De certo modo somos criaturas vulgares, mas mesmo aceitando esta condição, parece salutar reconhecer que certos acontecimentos são insuscetíveis de sofrer paráfrase, eis que não podem ser adequadamente subsumidas, ou substituídas, por palavras, tão arcaicas e tão efêmeras para descrever certos aspectos da tragédia humana. Certo disso é que em 2015 foi apresentada ao mundo a série denominada “Making a Murderer”, qual essa, com notável qualidade, encarregara-se de aprofundar o corte sobre a vida e tragédia da família Avery. A história se passa em Milwaukee, Estado do Wisconsin. Um homem e seu preço. Steven Avery é condenado em função de um crime que não cometeu. As autoridades de Milwaukee odiavam os Avery abertamente. A sucessão de eventos que culminou no encarceramento de Steven é a prova indissolúvel desse ódio silencioso. Assim como não passou desapercebido pela brilhante filósofa Hanna Arendt (Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal), admitir a furtiva ideia de conspiração estatal eliminaria qualquer espaço [hermenêutico] para iniciar a discussão crítica sobre quais foram as reais causas do grande erro impingido aos Avery. Os agentes que participaram da persecução penal, sem olvidar o trágico resultado, eram antes homens medíocres, de pouca inteligência, obedientes a qualquer ordem superior, cujo pensamento moral representa a eles um esforço assaz sofisticado, sobretudo, homens sem capacidade crítica, em que os meandros da burocracia fizeram as vezes da ausência de caráter, levando-os a atos atrozes, tal como Eichmann, que, haurido em sua insignificância, mesmo assim foi capaz de contribuir significativamente para a solução final. O caso em que se debruça a presente coluna não é resultado de uma conspiração orquestrada pelo Estado. O resultado dessa injustiça é antes a antítese das inabilidades e vicissitudes humanas, de nós todos bastante conhecidas, as quais refletidas no espelho de nossas incertezas em seu viés mais mordaz. Os Avery ERAM uma família muitíssimo peculiar, viviam isolados do resto do condado e com ele não se misturavam. Tinham um negócio de ferro velho, de onde tiravam o sustento. Não tinham projetos de vida. Lá se matava um leão por dia. Por certo, a sua singularidade fez com que fossem constantemente alvos de diversas taxações depreciativas pela comunidade, tal como eram conhecidos, os “encrenqueiros”, “indesejáveis”. A simples existência deles naquele condado, aliás, parecia bastar-se para incitar ódio. De outro lado, como nenhuma outra, a família Avery ERA muito grande e unida. Assim como em Jerusalém (caso Eichmann), na casa de justiça do condado de Milwaukee, o palco estava montado para o espetáculo. As circunstancias em que envolto o caso, como se verá, provocaram nas autoridades policiais de Milwaukee aquilo que veio mais tarde a ser definido por Franco Cordero (Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986. p. 51) como “quadro mental paranoico”, situação que é típica do sistema penal inquisitório, uma vez que fundado apenas na necessidade de confirmação das vaidades que antecedem a necessária e indispensável impessoalidade da autoridade inquisidora. Steven Avery tinha ficha pela prática de pequenos delitos, comezinhos e de nenhuma relevância, como quando jogou um gato no fogo. Em outro episódio, Avery ameaçou Sandy Morris, mulher do Xerife do Condado, quando então, em uma abordagem em via pública, Avery mostrou uma arma (descarregada) a Morris, isso por que Morris vinha difamando abertamente Avery com falsas histórias do tipo: Avery é pervertido e mostra a sua bunda nas ruas de Milwaukee. Fico imaginando se isso teria contribuído para a formação da imagem de Steven de inimigo número um do Condado de Milwaukee. Este evento lhe rendeu sua primeira identificação criminal, ficando sua foto disponível nos arquivos criminais do departamento policial do Condado. Tal foto posteriormente irá desempenhar um papel determinante para o caso Penny Beerntsen. A ficha criminal de Steven mais tarde serviu à autoridade judiciária competente para negar a ele liberdade mediante fiança no caso em apreço. Fundamento de recusa retórico, evidentemente. Não fosse essa a hipótese, razoável supor que a imaginação arbitrária dessa autoridade não encerraria fertilidade e facilmente lhe ofereceria outro subsídio, igualmente retórico, para manter Avery segregado. Avançando sobre o Caso Penny Beernten, os fatos narram que a vítima Beernten avistou um homem quando caminhava pela praia, que passou a segui-la durante algum tempo. Já tendo tomado conta disso, a vítima, inadvertidamente, foi agarrada pelo braço, sendo, em seguida, arrastada da praia até a floresta, quando então foi violentamente estuprada por seu algoz. A vítima ficou gravemente ferida, e, não fossem os gritos de suplica, talvez as agressões tivessem evoluído para a sua morte. No hospital, a oficial de polícia Judy Dvorak realiza entrevista à vítima, consignando relatório ao Xerife do condado, Thomas Kocourek, dando conta em suas conclusões de que as características do autor, narradas por Beernten, são as mesmas de Steven Avery. Dvorak, sabendo-a vizinha dos Avery, com os quais não se dava, e amiga de Sandra Morris (prima de Steven), que em outrora acusara Steven de comportamento lascivo, a todo tempo, durante a entrevista, ficava sugestionando à vítima se se tratava de Steven o autor do ato sexual, manifestando, Dvorak, o referido quadro mental paranoico, uma vez que não se baseava em quaisquer subsídios materiais (a menos que preconceito possa comportar tal definição). Ao receber alta hospitalar, Penny Beernten se encaminha à delegacia, ocasião em que é realizado um retrato falado do possível autor pelo Xerife-Adjunto Eugene Kusche, supostamente através das memórias da vítima. Ocorre que o resultado