Artigo de Lohan Ribeiro Couto no sala de aula criminal sobre o acordo de não persecução penal e as práticas restaurativas, vale a leitura! ''A justiça restaurativa, por outro lado, pode ser visualizada como uma filosofia, dotada de princípios específicos, que se orienta à resolução de conflitos por um método inclusivo e participativo das partes envolvidas e da comunidade[2]. Longe, portanto, de se reduzirem a uma negociação entre acusador e indiciado, as práticas restaurativas têm como enfoque o conflito social causado pelo crime, convidando as pessoas nele envolvidas a dialogarem sobre as suas causas e consequências, bem como a deliberarem acerca de uma resposta para a situação problemática vivenciada''. Por Lohan Ribeiro Couto Um olhar a partir do Enunciado 28 da I Jornada de Direito e Processo Penal do Conselho da Justiça Federal Não é de hoje que se vem abrindo portas para a efetivação da justiça restaurativa no Brasil. Recentemente, porém, mais um interessante passo foi dado na I Jornada de Direito e Processo Penal do Conselho da Justiça Federal, realizada entre os dias 10 e 14 de agosto, em que, após debate e votação nas comissões temáticas, firmou-se o Enunciado de n. 28, pelo qual se vislumbrou a possibilidade de estimular as práticas restaurativas no âmbito dos acordos de não persecução penal (ANPP), recentemente alçados à condição de instituto legal pela Lei n. 13.964/19 (Pacote Anticrime). O referido enunciado ficou assim disposto: “Recomenda-se a realização de práticas restaurativas nos acordos de não persecução penal, observada a principiologia das Resoluções n. 225 do CNJ e 118/2014 do CNMP”. O passo é interessante na medida em que as comissões das jornadas, promovidas pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, contam com a participação de professores e especialistas convidados, membros de Tribunais Superiores e magistrados federais para a discussão de temas atuais sobre a área do Direito à qual se debruçam, visando a sedimentar posições interpretativas sobre as normas vigentes, tendências doutrinárias e inovações jurisprudenciais em torno de determinado assunto. Assim, visualizar uma sinalização para a justiça restaurativa em uma iniciativa como essa, voltada especialmente para os rumos do Direito Processual Penal brasileiro, indica que o tema, de fato, é promissor e tem ganhado cada vez mais espaço. Um caminho de discussão a partir do ANPP chama a atenção para o papel a ser assumido pelo Ministério Público em um sistema processual penal acusatório, expressamente acolhido pelo Pacote Anticrime (art. 3º-A do CPP). Mais do que isso, o indicativo dado pelo Enunciado 28 da Jornada passa a apontar o ANPP como um mecanismo, à disposição do órgão, para conduzir o seu olhar ao conflito social causado pelo crime e aos interesses das pessoas nele envolvidas, semelhantemente à tendência que vem assumindo o MP nos sistemas de justiça penal latino-americanos nas últimas décadas[1]. Reforçar esse debate, como se fez na Jornada do Conselho da JF, parece levantar algumas questões, como: de que modo é possível ver no ANPP, efetivamente, uma chance para a promoção das práticas restaurativas? Se de um lado a via é promissora, não pode, de outro, deixar de esclarecer os desafios que vêm pela frente. Colocando os pingos nos “is”: ANPP, JR e o passo dado pela Jornada A proposta de se pensar no ANPP como possível “veículo” para a justiça restaurativa implica assumir, de plano, que se trata de mecanismos distintos. É que não é incomum ouvir, por aí, falas desconfiadas em relação ao plea bargain estendendo suas críticas a modelos autocompositivos de justiça, como se fossem a mesma coisa. Frente a isso, sem prejuízo das críticas (e das críticas das críticas) possíveis em torno da chamada “justiça negociada”, faz-se necessário, desde já, alinhar os termos: uma coisa são os mecanismos de barganha entre a acusação e o suposto autor do crime, como é o ANPP, e outra, completamente distinta, são os métodos dialógicos de resolução de conflitos, inclusivos do suposto ofensor e do ofendido, como a justiça restaurativa. O ANPP, antes do advento do Pacote Anticrime, era regulado pelo art. 18 da Resolução n. 181/2017, alterada pela Resolução n. 183/2018, ambas do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Com a Lei n. 11.964/19, pelo novel art. 28-A do CPP, a sistemática foi mantida praticamente a mesma, possibilitando ao MP, quando cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não envolver violência ou grave ameaça, a proposta de um acordo ao investigado, desde que assuma a prática delituosa, oportunizando-lhe a assunção de algumas condições (pretensamente substitutivas da pena) como a reparação do dano à vítima, a renúncia de bens oriundos do crime, a prestação de serviços comunitários, a prestação pecuniária ou “outra condição estipulada pelo Ministério Público”. A justiça restaurativa, por outro lado, pode ser visualizada como uma filosofia, dotada de princípios específicos, que se orienta à resolução de conflitos por um método inclusivo e participativo das partes envolvidas e da comunidade[2]. Longe, portanto, de se reduzirem a uma negociação entre acusador e indiciado, as práticas restaurativas têm como enfoque o conflito social causado pelo crime, convidando as pessoas nele envolvidas a dialogarem sobre as suas causas e consequências, bem como a deliberarem acerca de uma resposta para a situação problemática vivenciada. Dito isso, ao propor uma aproximação entre as duas esferas, o Enunciado 28 da Jornada permite reforçar que, mesmo sem previsão legal, a justiça restaurativa aparece como via possível para a administração de conflitos no contexto brasileiro. Basta, para tanto, que se leve a efeito o disposto nas Resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de n. 225/2016, que estabelece a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, e, recentemente, a de n. 288/2019, que promove a aplicação de alternativas penais com enfoque restaurativo, sem se olvidar que, no âmbito do próprio Ministério Público, a Resolução n. 118/2014 do CNMP indica, ao dispor sobre a Política Nacional de Incentivo à Autocomposição, a adoção de práticas restaurativas “com o objetivo de restaurar o convívio social e a efetiva pacificação dos relacionamentos” (art. 13). Nesse contexto, ao se falar no ANPP, as práticas restaurativas poderiam ser efetivadas pelo Ministério Público em momento anterior à formalização e subsequente homologação do acordo em audiência, perante a autoridade judicial (art. 28-A, § 4º, do CPP). Eventual acordo obtido desse processo poderia ser levado a efeito como uma das condições do ANPP previstas no mencionado dispositivo legal, tais como a reparação do dano à vítima (inciso I) ou outra validada pela cláusula aberta do inciso V, a ser indicada pelo MP. Existe um espaço rico de possibilidades, que demandará, sem dúvidas, um importante papel do MP na sensibilização de seus membros ao conflito; uma atuação criativa da Advocacia e, em especial, das Defensorias Públicas, na formulação de teses com base nas citadas resoluções (tanto do CNJ, como do CNMP); e, ainda, da própria Magistratura, atentando-se à dimensão substancial do direito ao acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da CR). Pela preservação da autenticidade do encontro: os desafios que vêm pela frente O próprio Enunciado 28 da Jornada recomenda a adoção de práticas no âmbito do ANPP, “[...] observada a principiologia das Resoluções n. 225 do CNJ e 118/2014 do CNMP”. Sendo assim, que cuidados devem ser tomados ao aproximar práticas tão distintas, como dito, tais quais o ANPP e a justiça restaurativa? Sem pretensão de esgotar a discussão, seleciona-se, aqui, três princípios elencados na Resolução n. 225/CNJ (art. 2º), apenas como exemplo, para que se note a complexidade da proposta. 1. Voluntariedade: talvez um dos princípios mais relevantes, o seu sentido não deve, nem de perto, ser negligenciado. A sua menção se faz necessária porque, sendo o enfoque do ANPP a barganha entre acusador e investigado, a proposta de se promover práticas restaurativas deve atentar, em todo caso, ao esclarecimento e garantia à vítima de que a sua participação em um encontro restaurativo é, e sempre será, voluntária. 2. Informalidade: o desafio, aqui, destina-se primordialmente aos membros do MP, passando por criar, dentro das promotorias, espaços físicos e ambientes simbolicamente abertos ao elemento humano, afastado da ritualística jurídica e o mais próximo possível da voz das pessoas – de carne e osso, e não necessariamente de terno e gravata. A pouca atenção a este princípio pode mitigar (se não suprimir) os ideais de “não-dominação” e de “empoderamento” dos envolvidos, retirando deles o seu protagonismo[3]. 3. O atendimento às necessidades de todos os envolvidos: eis aqui o perigo de se priorizar, na adoção de práticas restaurativas por via do ANPP, o descongestionamento do sistema e a celeridade na resolução dos casos. Talvez, vislumbrar a justiça restaurativa a partir do ANPP passe por assumir que, ao reverso do que se possa esperar, a exposição do conflito e dos interesses nele envolvidos pode levar tempo, em um processo que envolve desde o convite às partes, passando por reuniões preparativas, até o chamamento ao diálogo de seus familiares e da comunidade eventualmente afetada pelo crime. Complexidade, portanto, é o elemento que não pode ser ignorado. Conclusão Com tais apontamentos, o objetivo consiste em indicar que o caminho não é simples como talvez possa parecer e, possivelmente, exija uma resposta (honesta e sincera) à seguinte pergunta: o que queremos de verdade, humanizar o sistema de justiça criminal com métodos dialógicos de transformação de conflitos, ou otimizar o trabalho institucional das agências do Estado? Seja como for, o firmamento do Enunciado 28 da Jornada é um passo relevante, pelas razões aqui expostas, especialmente para indicar a nova previsão legal do ANPP como uma interessante via para a promoção da justiça restaurativa como um elemento novo, porém “estranho”, ao sistema de justiça convencional. Constitui, portanto, uma oportunidade para que o Ministério Público, em conjunto com a Advocacia, a Defensoria Pública e a Magistratura, caminhe para uma forma distinta de se pensar o fenômeno criminal e as finalidades do sistema penal em um Estado democrático. Só a prática, no futuro que se segue, evidenciará se esse intento encontrará, ou não, solo fértil no sistema criminal brasileiro. Lohan Ribeiro Couto Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Graduado em Direito pela mesma universidade. Assessor jurídico no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. NOTAS: [1] POSTIGO, Leonel González. Bases da reforma processual penal no Brasil: lições a partir da experiência na América Latina. In: POSTIGO, Leonel González (dir.). Desafiando a Inquisição: ideias e propostas para a reforma processual penal no Brasil. V. 1. Centro de Estudios de Justicia de las Américas - CEJA. Santiago, Chile, 2019, p. 18. [2] MARSHALL, Tony F. Restorative justice: an overview. In: JOHNSTONE, Gerry (org.). A restorative justice reader: texts, sources, context. Cullompton: Willan Publishing, 2003. [3] BRAITHWAITE, John. Principles of restorative justice. In: VON HIRSCH, Andrew; ROBERTS, Julian V.; BOTTOMS, Anthony E.; ROACH, Kent; SCHIFF, Mara. Restorative justice and criminal justice: competing or reconcilable paradigms? p. 01-20, Oxford: Hart Publishing, 2003, pp. 08-11.
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