Aproveitando a abordagem literária realizada na coluna passada[1], mantenho “Os Miseráveis” como a obra referencial para fazer a interlocução com o direito no presente escrito. Como já mencionado no artigo anterior, “Os Miseráveis” tece críticas e lições preciosas em suas centenas de páginas. Dentre as análises contidas no livro, Victor Hugo aborda um tema espinhoso que até hoje divide manifestações: a pena de morte. Digo “manifestações” e não “opiniões”, pois entendo que o vocábulo “opinião” merece receber uma significação de algo dito com concretude, com embasamento, com viés de fundamentação. Sabendo que a maioria daqueles que se posicionam de modo favorável à pena de morte o fazem por motivos irrefletidos, não entendo como “opinião” quando lançam frases prontas pautadas apenas em sentimentos pueris para justificar o “entendimento” adotado. A abordagem feita sobre o tema por Victor Hugo na obra em questão possui um viés específico, próprio de um exercício de reflexão literário. É com base apenas em tal modo de se observar a questão que se expõe a ilustração do autor. Logo nas primeiras páginas de “Os Miseráveis”, o leitor é apresentado ao Bispo Myriel (aquele que ofereceu uma nova visão de mundo para Jean Valjean). Diversas situações biográficas de tal personagem são expostas na narrativa, evidenciando assim o caráter adotado pelo bispo, o qual se pauta na integridade e na benevolência. O romance narra que em certo dia no qual estava agendada a execução de um homem que foi sentenciado à morte por homicídio, o capelão da cadeia acabou por adoecer. Para resolver o problema surgido,o cura da cidade foi procurado, este que se recusou a assumir o lugar do capelão para aquele ato de execução. Finalmente chegaram ao Bispo Myrel, que acabou por aceitar o encargo. O bispo passou então o dia todo ao lado do condenado, tratando-o com dignidade e respeito. Foi amigo, confidente e espirituoso. Quando do momento fatal, subiu ao cadafalso com o condenado e permaneceu ao seu lado até quando a lâmina caiu. O bispo ficou em choque por ter visto a guilhotina em ação, tendo levado um bom tempo até que pudesse se restabelecer. Neste momento da história, o autor, refletindo, expõe o seguinte: “O cadafalso, com efeito, quando está lá, preparado e aprumado, tem qualquer coisa que alucina. Podemos ter certa indiferença em relação à pena de morte, podemos não nos pronunciar, dizer sim ou não, enquanto não virmos com os próprios olhos uma guilhotina; mas, se encontrarmos uma, o abalo é violento, temos de nos decidir a favor ou contra. Uns admiram, como De Maistre, outros maldizem, como Beccaria. A guilhotina é a concreção da lei, chama-se vingança, não é neutra nem permite que se fique neutro. Quem a vê estremece com o mais misterioso dos estremecimentos. Todas as questões sociais levantam em torno desse cutelo seu ponto de interrogação. O cadafalso é uma visão. O cadafalso não é uma viga de madeira, o cadafalso não é uma máquina, o cadafalso não é um mecanismo inerte feito de madeira, ferro e cordas. Parece ser uma espécie de criatura que possui alguma sombria iniciativa; parece que essa viga vê, que essa máquina ouve, que esse mecanismo compreende, que essa madeira, esse ferro e essas cordas têm querer. No devaneio medonho em que sua presença joga a alma, o cadafalso surge, terrível, e envolvido com o que faz. O cadafalso é o cúmplice do algoz; ele devora. Ele ingere carne, ele bebe sangue. O cadafalso é uma espécie de monstro fabricado pelo juiz e pelo carpinteiro, um espectro que parece viver de um tipo de vida espantosa, feita de todas as mortes que gerou.” O bispo, após muito refletir de maneira penosa, conclui que “é um erro absorver-se tanto na lei divina a ponto de não se dar conta da lei humana.Morte só pertence a Deus! Com que direito os homens põem a mão nessa coisa desconhecida?”. Assim, podemos observar a posição adotada por Victor Hugo com relação à pena de morte. Suas palavras, bastante incisivas, lançadas em sua mais famosa obra, citando inclusive Beccaria como referência (responsável pelo pontual e criterioso “Dos Delitos e Das Penas”), deixam claro o erro que é a pena de morte sob determinada perspectiva, incutida no âmago do personagem ali retratado. Como dito, a abordagem sobre o tema se dá num viés próprio, literário, sem deixar de ser profundo e exigindo a necessária reflexão. Fica o convite aos leitores para que leiam e releiam esta grandiosa obra de Victor Hugo. “Os Miseráveis” tem muito a oferecer e a ensinar, seja qual for a época ou contexto em que for lido. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia [1] Ver aqui: http://www.salacriminal.com/home/o-estigma-do-condenado-em-os-miseraveis Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |