Interrompo, nesta semana, a sequencia de textos tratando das questões relacionadas a mídia e processos de criminalização. Infelizmente o falecimento de um amigo e outros compromissos acadêmicos impediram a continuidade das pesquisas naquele assunto. Voltarei a ele nas próximas semanas.
Hoje retorno a um tema que desperta opiniões bastante distintas: parte daqueles que estudam criminologia acreditam que concentrar a ação do direito penal nos crimes de colarinho branco seja mecanismo idôneo para reduzir a seletividade penal. Outros descordam desta possibilidade. Me encontro no segundo grupo e tento trazer aqui, mais uma vez, razões para não acreditar que este seja o melhor caminho. Apenas relembrando o funcionamento do que denomina-se “seletividade penal”, colaciono a lição de Zaffaroni:
A questão é: se invertermos a lógica geral da seletividade, reforçando os mecanismos de punição sobre a criminalidade de colarinho branco, conseguiremos equilibrar o “jogo”, fazendo com que um grupo que se sente historicamente imune ao gosto amargo do sistema penal prove deste, desencadeando um certo “equilíbrio” e redução da violência do poder punitivo? Ainda que em tese a proposta pareça lógica, um estudo mais cuidadoso do funcionamento da sociedade e dos sistemas de poder e domínio fornecem base segura para acreditarmos que não seria esse o resultado. Foucault e H. Arendt fizeram muito por demonstrar a forma como os mecanismos de manutenção das relações de poder e posições de domínio se reforçam, se imbricam, se estabelecem como uma rede complexa de interdependências. Isso significa que medidas superficiais para reverter estas posições não são capazes de lograr bons resultados. Contribuição interessante a esta percepção é trazida por Erving Goffman em seus estudos sobre instituições totais. Lemos:
Conforme percebe Goffman, a quebra da regra geral quanto a distinção social sobre a qual se apoia a seleção dos que são “recolhidos” nas instituições totais (no caso de nossa análise os selecionados pelo sistema penal), permite, na realidade, um reforço da seletividade. Como assim? Ao capturar alguns membros dos extratos mais privilegiados em sua rede e exibi-los na mídia como submetidos ao mesmo tratamento dos demais “clientes” do sistema penal (vide a farta aparição na mídia de Eike Batista com a cabeça raspada ou a ampla cobertura das conduções coercitivas recentemente realizadas), o poder punitivo se beneficia de uma roupagem de imparcialidade, apta a permitir que a opinião pública acredite em sua isonomia. Acontece algo semelhante com a justificação da meritocracia, reforçada pelos casos em que pessoas dos extratos inferiores, sob as mais severas condições, conseguem galgar extratos sociais mais elevados. Isso é apresentado como “prova” de que o sistema premia os mais esforçados e disciplinados, ocultando a distribuição severamente desigual de oportunidades que ocorre como regra geral. Como conclusão, observa-se que a condenação de algumas dezenas ou mesmo centenas de agentes de crimes de colarinho branco não é prova da redução da seletividade e não deve ser entendida como uma mudança geral no tratamento dado ao sistema penal. Esse discurso tende a não considerar a grave taxa de crescimento da população carcerária em nosso país, na contramão mesmo de países em situação semelhante, que de modo geral tem agido para diminuir esta taxa. Não é o caso do Brasil. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIM Advogado Referências: [1] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das Penas Perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p. 130; 268. [2] GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 2015. pp. 105-106 Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |