Artigo do colunista Jefferson Gomes no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Eis então a primeira raiz do problema: a confusão de entender a advocacia como atividade intelectual e não como atividade empresarial. Logicamente, neste ponto específico, há que se fazer uma distinção, que é a do escritório enquanto local de trabalho e que necessariamente vai precisar de conhecimentos básicos de gestão, e da advocacia como profissão em si, aquela é chamada para defender os interesses de quem em algum momento está tendo algum direito seu vilipendiado''. Por Jefferson Gomes “Deus me proteja de mim e da maldade dessa gente boa”
(Chico César) Instigado pelo excelente texto publicado pelo excelente advogado e professor Khalil Aquim, nesta sala de aula criminal, me propus a pensar sobre este fenômeno que o articulista tão bem definiu como sendo “estelionato educacional”. Para tanto, se faz necessário compreender, em primeiro plano, este fenômeno que culmina justamente na condição de possibilidade para a existência destes estelionatos educacionais. É inegável que o fim do século XX e o avançar do século XXI foi o marco de uma revolução sem precedentes na maneira com que nos relacionamos no e com o mundo. Se no fim do século XX nos comunicávamos com dificuldades, escrevendo cartas, esperando dias, até meses por uma resposta, passamos a conviver com a cultura da instantaneidade típica do avançar da internet e toda a revolução tecnológica que este boom causou na maneira de se comunicar no e com o mundo. Obviamente que esta mudança de paradigma (da cultura analógica para a digital) reverberou em todos os campos do saber, das relações (pessoais e profissionais) e como não poderia de ser, incutiu-se na cotidianidade do mundo. A questão que se põe e se propõe a partir do texto de Aquim é justamente qual o efeito e quais as raízes deste panorama, no mercado da advocacia e principalmente no marketing ligado à este mercado específico. Como uma atividade dialética, o Direito, principalmente a advocacia, se constitui a partir da linguagem. Direito é linguagem em sua mais pura essência, desde a constituição da norma através do texto, até os intermináveis debates orais em sessões de julgamento, onde a linguagem reverbera para o auxílio da tomada de decisões de quem detenha o poder de decidir. Questão interessante também é a do marketing, que, aparentemente, também se constitui da linguagem, eis que se vale de uma linguagem persuasiva para alcançar a sua finalidade: vender um produto. A partir da breve premissa exposta no parágrafo acima, surge a primeira provocação causada pelas reflexões de Aquim: a advocacia é um "produto" passível de sofrer uma mercantilização através de estruturas de marketing? De breve reflexão e relembrando a cadeira de direito empresarial, por mim cursada nos longínquos anos de 2006 e 2007, salvo melhor juízo, têm-se que a advocacia está elencada no que se denomina como sendo uma atividade intelectual e, portanto, proibida de ser comercializada[1]. Eis então a primeira raiz do problema: a confusão de entender a advocacia como atividade intelectual e não como atividade empresarial. Logicamente, neste ponto específico, há que se fazer uma distinção, que é a do escritório enquanto local de trabalho e que necessariamente vai precisar de conhecimentos básicos de gestão, e da advocacia como profissão em si, aquela é chamada para defender os interesses de quem em algum momento está tendo algum direito seu vilipendiado. E aí, é nesta segunda parte, que reside o problema, pois como se demonstra não só pelo texto de Aquim, como também por breve pesquisa nas redes sociais, parece que hoje a “qualidade” do advogado não se mede mais pelas suas redações e pelo seu intelecto, mas tão somente pelo aparente resultado financeiro que tais advogados ostentam em suas redes sociais. Surge daí uma provocação, que é a de pensar o que faz de um advogado ser necessariamente bom: a constatação de seu trabalho ou somente um aparente resultado financeiro ostentado em redes sociais!? Fenômeno surgido com o advento da relações pós-modernas, a redução de complexidade é uma marca destas primeiras décadas do século XXI, no geral, parece que as pessoas não conseguem mais se deleitar com textos, linhas e debates complexos, preferindo tão somente se apegar ao significante “fique rico”, “compre um pacote de petições que vão lhe garantir inúmeras liminares em habeas corpus”, do que simplesmente buscar compreender o significado do que é de fato advogar e exercer o sagrado direito de defesa em nome de alguém. E esta redução de complexidade, fruto da pós-modernidade, é justamente o que já vem sendo a principal causa, que já é denunciada de há muito por Lenio Streck, quando escreve e afirma que o Direito sofre uma crise paradigmática sistêmica. É sistêmica porque assim como um vírus (e me perdoem a infeliz metáfora) que toma o cotidiano da saúde e passa a fazer parte de nossas vidas, do dia a dia e por vezes, como em um filme de terror, parece que nunca mais vai embora. E aí, Streck[2], quixotescamente, denuncia como a necessidade de a doutrina voltar a ser o centro do debate, pois neste fenômeno de redução de complexidade, já não se busca mais entender o Direito pelo Direito, mas sim pelas jurisprudências, músicas e manuais facilitados/esquematizados. Aí está então a primeira dose da vacina contra este vírus que causa a anemia intelectual do direito: a necessidade urgente de deixar a doutrina doutrinar, e mais, fazer com que os cursos que irão formar juristas, o façam a partir da compreensão do que é intelectualidade, e não partir de sub-espécies de uma teologia da prosperidade. Ainda em Streck, temos que a evolução natural do vírus que causa a crise paradigmática do ensino do Direito é o surgimento do que o professor denomina como homem comum do Direito. Segundo Streck, o homem comum do Direito[3] Pois no Direito, o "jurista", o lidador, o operador, identifica-se com o comum. É o HCD. O lidador comum. Não lê nada que não seja... comum. Contenta-se com o menos. Igual ao homem comum, individualista, é um solus ipse. É viciado em si mesmo. Pensa que pode dizer o mundo a partir de si. Os limites da linguagem são os limites do meu mundo? Não para o “operador”: os limites do seu mundo são os limites da linguagem...! O HCD é o canário do conto de Machado. Ele fala e diz que o mundo é...um brechó...onde ele, o canário, é o dono de tudo. Machado genial. Profeta. Ele catalogou o HCD. Com o advento das redes sociais, o HCD pensa que agora é a sua vez de dizer o Direito. Porque sabe que seus pares são, na maioria, como ele. Parte de seus professores foi assim. Seus colegas também. Ele tem as redes sociais para buscar seus iguais. Assim, faz triunfar a anti-ciência. O simples. O senso comum. O jurista comum é o cara do BBJ (Big Brother Jurídico): formados em direito, sem nada de especial, podem se tornar famosos. Vieram do anonimato, não dominam necessariamente um tema e têm opinião sobre tudo. Não há nada que sustente suas opiniões...que são sobre aquilo que não sabem. Partindo então das premissas conceituais trazidas acima, parece ser correto afirmar que a grande raiz dos estelionatos educacionais denunciados por Aquim, reside justamente nesta crise paradigmática denunciada por Streck, que deságua no surgimento do homem comum do Direito e tudo mais que este homem comum pode fazer, pois, apegados à uma espécie de teologia da prosperidade, vendem ilusões na internet como se fosse simples fazer sucesso na advocacia, ou como se exista uma fórmula mágica para o deferimento de liminares em habeas corpus, e ainda como se captar clientes em grandes operações e outros tantos quejandos. Esta teologia da prosperidade aplicada no Direito, é fruto desta crise paradigmática tão bem denunciada por Streck, e que possui um cunho absolutamente subjetivista que advém do empobrecimento da linguagem. Ricardo Timm[4] ao tratar da crítica da razão idolátrica, ensina justamente como a idolatria nasce justamente a partir da cegueira pelo significante “dinheiro”. E é justamente esta idolatria aos significantes dinheiro e aparente sucesso que faz com que hoje muitos recém-formados caiam nesta teologia da prosperidade, assim como muitos fiéis se rendem à pastoreios fraudulentos, na esperança de que seja “ensinado” algum macete que o faça não entender ainda mais a complexidade deste fenômeno chamado Direito. E o pior: muitas das vezes, estes “macetes” são “ensinados” por pessoas que também não conseguiram entender esta complexidade do Direito e aí, sem saber que não sabem, fazem igual ao filme alemão Die Welle e desencadeiam uma reação em cadeia de néscios, que dariam inveja e fariam com que Nelson Rodrigues, no além-vida gritasse: “Eu estava certo, eles são muitos!”. Aí está então a raiz do problema do estelionato educacional: a falta de livros! A música pode até servir de acessório, mas nunca como instrumento facilitador, e aqui peço uma breve licença poética para me valer justamente de uma música, para tentar fazer com que este ponto, em específico, fique mais inteligível. Me valho dos ensinamentos da música urbana de MC Marechal[5] quando afirma: País feliz onde o povo pouco lê E busca mais mostrar nas rede como vive que viver Não consegue aprender que as redes são pra prender Tudo é Facebook e os livros na cara, cadê? Tu não vê Igual o logo do Carrefour que a parte branca é um "C" O trecho exposto acima, expõe o núcleo do problema que tão bem é denunciado pela ciência do Direito, e também exposto no mundo da arte. Por favor, não deixem de ouvir música, boas ou ruins, a música é a condição de possibilidade para que enfrentemos as angústias do mundo, mas que entendamos que intelectualidade vai muito além de promessas vazias e vãs. Há muito que se fazer. Dia após dia vemos o Direito e os direitos sendo atacados, e não há soluções fáceis para enfrentar este vírus que leva ao epistemicídio. Para isto, é necessário que não nos rendamos ao canto da sereia dos neo-pastores-coachs do Direito, e voltemos urgentemente à eles, somente eles, que são os maiores antídotos que o mundo já criou contra o epistemicídio: os livros (não esquematizados/mastigados/facilitados). Não nos iludamos, os estelionatos educacionais continuarão por aí, serão sempre uma infeliz constatação da vulgata pós-moderna de uma epistemologia à la 50 cent (get rich or die tryin’), mas de fato, concordo com Aquim: só cai quem quer! Jefferson de Carvalho Gomes Doutorando em Direito pela UNESA; Mestre em Direito pela UCP; Especialista em Criminologia, Direito e Processo Penal pela UCAM; Professor da Pós-Graduação da ABDConst e Advogado. NOTAS: [1] Código Civil Art. 966 - Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa. [2] STRECK, Lenio Luiz. Devemos nos importar, sim, com o que a doutrina diz. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2006-jan-05/devemos_importar_sim_doutrina [3] STRECK, Lenio Luiz. A era e o triunfo do Homem Comum do Direito e "a chatice”!. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-fev-25/senso-incomum-triunfo-homem-comum-direito-chatice [4] Cf. TIMM DE SOUZA, Ricardo. Crítica da Razão Idolátrica: tentação de Thanatos, necroética e sobrevivência. Porto Alegre: Zouk Editora, 2020. [5] Mc Marechal. 1º de abril. Disponível em: https://www.letras.mus.br/mc-marechal/primeiro-de-abril/
0 Comments
Leave a Reply. |
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |