A literatura, inspirada na vida real (essa eterna tragicomédia romanesca), nos apresenta vez ou outra algum relato de personagens que passaram por este plano e nos legaram, mesmo sem saber e não intencionalmente, algo a mais de sapiência.
Neste encontrar e desencontrar junto à literatura, deparamo-nos com a obra de Margaret Atwood intitulada “Vulgo Grace” (traduzido do original “Alias Grace”), escrito este de grande valia e baseado na história de vida de Grace Marks, jovem processada e condenada em meados do séc. XIX pela morte de Thomas Kinnear e Nancy Montgomery. Grace Marks é imigrante irlandesa que aporta no Canadá em busca de melhores condições de vida. A travessia do oceano lhe legou a perda precoce da mãe e, em consequência, lhe jogou sobre os ombros a responsabilidade de cuidar do pai agressivo e explorador, e dos irmãos mais novos. Aos 13 anos se viu forçada a trabalhar fora de casa para buscar algum sustento para a família, e é neste ponto de sua existência que, laborando enquanto empregada doméstica, encontra sua grande amiga Mary Whitney, personagem de importância destacada no desenrolar da história e também no desfecho da obra de Atwood. Com a morte da amiga Mary, Grace busca emprego novo e o encontra na residência de Thomas Kinnear. No novo ambiente ela se vê em constante disputa indireta com a governanta da casa, Nancy Montgomery, a qual leva uma vida amorosa com Kinnear e passa a ter ciúmes de Grace. Também na casa Grace encontra o empregado James McDermott. A desgraça cai sobre a vida de Grace quando, junto com McDermott, planeja e assassina (?) o casal Thomas e Nancy, fato pelo qual será julgada e condenada à prisão perpétua e McDermott à forca. Com o resultado do julgamento, um grupo de apoiadores da inocência de Grace Marks contratam um jovem psiquiatra para fazer um relatório acerca da saúde mental da personagem, que já fora detida em um asilo para lunáticos e diagnosticada com problemas mentais. O transcorrer da investigação médica nos mostra uma Grace Marks furtiva e calculista, que não deixa transparecer nem culpa, nem tampouco inocência no caso julgado. O ápice da história revela um episódio em que Marks, hipnotizada, sustenta estar incorporada pelo espírito de Mary Whitney, o qual alega ter cometido os crimes utilizando para tanto do corpo de Grace, motivo pelo qual a mesma não se recorda de estar praticando os delitos. Passados vários anos de sua condenação e após vários pedidos de clemência e perdão feitos por grupos de apoio à Grace Marks, finalmente lhe é concedida a tão almejada liberdade, como consequência do perdão governamental. A obra de Margaret Atwood nos intriga e nos mostra um lado de Grace Marks romanceado, desenhado justamente para se encaixar na literatura e não faz um retrato fidedigno da jovem que, aos 16 anos, foi presa por duplo homicídio e condenada por um deles à prisão perpétua, muito embora nos apresente alguns fatos históricos importantes e um cenário que permite uma análise jurídica da situação de Marks e que nos autoriza a fazer um link com o cenário jurídico atual. A um primeiro momento, Grace Marks, ao ser indagada pelo psiquiatra que a acompanha durante todo o livro do porquê de ter confessado a participação no crime, já que posteriormente alegou inocência, disse ter feito de tal forma porque o seu advogado assim lhe ordenou que fizesse: “Foi meu próprio advogado, sr. Kenneth MacKenzie, quem disse a eles que sou quase uma idiota. Fiquei furiosa por causa disso, mas ele disse que essa era de longe a minha melhor chance e que eu não deveria parecer muito inteligente. Disse que defenderia meu caso com o máximo de sua capacidade, porque, qualquer que fosse a verdade da situação, eu não passava de uma criança, [...] Eu me pergunto se ele alguma vez acreditou em uma palavra do que eu disse.”[1] Vejamos que tal excerto da obra nos mostra uma Grace Marks perdida em sua própria percepção da realidade, moldada ao bel prazer de seu advogado para parecer convincente ao júri que apreciaria seu caso. Tal circunstância culminou por livrá-la da forca, objetivo principal da defesa, mas também deixou questões não resolvidas e esclarecidas no caso. Afinal de contas, Grace Marks durante toda a narrativa reflete “apagões” de memória que impedem que ela relate o que aconteceu, deixando o leitor e espectador na dúvida angustiante: foi Marks quem tomou a iniciativa e premeditou o crime? Ou Marks foi mera arma na mão do verdadeiro criminoso, James McDermott? Ou em outra hipótese, foi Marks uma assassina a sengue frio que aceitou a história inventada pelo advogado para se ver livre da pena capital? Este cenário nos remete aos atuais processos penais do espetáculo que, com muita ou pouca frequência, estampam os folhetins de noticiários e a mídia nacional. Em tais casos midiáticos a busca pela verdade e a presunção de inocência são relegados a um segundo plano em detrimento de discursos elaborados antes mesmo da oitiva do principal suspeito. Ao se ingressar como parte ré no sistema penal a pessoa passa a ser o reflexo de um estigma preparado àqueles que têm este “privilégio”, o estigma do culpado até que se prove o contrário, quando na verdade o que deveria prevalecer é o jargão ‘inocente até que se prove o contrário’. Há muito as regras do jogo andaram invertendo seus papéis e, como no processo de Grace Marks, o que se busca é apenas a mitigação de uma pena já tida como certa antes mesmo da instrução processual. O acusado atual, tal qual Grace Marks que desde o início foi vista como culpada sem qualquer chance de externar a sua verdade para ser sopesada, já entra no jogo com alguns pontos negativos, já adentra na arena com as vestes talares da vergonha e da humilhação de ser julgado por um sistema que, se de um lado se diz garantidor de direitos fundamentais, de outro segura inclemente a espada com que corta ‘o mal pela raiz’. Vemos portanto que “o Direito tornou-se o arpão e o próprio monstro”[2]. Em se traçando um paralelo com o processo que acusou, julgou e condenou Grace Marks, em meados do séc. XIX, com os atuais processos penais, a triste constatação de que pouco mudou salta às vistas. Com raras exceções, o Estado enquanto julgador olvida de seus postulados fundamentais e deixa, em não raras vezes, de aplicar o princípio presuntivo de inocência para realizar um pré-julgamento, seja manejado pela opinião pública externada pela mídia, seja pelos próprios critérios de certo e errado. Assim, desde tempos imemoriais tem sido o processo penal um palco para a satisfação do ego da sociedade que precisa, de tempos em tempos, observar a tragédia humana alheia para sair do marasmo cotidiano. Assim o foi nos primórdios da humanidade, assim o foi com Grace Marks e sua época, assim o é atualmente. Nesta esteira, pobre de quem é fisgado pela teia criminal e pratica – ou não – algum crime. Ao menos o acusado tem uma certeza, a de que será condenado de qualquer forma. Ou se reunirão provas robustas, talvez nem tanto, e se pronunciará o Estado em seu desfavor; ou não se concluirá pela sua culpabilidade, momento em que, infelizmente, - após ser rasgada a presunção de inocência que se afasta, aos olhos sociais, daquele que responde um processo criminal - seu julgamento social e sua condenação perante os ‘cidadãos de bem’ já estará forjada. Ressoa dessa forma o pensamento que permeou Grace Marks no início do livro de Margaret Atwood, mas que serviria para qualquer acusado atual, por retratar fidedignamente a certeira condenação social, inocente ou não o réu: “A razão para quererem me ver é que sou uma célebre assassina. Ou pelo menos foi o que escreveram. Quando li isso pela primeira vez, fiquei surpresa, porque costumam dizer Cantor Célebre, Poeta Célebre, Espiritualista Célebre e Atriz Célebre, mas o que existe de célebre em assassinato? De qualquer modo, Assassina é uma palavra forte para estar associada a sua pessoa. Tem um odor característico, essa palavra, almiscarado e sufocante, como flores mortas em um vaso. Às vezes, à noite, eu a sussurro para mim mesma: Assassina. Assassina. Ela produz um som farfalhante, como uma saia de tafetá pelo assoalho. Assassino é meramente brutal. É como um martelo ou um pedaço de metal. Eu prefiro ser uma assassina a ser um assassino, se essas forem as únicas escolhas.”[3] (sem grifos no original) A máxima externada ao final do pensamento reflete também o que é destinado aos atuais processados: lhes permitem ao menos serem chamados de assassinos ou assassinas, criminosos ou criminosas, tal qual se prostram e se firmam socialmente. Contudo, como Marks concluiu, talvez essas sejam as únicas escolhas, não figurando dentre o rol de opções o dístico “inocente”. Tempos difíceis estes em que vivemos... Gabriel Maravieski Pós-graduando em Direitos Humanos e Realidades Regionais (UNICESUMAR) Especialista em Direito Ambiental (UNINTER) Graduado em Direito (CESCAGE) Assessor na 4ª Vara Judicial de Irati/PR Referências ATWOOD, Margaret. Vulgo Grace. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. [1] ATWOOD, Margaret. Vulgo Grace. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. p. 33-34. [2] BACILA, Carlos Roberto. Criminologia e estigmas: um estudo sobre os preconceitos. 4. ed. – São Paulo: Atlas, 2015. p. 5. [3] ATWOOD, Margaret. Vulgo Grace. Rio de Janeiro: Rocco, 2017. p. 32-33. Os comentários estão fechados.
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