Se considerarmos que o Direito nasce da complexidade das relações humanas, não existe terreno mais fecundo para a Literatura do que os segredos revelados no sigilo dos escritórios de advocacia ou sob o estrépito das luzes de uma sala de audiência. Na qualidade de um advogado que escreve – ou um escritor que advoga, os limites não se encontram bem delineados – não são poucas as reuniões com advogados nas quais, em um determinado momento, o colega se encosta na poltrona e confidencia “sabe, doutor, tenho uma história que poderia sair em um livro seu...”. E geralmente eles têm razão: os relatos que desabrocham nos escritórios de Direito são de uma criatividade impressionante. Até mesmo a ficção teria pruridos em contar alguns fatos que transcorreram na nossa velha e esfarrapada realidade. Advogados são fontes constantes de ótimas histórias, pois todo processo, em suma, é uma narrativa que precisa ser contada por um autor em conjunto com o seu advogado para convencer um único leitor – o juiz. Para vencer um processo não é preciso ter o melhor direito, mas saber contara história que nos foi confiada em primeira mão pelo cliente. Poucas ocupações possuem mais vínculos com a Literatura do que o Direito. De Henry Fielding a Scott Turow, é vasta a lista de advogados que atravessaram a linha do fato jurídico e passaram para a ficção literária. É possível perceber um movimento contrário, ainda que tímido, de escritores que, premidos por graves injustiças e incapazes de se calarem,acabaram se tornando advogados em algum momento da sua vida. A lista é pequena, mas honrosa: podemos recordar de Voltaire defendendo Jean Calas em público, sem ter sucesso, mas deixando um belo livro como libelo contra a injustiça da acusação, “Tratado sobre a tolerância”; ou Émile Zola usando toda a sua verve literária para escrever “J’accuse!”, insuflando a França no caso Dreyfus e colocando a própria liberdade em risco com a sua famosa frase final: “Não tenho mais que uma paixão, uma paixão pela verdade, em nome da humanidade que tanto sofreu e que tem direito à felicidade. Meu protesto inflamado nada mais é que o grito da minha alma. Que ousem, portanto, levar–me perante ao tribunal do júri e que o inquérito se dê à luz do dia!”. Também podemos lembrar deConan Doyle saindo dos braços confortáveis de Sherlock Holmes para atuar em favordo indiano George Eljavi, protegendo-o da acusação de mutilar cavalos e mandar cartas envenenadas, ou de Tolstói defendendo sem sucesso o soldado Sabunin que, bêbado, agrediu um oficial e foi condenado à morte. Essas relações entre Direito e Literatura são diretas e, portanto, facilmente verificáveis. Mais difícil de ver é quando o Direito, agindo em segredo, acabou mudando a própria história da Literatura. Seria muita ingenuidade imaginar que as duas áreas andam separadas, mantendo-se puras e sem zonas de contato. Existem muitas maneiras de uma afetar a outra; quando justiça e literatura se misturam, as fronteiras nunca são claras. A tenacidade de uma acusação perante os tribunais pode fazer o autor ser obrigado a defender a sua obra de uma forma que nunca fez antes, tendo que perscrutar sobre os limites da sua criação não para se opor a um crítico, mas para evitar que a obra saia dos limites de um livro e acabe sendo a responsável pela sua prisão. Da mesma forma, um juiz pode acabar se tornando crítico literário, extrapolando as suas funções jurisdicionais para dar uma aula sobre a necessidade de verossimilhança para uma narrativa funcionar. Por fim, um advogado pode acabar se tornando decisivo para o sucesso ou fracasso de uma série de obras literárias – e poucas pessoas saberem disso. Às vezes, um bom vilão é mais importante para a trama do que o próprio mocinho. A literatura francesa do século XIX encontrou um dos seus maiores inimigos dentro dos tribunais: o promotor Ernest Pinard, que tentou impedir tanto a venda de “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert, quanto de “As flores do mal”, de Charles Baudelaire. Os dois livros sofreram processos por obscenidade e por violação dos bons costumes. O conteúdo completo de ambos os processos pode ser lido em “El origendel narrador: actas completas de losjuicios a Flaubert y Baudelaire”. O fato do mesmo promotor ter investido contra obras que acabariam se tornando clássicos da literatura mundial demonstra que, ao analisar a comoção popular causada em torno da recepção dos trabalhos dos dois autores, Ernest Pinard achou que o Poder Judiciário era a única maneira de cercear a liberdade da literatura. Na justificativa do processo movido contra Flaubert, o promotor assim expõe a sua visão de arte: “A arte que não observa nenhuma regra não é arte, é semelhante a uma mulher que sedespeem público completamente e sem pudor. Impor uma regra de decência pública sobre a arte não é feito com o objetivo de subjugá-la, mas para honrá-la." Para Ernest Pinard, a arte não pode ser revolucionária, deve se pautar por normas mínimas de comportamento, pois representa não só um espelho da sociedade, mas também uma maneira de modificá-la. Entre as provas carreadas nos autos, duas se destacaram: a primeira seria que o suicídio de Emma Bovary não veio por causa do arrependimento pelo adultério, mas por causa das dívidas que acumulara, o que demonstrava uma falta de moral incompatível com um caráter nobre; a segunda seria o fato da mulher ser insubmissa não só ao seu marido e demais personagens, mas perante inclusive o seu autor: “No livro todo não existe um personagem que possa dominar essa mulher. O único ser que a domina é a própria senhora Bovary”. Duas provas que dizem respeito à própria estrutura do romance – e que, se modificadas, mudariam todo o seu contexto e o transformariam em uma obra moralizante. Gustave Flaubert e seu advogado Marie-Antoine Sénard precisaram muita habilidade para se defender. Não bastava justificar as motivações de Emma Bovary como personagem, mas a sua visão de arte. Após a colheita de provas e os debates no tribunal, Pinard obteve uma vitória parcial: “Madame Bovary” continuou do jeito em que foi concebida, mas Flaubert recebeu uma admoestação pública. Tão intensa foi a experiência de defender o próprio livro que Flaubert dedicou o romance ao seu advogado Marie-Antoine Sénard com as seguintes palavras: “Caríssimo amigo: permita-me gravar seu nome no frontispício desta obra, em dedicatória, pois é ao senhor que devo, acima de qualquer outra pessoa, esta publicação. Com sua magnpifica defesa, este livro adquiriu a meus próprios olhos uma autoridade inesperada. Queira aceitar, portanto, esta homenagem d eminha gratidão, que jamais estará à altura de sua eloquência e de sua dedicação, por maior que seja.” Mais do que defender um livro, Sénard apoiou a sacralidade da arte e o seu espírito subversivo. Nem sempre gostamos de enxergar a verdade incômoda no espelho e, entre as suas funções, a literatura também mostra aquilo que não gostaríamos de saber. Charles Baudelaire não teve a mesma capacidade no seu processo. Ernest Pinard usou os argumentos antes experimentados contra Flaubert como base para processar o autor de “As flores do mal”, e o advogado Gustave Louis Chaix d'Est-Ange foi incapaz de apresentar uma defesa consistente. A sua situação era ingrata: os poemas de Baudelaire continham referências pornográficas e uma constante apelação para a escatologia. O resultado: seis poemas com temática de lesbianismo foram abolidos da obra, e somente em 1949 a publicação desta parte objeto de censura foi enfim autorizada. Também existem momentos em que um juiz, ao prolatar uma sentença, acaba se revestindo da posição de crítico literário. Em 1933, quando tentaram proibir a publicação de “Ulisses” de James Joyce nos Estados Unidos sob a alegação de pornografia, o juiz John M. Woolsey prolatou uma sentença que se tornaria famosa, defendendo a liberdade de criação como forma incontestável de atribuir a necessária verossimilhança para uma trama. Toda a sentença merece ser lida, ainda mais em tempos onde se tenta cercear o direito dos outros falarem aquilo que pensam sob as mais diferentes argumentações, tempos em que não se apela para o Poder Judiciário, mas se vai para as redes sociais ridicularizar as visões dos outros:
Em outro ponto da sentença, o juiz Woolsey reconhece que a leitura de “Ulisses” é “tediosa e fascinante, difícil e interessante”, e que se sentiu incomodado ao ler os palavrões, mas reconheceu que, para a obra funcionar, para Joyce entrar na cabeça dos personagens, ele precisava escrever daquele jeito. Não existe como fazer uma omelete sem quebrar ovos: um escritor não pode ser coerente com a moralidade e com a visão do politicamente correto se quiser criar verossimilhança, pois então soará falso e – o pecado maior para qualquer obra literária – inverossímil. Uma terceira forma subreptícia do Direito influir na Literatura é quando autores são ajudados por advogados nas suas tramas. Poderia citar o interessantíssimo livro de Andrew Zurcher, “Shakespeare and Law”, mas mereceria um texto a parte. Prefiro ficar em uma figura que, à moda de Rasputin, esteve por trás da era de ouro da literatura russa – e quase ninguém lembra o seu nome: o advogado AnatolyFedorovichKoni (1844-1927). A estreita biografia que encontramos sobre este advogado não faz jus à sua importância. AnatolyFedorovichKoni não só foi advogado, juiz, senador e membro do Conselho de Estado do czar da Rússia, como também se notabilizou pelos seus ensaios de crítica literária, servindo de consultor jurídico informal para as obras de ninguém menos do que Anton Tchekhov, FiodorDostoiévski e Leon Tolstoi. Na área da crítica literária, seus estudos sobre as referências legais na obra de Pushkin – escritos ainda na faculdade – marcaram época na Rússia czarista, que tinha vários problemas com as rebeldias estilísticas daquele que viria a ser considerado o seu maior autor. Na área do Direito, Anatoly F. Koni notabilizou-se pela sua visão liberal-moderada no período pré-revolucionário, época em que os nervos estavam à flor da pele. Conseguiu se transformar em uma unanimidade entre os historiadores de ambas as vertentes ideológicas. De acordo comVoronov, historiador de antes da Revolução Russa, Koni era “um verdadeiro cavalheiro, que combinou os grandes talentos de artista, poeta, pensador, psicólogo, teórico e crítico.” Segundo Polianski e Syromiatnikov, historiadores do período soviético, “o notável sucesso de Koni em jurisprudência, legislação, teoria literária e literatura fez o seu nome não-russo soar como um dos nomes mais populares em toda a Rússia”. Koni conheceu os grandes escritores do período de ouro da literatura russa. Até mesmo Tolstói, que costumava desprezar todos os que não seguiam as suas ideias sobre um mundo perfeito e que dedicava à lei um capítulo todo especial na sua longa lista de desprezos, respeitava Anatoly F. Koni e, mais significativo ainda, o tinha como amigo e confidente pessoal. Eram frequentes as visitas do advogado a Tolstói em Yasnaya Poliana, tanto para aconselhá-lo quanto para discutir nuances das suas obras. Com relação a Tchekhov, os dois trocaram uma significativa correspondência. Foi graças a este escritor russo que Koni compreendeu – está nas suas memórias, não publicadas em português e que cito aqui com tradução minha do espanhol – “que na vida da justiça e na justiça da vida a ficção literária albergava um alcance de ativismo social, que é uma potência transformadora da realidade”. Koni foi uma das primeiras pessoas a erguer a sua voz em defesa de Tchekhov quando da recepção agressivamente contrária à peça “A gaivota”, reconhecendo seu valor literário muito antes do reconhecimento do restante da crítica. Quando soube que Tchekhov tinha interesse médico de visitar a ilha Sajalín para saber mais das condições retratadas por Dostoiévski em “Recordações da casa dos mortos”, Koni se dispôs a acompanhá-lo na visita. Tchekhov mandou uma carta para a sua irmã: “após visitar a ilha de Sajalín, eu e o Comissário Koni decidimos escrever uma carta em conjunto para a imperatriz, tratando