é um retrato absolutamente fiel às características faciais de Steven Avery. Especial realce deve ser dado neste tocante. Veja que o desenho supostamente realizado com base na memória da vítima Penny Beernten é muito próximo da foto de Steven arquivada no departamento de polícia do Condado de Milwaukee, a qual o “desinteressado” desenhista possuía franco acesso. Com tais elementos de informação, Steven Avery é imediatamente preso e mantido sob custódia policial, e, como mencionado, sem direito à fiança, sendo mantido incomunicável, sem advogado e sem telefonema por dias. A psicologia é veemente ao afirmar que, mesmo em adultos, é absolutamente possível o implante de falsas memórias (que se distinguem de mentiras deliberadas), o que, na enseada processual penal, poderia levar ao comprometimento da credibilidade de um depoimento, ou, in casu, da identificação do suposto autor de um crime. Penny Beernten é novamente convidada a comparecer à repartição policial, desta vez para realizar a identificação pessoal do possível autor. Assim, numa sala confinada, Avery, juntamente a outros três indivíduos, aguarda até que o procedimento seja realizado. O resultado é que a vítima, sem margem de dúvida, aponta Avery como sendo o seu malfeitor. Mais de dez anos após os fatos, em 1995, o agente penitenciário Andrew Colborn recebe uma ligação de um agente de outro condado, o qual lhe informa que o detento Gregry Allen havia confessado um crime de estupro violento praticado em Milwaukee pelo qual outra pessoa estava presa, no entanto, a despeito da grave suspeição, uma vez que Allen possui longa ficha de crimes de violência sexual, a advertência fora ignorada e a investigação centrou-se toda em Steven. Advém que o crime contra a vítima Beernten ocorrera justamente quando Allen encontrava-se em gozo de saída temporária, ocasião em que ocorreu uma falha em sua vigilância. Nesta janela de tempo as atividades de Allen é de todos desconhecidas, sendo que só voltou a ser preso após a prática de outro crime. Aliado a isso, foram apresentados pela defesa de Steven vinte e dois álibis (oculares) dando conta de que no dia e hora dos fatos, Steven encontrava-se em outro local. Nada disso foi de algum modo admitido a juízo da cognição do julgador. A acusação de Steven Avery baseou-se inteiramente no reconhecimento da vítima, a qual, instada em juízo, voltou a reconhece-lo com cem por cento de certeza. Steven é condenado pelo Júri a uma pena de 23 anos por violência sexual e a 32 anos por tentativa de homicídio e cárcere privado. É levado à Penitenciária de Green Day. Impávido, recorre até a Suprema Corte, que nega o pedido de reforma de sua condenação. Quando em 1994, realizam testes com os materiais biológicos retirados das unhas da vítima Penny Beernten. O exame realizado identifica dois tipos distintos de Alelos (códigos existentes no DNA que permitem a identificação de patrões de genes), sendo que um deles pertencia à vítima, o segundo, a outra pessoa. Isso permitiu, com certeza científica, a exclusão de Steven Avery. Com base nessa prova, ingressaram com revisional em favor de Steven. O método, que surgiu posteriormente à prática do crime sob apreço, é precário e ainda não permitia a individualização do sujeito, tal como já ocorria com as digitais, mas indiscutivelmente permitia excluir Avery como sendo dono do material analisado. A Corte do Estado do Wisconsin, dolorosamente, negou admissão à prova. Com dezoito anos de prisão, surge para Steven a última tábua de salvação. Do mesmo modo como ocorrera com a sua primeira revisional, baseando-se em prova nova, eis que, antes, impossível de ser produzida, é realizado agora exame de DNA em três fontes capilares pubianas arrecadadas diretamente das vestes da vítima. Sabe-se que a esse tempo (2003) os recursos da tecnologia genética são outros. O Federal Bureau of Investigation de então é dono de um rico manancial de perfis de identidade genética, que permite ampla margem de correspondência com (ex)detentos do sistema de justiça. Concluiu-se que o perfil genético examinado, não só não pertencia a Steven e nem à vítima, tal como ainda foi possível encontrar um correspondente no banco de dados genéticos. A pessoa a quem pertencia o DNA era nada menos que Gregry Allen, o mesmo que outrora fora dispensado como potencial autor do crime em apreço. Não sem tempo, Avery recobra a sua liberdade. O caso, sem sombra de dúvida, é resultado de uma sucessão de erros que até os dias de hoje persegue os Avery. Uma curiosidade é que durante seus dezoito anos de cárcere, certo de sua inocência, Steven recusou-se a assinar qualquer acordo. Nos EUA 97% dos casos terminam em acordo (conforme série A 13ª Emenda). O réu que o aceitar, terá abrandada a sua pena, o que tem levado pessoas inocentes, inclusive, a abrir mão de seu direito de justiça. Tornam-se, assim, culpadas, e o que é pior, por se tratar de “acordo consensual”, insuscetível de recurso e revisão criminal. Que mal é esse... que entra furtivo no mundo? A virtuosa justiça de que tanto ouvimos falar, subvertida em instrumento de caça! Por que nos vergamos a esse poder? Seria isso o resultado de nossas predisposições em banalizar esse mal. Malgrado, o sofrimento e terror inoculado pelo Estado aos Avery está longe de ter um fim. Um ano após a sua libertação, Avery foi novamente preso. O caso sugere, esse sim, conspiração muitíssimo bem orquestrada (dessa vez com motivos veementes a sustentar a alegação), mas não será produto de desenvolvimento dessa singela coluna, que no momento certo, compraz-me-rei apresenta-la aos distintos leitores. Marcos Fernando Oliveira Bacharel em Direito pela FPU Especialista em Ciências Penais Analista de Promotoria do Ministério Público de São Paulo Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |