a levantar a bandeira do anticomunismo. À frente, o embaixador Lincoln Gordon, junto ao empresariado e o coronel Vernon Walters, antigo capitão, fluente em português, elemento de ligação entre o exército americano e a Força Expedicionária Brasileira na Itália, amigo de oficiais combatentes em 1944, já generais quase vinte anos depois (CHAGAS, 2017, p. 38). Sobre a participação do governo estadunidense e do complexo IPES/IBAD no golpe, Silva (1990) também afirma que, em primeiro lugar, a diplomacia americana utilizava a ALPRO para fornecer “alimentos e recursos aos estados e municípios que perfilhassem uma evidente oposição ao governo federal, chegando em alguns casos – como no Nordeste – a discriminar populações em estados de calamidade” (SILVA, 1990, p. 364). Em segundo lugar, segue o autor, houve o estímulo à doação de grandes somas de recursos para dois institutos no país: o IBAD e o IPES, criados para organizar e centralizar as ações contra o governo Goulart. Algumas medidas nacionalistas propostas por João Goulart contrariavam diretamente os interesses da burguesia nacional associada ao capital imperialista. Ao conseguir, do Congresso, lei restritiva da remessa de lucros para o exterior, teve contra si as multinacionais, igualmente em pé de guerra com a criação de um laboratório nacional para produção de remédios populares. Ao estatizar empresas, perdeu o apoio da pequena parte do empresariado nacional que ainda o respaldava. Ao desapropriar terras, não conseguiu impedir que os fazendeiros começassem a se armar, sob o inusitado refrão de ‘armai-vos uns aos outros’. Nas igrejas, os padres alertavam os fiéis sobre a iminência do comunismo. As sucessivas críticas aos Estados Unidos e a simpatia declarada a Cuba e a Fidel Castro levavam a CIA a ampliar as remessas de milhares de dólares clandestinos para campanhas pela formação de bolsões de resistência contra o comunismo e contra o governo (CHAGAS, 2017, p. 39). Esses institutos começam a receber fundos das empresas dos Estados Unidos e da Alemanha “estabelecidas no Brasil, em estreito contato com a CIA. Aos poucos, ambas as instituições passaram a ter uma ação em comum, procurando a assessoria direta de homens da Escola Superior de Guerra (ESG), como o Coronel Golbery do Couto e Silva ou Heitor Herrera” assumindo, assim, “o apoio financeiro da campanha de políticos que defendessem o capital estrangeiro e lutassem contra a reforma agrária, chegando a movimentar fundo no montante de US$ 12 bilhões” (SILVA, 1990, p. 364). Constatamos então que frações de militares das FFAA, principalmente aquelas vinculadas à Escola Superior de Guerra (ESG), também estavam articulando e conspirando com o golpe. É importante ressaltar que essas pesquisas, apesar de serem fundadoras, estão sendo aprimoradas por outros autores ao aprofundarem a tese da influência dos EUA no golpe de 1964. 1.2.3 A Escola Superior de Guerra e suas articulações com o golpe A ESG foi um dos instrumentos mais eficazes da presença política e ideológica estadunidense no cenário nacional. Foi criada em 1949, no contexto da Guerra Fria, seguindo o modelo de War Nacional College[2], tendo como objetivo a construção de uma doutrina para as FFAA. No entanto, a ESG tinha algumas diferenças em relação à War Nacional College, uma vez que suas preocupações iminentes eram o desenvolvimento e a “guerra revolucionária”, “assim, o binômio ‘desenvolvimento e segurança’ atendia ao mesmo tempo a um duplo objetivo: eliminar o atraso econômico evitando, assim, o fermento subversivo” (SILVA, 1990, p. 365). Se a ESG foi fortemente influenciada pela Doutrina de Segurança Nacional dos Estados Unidos da América; a concepção de Guerra Revolucionária[3] (GR), que pouca atenção tem merecido dos estudiosos, o foi pela Escola Superior de Guerra Francesa. O primeiro país da América Latina a importar as ideias francesas da GR foi a Argentina, por meio do então Coronel Carlos J. Rosas, quando retornou da França, em 1956, e assumiu a subdireção da Escola Superior de Guerra da Argentina. Dessa forma, pressupor que as FFAA foram alertadas sobre a Doutrina de Segurança Nacional pela War Nacional College, constitui um equívoco histórico, ao menos no caso das Forças Armadas de dois dos mais importantes países latino-americanos, Brasil e Argentina, as coisas não se passaram assim. Se marcarmos a data de nascimento da era kennediana da contra-insurreição em 18 de janeiro de 1962, quando o presidente promulgou o Memorando de Ação de Segurança Nacional 124 (NSAM-124), podemos afirmar que, nessa data, alertar os militares argentinos e brasileiros para a urgência de desenvolver uma doutrina de combate à guerra subversiva seria o mesmo que ensinar o Padre-Nosso ao vigário. Antes mesmo do triunfo da Revolução Cubana, os oficiais daqueles países tinham buscado, por conta própria, uma doutrina de guerra mais adaptada às suas necessidades, que os Estados Unidos não pareciam em condições de oferecer (MARTINS FILHO, 2008, p. 40). Percebemos então, a alteração substancial de preparação e atuação das FFAA, “inicialmente voltadas para a segurança externa, passam, gradativamente, a serem usadas como mecanismos de defesa da segurança interna, ou seja, atuam contra segmentos da população considerados atentatórios à segurança nacional” (SILVA, 2017, p. 71). Um dos pressupostos centrais da doutrina francesa de Guerra Revolucionária, diz respeito à ideia de que o elemento decisivo é o controle das informações, ou seja, sem um comando militar unificado seria impossível combater esse tipo de inimigo. Dessa maneira, “essa doutrina entra no campo das relações civis-militares. Ao fazê-lo, não hesita em afirmar que, se a sociedade democrática é incapaz de fornecer ao Exército o apoio necessário, então seria preciso mudar a sociedade, não o Exército” (MARTINS FILHO, 2008, p. 41). Nesse sentido, as diferentes formas de criminalizar as demandas populares não são algo novo na América Latina, pois, do mesmo modo que na Europa, as diferenças desse momento histórico em relação aos “precedentes foi a articulação internacional da ideologia e dos serviços de informações integrando a Europa, África e América, para nos determos apenas naqueles envolvidos na denominada Doutrina de Guerra Contrarrevolucionária” (SILVA, 2017, p. 73). Para tanto, a “experiente Europa colonizadora foi o berço que o testou em sua repressão às lutas pela independência dos países africanos. Desde então, foi difundida em todos os países sob a égide do bloco capitalista, com destaque para s regiões latino-americanas” (SILVA, 2017, p. 73). A influência da doutrina francesa de GR no Brasil pode ser verificada na palestra do coronel Augusto Fragoso, proferida em 1959, no curso do Estado-Maior e Comando da Escola Superior de Guerra, no Rio de Janeiro, com o título “Introdução ao estudo da guerra revolucionária”, na qual, apesar de apresentar algumas reflexões próprias, partia das referências da literatura francesa. As referidas reflexões indicam que a influência da Escola Superior de Guerra Francesa e dos estudos sobre GR estiveram presentes nas análises dos militares brasileiros desde 1959. Podemos afirmar que a bibliografia francesa sobre a GR é a única existente. A pesquisa de origem norte-americana não concedeu até agora ao assunto a importância merecida: nos últimos 14 números consultados da Military Review (de janeiro de 1958 a fevereiro de 1959) não há nenhum estudo, artigo ou tópico que trate, no título, de Guerra Revolucionária, Guerra Insurrecional ou Guerra Subversiva (FRAGOSO, 1959). As preocupações, por parte de muitos oficiais, sobre a guerra revolucionária facilitaram o entrelaçamento dos interesses militares aos das frações da grande burguesia nacional e internacional. A partir desse cenário, houve a união de setores da União Democrática Nacional (UDN) e de parte dos militares das FFAA, que tinham como intenção reconduzir o alinhamento automático aos Estados Unidos. Segundo Mendonça, a Doutrina de Segurança Nacional elaborada pela ESG destacava a manutenção do padrão de acumulação capitalista estrangeiro baseado no arrocho salarial e que “Restava aos militares assegurar sua coesão interna, aliando seus segmentos mais ligados à vertente nacionalista para, assim, garantir o apoio do empresariado que, há muito, arquitetava a ação golpista” (MENDONÇA, 2004, p. 37). Nas palavras de Marini, (...) não pretendemos negar a existência e a importância da influência norte-americana nos acontecimentos, não só, como assinalamos, pela atuação da Embaixada dos Estados Unidos, no Rio, e pela de organismo como o IBAD, como também pela política de vinculação das forças armadas do Brasil à estratégia do Pentágono. O acordo militar entre os dois países (assinado em 1942 e ampliado em 1954), a estandardização dos armamentos (1955), a criação de organismos continentais, como o Colégio Interamericano de Defesa (1961), as missões de instrução e de treinamento, tudo isso criou progressivamente uma elite militar inclindada a enforcar os problemas brasileiros na perspectiva dos interesses estratégicos dos Estados Unidos. Através de um centro de irradiação – a Escola Superior de Guerra –, a que pertenceu Castelo Branco, assim como outros chefes militares do regime atual – difundiram-se teorias como a da ‘agressão comunista interna’ e a da ‘guerra revolucionária’, criadas pelos franceses na campanha da Indochina. O espírito de casta e o paternalismo, que caracterizam os militares latino-americanos, fizeram o resto, levando as forças armadas brasileiras a preencher o vazio de poder que se havia criado (MARINI, 2000, p. 48). A ESG, com o passar do tempo, adquiriu características originais se comparada a outros movimentos “modernizadores de cunho militar na América Latina: a estreita aliança com o capital privado, a defesa do liberalismo econômico e a visão otimista quanto aos capitais estrangeiros” (SILVA, 1990, p. 365). Por isso, acreditamos que os militares, principalmente os oficiais generais ligados a ESG e os oficiais superiores (mais especificamente tenentes coronéis e coronéis), que tinham canais de comunicação com militares articulados ao golpe, estavam em estado de alerta, esperando apenas um motivo que justificasse a consolidação do golpe. Os veículos de comunicação hegemônicos, além da burguesia nacional e do capital internacional, também se opunham às propostas de reformas sociais de Jango. O próprio Skidmore, autor até certo ponto malvisto pela literatura crítica, em seu livro “De Getúlio a Castelo”, mostra a relação da imprensa com o golpe. Para ele, “Os movimentos paulistas de oposição, liderados por Júlio de Mesquita Filho e o grupo empresarial (IPES), representavam mobilização mais ampla do que os anteriores movimentos antigetulistas” (SKIDMORE, 1975, p. 310). O jornalista Carlos Chagas também mostra o papel da imprensa no golpe, afirmando que “Esse clima não parecia ser transmitido por O Globo, à exceção de algum editorial mais duro contra o comunismo. Roberto Marinho, entretanto, estava metido até o pescoço na conspiração, assim como, em São Paulo, Júlio Mesquita, do Estadão” (CHAGAS, 2017, p. 43). Ainda segundo Chagas, que na época trabalhava no jornal O Globo, desde a manhã do dia 31 de março, Roberto Marinho estava amplamente informado a respeito dos bastidores do golpe, porém as informações foram mantidas em segredo tanto de seus irmãos quanto da redação. 1.3 A DESCONFIANÇA DA BURGUESIA ASSOCIADA E DEPENDENTE EM RELAÇÃO À CAPACIDADE DE JANGO MEDIAR AS LUTAS DE CLASSES Segundo Marini (2000), João Goulart, já nos primeiros meses de seu mandato, voltou-se para a esquerda e concentrou seus esforços na tentativa de aprovar as reformas de base, buscando a aderência popular às suas ideais e aos seus projetos político-econômicos. João Goulart, sentindo que a terra se movia sob seus pés, tentou voltar-se para a esquerda. Sua mensagem anual ao Congresso, nos primeiros meses de 1964, constituía um ultimato pela aprovação das reformas de base. Em seguida, levou a cabo a mobilização popular. No comício de 13 de março, no Rio de Janeiro, que reuniu em torno de 500 mil pessoas, deu a conhecer ao povo vários decretos, entre eles o da limitação dos aluguéis urbanos, o da nacionalização das refinarias de petróleo privadas e a da expropriação das terras à beira das estradas. Ali, com os representantes da CGT, dos estudantes e dos sargentos, ao lado de Brizola e de Arraes e diante dos cartazes do PCB e das demais organizações de esquerda, João Goulart aceitava a prova de força com a reação. Em 13 de março, as classes dominantes viram a esquerda unida, anunciando o fim de uma era (MARINI, 2000, p. 43). As propostas de reformas anunciadas por Jango, apesar de estarem dentro dos marcos da ordem do capital, a rebelião dos marinheiros e a assembléia dos sargentos no Automóvel Clube, significaram, segundo Chagas, os estopins que faltavam para justificar o golpe. Também a rebelião dos marinheiros, de forma irônica, “serviu de senha para unificar os conspiradores, apesar de ainda temerem a força da legalidade que o governo, mal ou bem, representava. Foi preciso que o presidente, uma vez mais, fornecesse motivos aos adversários” (CHAGAS, 2017, p. 43). A reunião, no Rio de Janeiro, com os graduados das FFAA, “foi o motivo que os políticos conservadores precisavam para correr os quartéis e gritar aos militares que a disciplina estava sendo quebrada e que era chegada a hora de tomar posição. E assim foi feito” (SILVA, 1987, p. 99). Quem estuda os militares, ou já teve alguma experiência na caserna, sabe da divisão de funções dentro das FFAA, os oficiais têm conhecimento sobre a técnica e a política da profissão; os graduados, mas principalmente os soldados, são formados para serem instrumentos de ação, agirem de forma condicionada. Contudo, na década de 1950, com as experiências concretas de suas condições profissionais, os graduados (mais especialmente os sargentos) passam por um processo de politização, tanto nos cursos superiores, que muitos deles frequentavam, quanto nas suas associações de classe. Dessa maneira, começam a assumir, cada vez mais, uma identidade com as classes trabalhadoras, o que fez com que se impusessem politicamente aos oficiais. A consequência desse processo foi que os conflitos sociais reverberaram nos quartéis tanto das FFAA quanto nos das Polícias Militares (PMs), fazendo com que os oficiais não simpáticos as causas populares tivessem muita dificuldade em lidar com esse processo de politização dos praças. Quando ocorreu a rebelião dos marinheiros, “sua confraternização com os trabalhadores no Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio, quebrou dias depois a disciplina militar” (MARINI, 2000, p. 43). Esse fato deu “pretexto à direita para evocar os sovietes, seu dispositivo de sustentação se dividiu. A fração militar comunicou-lhe que não seguiria apoiando-o se não dissolvesse a CGT e liquidasse as organizações de esquerda” (MARINI, 2000, p. 43). Jango estava diante de um impasse: caso ele fizesse concessões aos militares, converter-se-ia em um prisioneiro sem credibilidade, uma vez que não ignorava o fato de sua força política estar ligada à união com os sindicados, seu sucesso, por outro lado, também dependia de certa superioridade junto aos militares (MARINI, 2000). De acordo com Melo, apenas “aos oficiais militares estava reservado atributo de quebrar hierarquia da corporação, já o partido militar antinacionalista conspirava contra o Executivo de João Goulart, do mesmo modo que havia conspirado contra Vagas” (MELO, 2009, p. 82). Melo afirma ainda que as “mobilizações dos subalternos militares foram interpretadas como séria ameaça à hierarquia militar, levando a que oficiais legalistas, como o general Pery Constant Bevilaqua, passassem para o campo do golpismo” (MELO, 2009, p. 82). Em grande medida, estamos de acordo com Melo (2009), uma vez que o general Pery Bevilaqua, por exemplo, foi o primeiro (ou um dos primeiros) a se opor a tentativa de golpe em João Goulart na ocasião da renúncia de Jânio Quadros. Contudo, é importante destacar que para os oficiais nacionalistas, como os do Exército, generais Júlio Caetano Horta Barbosa, Newton Estillac Leal, Ladário Pereira Telles, Oromar Osório; da Marinha, almirante-de-esquadra Pedro Paulo de Araújo Suzano, vice-almirante fuzileiro naval Cândido da Costa Aragão; da Aeronáutuca, major brigadeiro-do-ar Francisco Teixeira e o coronel aviador Ruy Barbosa Moreira Lima, e tantos outros oficiais das FFAA (cassados pelo Ato Institucional (AI) nº 1, de 11 de abril de 1964, Art. 7 § 1), não estava havendo quebra de hierarquia disciplinar, na medida em que, inclusive eram simpáticos à luta dos subalternos. Portanto, a tese que justifica o golpe em função da quebra de disciplina e hierarquia não deve ser referendada pela crítica acadêmica, pois dá a impressão de que o golpe foi obra do acaso e fruto de uma mera improvisação. É evidente, no entanto, que João Goulart “não havia criado as condições efetivas para uma insurreição popular. O comportamento da maioria da esquerda, sobretudo do PCB, com sua teoria da revolução pacífica e seu cretinismo parlamentar, teve o mesmo efeito, desarmando as massas” (MARINI, 2000, p. 44). Esse resultado representaria, por um lado, o alijamento e a repressão dos movimentos populares e, por outro, “afirmou a hegemonia do capital monopolista sobre os demais segmentos do capital” (MENDONÇA, 2004, p. 37). O golpe de 1964 significou então o desmantelamento das conquistas alcançadas pelos trabalhadores nas décadas anteriores, dentre elas a perda do direito à greve, o fim das associações de camponeses e da estabilidade no emprego “mediante a criação do Fundo de garantia por tempo de serviço. Significou a anulação da Lei de Remessas de Lucros e da nacionalização do petróleo, além da inviabilização da reforma agrária, arduamente reivindicada e esperada pelos trabalhadores rurais” (MENDONÇA, 2004, p. 37). Em resumo, a tomada do poder político pelos militares representou o desmonte, por meio da violência “explícita e aberta, de todas as organizações populares e a sujeição dos quadros intelectuais e de classe média que pudessem vir a significar oposição ao regime militar” (MENDONÇA, 2004, p. 37). A forma pelas quais as crises políticas se apresentam junto às forças populares, a partir de 1961, ganhava cada vez mais autonomia de ação, de modo que eram resolvidas com menos facilidades por acordos de cúpula, configurando-se, segundo Marini, como um “‘movimento pró-legalidade’, que se desatou depois da renúncia Jânio Quadros” (MARINI, 2000, p. 45) e apresentavam para os grupos dominantes uma forma de transição denominada regime parlamentarista. Também as disputas posteriores, aliadas “ao temor de uma intervenção militar a favor de João Goulart, dobraram a resistência no Congresso” (MARINI, 2000, p. 45). Como João Goulart não inspirava confiança nas classes dominantes para manter as mediações das classes sociais, a solução encontrada foi “bater às portas” dos quartéis. Uma questão importante a frisar é que a “a maioria dos liberais revelava grande capacidade de adaptação ao autoritarismo, especialmente quando sentia que os alicerces da ordem social, com destaque para a propriedade privada, estavam ameaçados” (ALMEIDA, 2006, p. 25). Nesse sentido, segundo Marini, não foi apenas o receio movido “pelo movimento de massas que contribui para aproximar a burguesia das demais classes dominantes e fundi-la em um bloco” (MARINI, 2000, p. 46), também a crise econômica, em 1962, desarticulou permanentemente a aliança entre a burguesia e as classes populares. A partir do momento em que João Goulart foi incapaz de solidificar a aliança entre as classes dominantes e as subalternas, voltando-se para a esquerda, não se tornou mais confiável para a burguesia, pois “a mudança que se efetua no interior da classe burguesa, desde 1955, com o aumento do setor vinculado ao capital estrangeiro, fazia cada vez mais possível esse acordo entre os grupos dominantes” (MARINI, 2000, p. 46). Assim, buscamos demostrar que o golpe foi uma: unidade de múltiplas determinações: econômicas - oriundas do padrão capitalista brasileiro apoiado no Estado e no investimento direto estrangeiro, políticas - pelo questionamento ferrenho das frações de classe dominantes ao governo democrático-popular em vigor -; e sociais - pela ascensão inédita do movimento organizado de massas, em defesa de suas condições de vida e da própria democracia (MENDONÇA, 2004, p. 35). Podemos afirmar, portanto, que a constituição das relações de dominação/exploração burguesa – consolidada no processo de industrialização brasileiro e sua relação de assimetria e subordinação ao capital externo, principalmente a partir de JK –, firmou a dependência industrial em relação aos países centrais do capitalismo, em um “processo que trouxe em seu bojo a redefinição da própria dependência e a tendencial hegemonia do grande capital” (ALMEIDA, 2006, p. 26). Para Calil (2014), “a implementação do Golpe de Estado foi produto de uma conspiração meticulosamente construída ao longo de três anos”, cuja política de compromisso e mediação de classes sociais apresentava sinais de dificuldade. Levando em consideração essa proposição, é possível nos referirmos ao golpe como o resultado de um complexo processo de contradições socioeconômicas, que reverberaram na esfera política, resultando em uma solução cesarista militar, que, aliás, já vinha sendo preparada há mais de uma década; fato esse impeditivo de um projeto democrático popular. Depois do golpe militar e da instauração da ditadura militar no Brasil, muitos dos opositores civis foram presos, exilados e mortos, no entanto, uma das categorias mais atingida proporcionalmente foi a dos militares. Segundo estimativas da Comissão Nacional da Verdade/Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (CNV/PNUD), no período de 1964-1988, em torno de 6591 militares (722 oficiais e 5869 praças) foram expulsos das três FFAA e das polícias estaduais no Brasil, desde oficiais generais até soldados. Percebemos, pela tabela abaixo, que a Aeronáutica e a Marinha foram as forças com mais militares atingidos entre os praças. O Exército teve um número de expulsos bem menor, 800 no seu total, do que o das outras forças; no entanto o número de oficiais expulsos foi consideravelmente maior se somados os quadros de Aeronáutica e Marinha, em contrapartida, a quantidade de praças foi de apenas 446, em termos proporcionais. Tabela 1. Diagnóstico de militares perseguidos – CNV/PNUD – Período: 1964-1988 Força Oficiais Praças Total Aeronáutica: 150 3190 3340 Exército: 354 446 800 Marinha 115 2099 2214 Forças Policiais Estaduais 103 134 237 Total de Oficiais 722 Total de Praças: 5869 Total Geral: 6591 Fonte: Comissão Nacional da Verdade (CNV). Como nossa intenção neste capítulo foi a de realizar uma análise em torno do golpe militar de 1964, tentando demonstrar que ele não foi uma mera improvisação, mas um processo meticuloso de construção, que se deu também em torno dos militares de esquerda, pois, logo após o golpe, começou um movimento de expulsão desses militares, denotando que o sistema de informações dos golpistas estava atuando a par e passo com a articulação do golpe. Veremos nos próximos capítulos como muitos desses militares, expulsos e perseguidos pela ditadura militar após o golpe, tentaram articular de várias formas a resistência, incluindo nesses planos a possibilidade de uma luta armada, como é o caso dos três militares que integraram a Operação Três Passos e do grupo liderado por Leonel de Moura Brizola, no Uruguai, que organizava a tentativa de retorno via insurreição armada. Leomar Rippel Doutor em História (UNIOESTE). Mestre em Desenvolvimento Rural Sustentável (UNIOESTE). Mestre em História (UPF). Graduado em História (INIPAR). Professor e Coordenador do Núcleo de Relações Internacionais do Centro de Ensino Superior de Francisco Beltrão (CESUL). E-mail: [email protected]; [email protected] REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALMEIDA, Lúcio Flávio Rodrigues de. A ilusão de desenvolvimento: nacionalismo e dominação burguesa nos anos JK. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006. BORTONE, Elaine de Almeida. A participação do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) na construção da reforma administrativa na ditadura civil-militar (1964-1968). Niterói, 2013. 141 p. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) –. Universidade Federal Fluminense. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/1836/1/ElaineBortone.pdf. Acesso em: 20 de fev de 2020. CALIL, Gilberto Grassi. O revisionismo sobre a ditadura brasileira: a obra de Elio Gaspari. Segle XX. Revista catalana d’història, Barcelona, n. 7, p. 99-126, 2014. 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Trazidas para a América do Sul, inicialmente por militares argentinos, as ideias francesas chegaram ao Brasil em 1959, numa conferência pronunciada na Escola Superior de Guerra. A partir de então, foram adotadas como doutrina oficial pelo Estado-Maior das Forças Armadas, ajudaram na campanha de ideias que precedeu o golpe de 1964 e continuaram influentes depois da ruptura do processo constitucional” (MARTINS FILHO, 2008, p. 187).
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