da situação vivida pelas crianças naquele lugar e pedindo o estabelecimento de um refúgio para protegê-las.” No entanto, Tchekhov desistiu da carta em conjunto e preferiu escrever um livro como denúncia, “A ilha de Sajalín”, o qual só foi publicado em 1893. Nos capítulos XVII e XIX, o escritor russo faz severas críticas ao sistema penitenciário russo e a forma com que tratava mulheres, crianças e outros desprotegidos. Na qualidade de primeiro leitor, Koni acrescentou as suas opiniões, enquanto lutava na esfera burocrática pela melhoria das condições humanas no estabelecimento carcerário. Não foi o único momento em que Tchekhov e Koni trabalharam juntos. A sua correspondência indica uma constante troca de ideias sobre meandros jurídicos que Tchekhov abordava em suas tramas. Quando ele tinha dúvidas legais sobre as condutas de algum personagem, Anatoly F. Koni era consultado, e a conversa estabelecida entre ambos era uma mistura de pareceres jurídicos e opiniões literárias. O mesmo aconteceu com Dostoiévski, que também manteve contato com Koni. Da mesma forma que Tchekhov, o interesse maior de Dostoiévski era o campo da psicologia criminal, e basta ler as suas obras para entender o motivo de tamanho fascínio. O que leva uma pessoa a cometer um crime? O que faz um criminoso confessá-lo? As dúvidas de Dostoiévski – e as conversas estabelecidas com Koni – são redimensionadas no interior dos seus livros, em especial “Os irmãos Karamazov” e “Crime e castigo”. Entre os maiores interesses do autor russo estavam as pulsões autodestrutivas do pensamento fanático e o que impulsionava a violência implosiva dos suicidas. Para ajudar as pesquisas de Dostoiévski sobre o tema, em dezembro de 1876, Anatoly F. Koni emprestou-lhe um pacote de cartas deixadas por suicidas, o que gerou um texto do escritor russo, “Sobre o suicídio e a arrogância”, que começa com o seguinte trecho: “Há cerca de um ano e meio, um homem de muito talento e muita competência, reconhecido no nosso sistema judicial, mostrou-me uma pilha de cartas e notas deixadas por suicidas que havia reunido, e que tinham sido escritas imediatamente antes de sua morte ou, melhor dizendo, até cerca de cinco minutos antes deles se matarem”. Uma pena que não posso falar mais sobre a profícua relação de AnatolyFedorovichKoni com alguns dos maiores escritores da sua época, muito menos a importância dos seus trabalhos para o sistema legal e literário russo. O espaço curto de um texto não permite. Contudo, é importante ver como funciona a relação de mútuas trocas e benefícios entre o Direito e a Literatura. Todo bom advogado precisa ser um ótimo leitor, pois nem sempre o texto jurídico é capaz de desvendar a complexidade das relações sociais. Da mesma forma, um bom escritor precisa ter o conhecimento que o Direito já garante a muitos séculos: não existe o certo inequívoco ou o errado absoluto, mas uma ampla gama de matizes entre os dois pólos da verdade. Assim como Ernest Pinard investindo contra a literatura da sua época (e acabando por reforçar os seus fundamentos estéticos), ou o juiz Woolsey analisando a pornografia de uma obra literária pelo ângulo da necessidade imperativa de estabelecer a verossimilhança, ou AnatolyFedorovichKoni auxiliando nas sombras aos escritos de Tolstói, Tchekhov e Dostoiévsky, não se pode deixar de lado uma grande verdade: só podemos chegar à justiça entendendo o ser humano. E, para chegar ao humano, a única forma é através da arte e, entre elas, o estudo de literatura é essencial para nos deixarmos não só melhores advogados, mas seres humanos mais piedosos e mais completos. Gustavo Melo Czekster Advogado, formado em Direito pela PUCRS Mestre em Letras, Área da Literatura Comparada, pelo Instituto de Letras da UFRGS Atualmente está cursando o Doutorado em Escrita Criativa da PUCRS Participante de oficinas literárias Autor do livro “O homem despedaçado”, lançado em julho de 2011 pela Editora Dublinense. Comments are closed.
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