Um direito e um processo penal dual podem ser vislumbrados de dois pontos de vista: um primeiro, diante das propostas (dever-ser) que enxergam na dicotomia medida idônea para compatibilizar as garantias fundamentais com a “necessidade” de repressão antecipada e fluida para determinados agentes ou determinados delitos. Outro, na percepção da real manifestação do poder punitivo em toda sua história, mais sensivelmente onde as agências de repressão e o poder judiciário são menos suscetíveis aos valores democráticos. Neste último sentido utiliza-se a expressão “direito penal subterrâneo”[1].
A proposta de um direito penal “legalmente” dual ganhou distintos desenhos no decorrer da história. Cabe aqui relacionar uma destas propostas e perceber em que ela se aproxima da tendência, percebida por muitos processualistas, de adoção de medidas de exercício do poder de punir que não passem pelo que está delineado no CPP em vigor (devidamente lido sob os filtros constitucional e convencional). A proposta a que nos referimos é trazida por Jesús-Maria Silva Sanchez, ao tratar das “velocidades do direito penal”[2]. O alvitre de Silva Sanchez se consubstancia através de diversas medidas, entre as quais: criação de novos bem jurídicos, ampliação dos espaços de risco jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia. É também bem conhecida sua sugestão sobre a análise aritmética da neutralização como função da pena, com o uso de cálculos probabilísticos. Passagem sempre citada da obra do autor: “recluir 5 años a 2 delincuentes cuya tasa predecible de delincuencia es de 20 delitos por año, el "ahorro" social es de 200 delitos, y así sucessivamente”[3]. O elemento peculiar no programa punitivo de Silva Sanchez é a terminologia das “velocidades” do Direito Penal. Segundo o autor, existem duas velocidades, ou dois direitos penais que se misturam. Um é o Direito Penal mínimo e rígido, com grau elevado de garantias e severidade de penas, circunscrito a um núcleo restrito de bens jurídicos. Outro é direito penal máximo e flexível, com grau reduzido de garantias, porém com penas mais brandas, abrangendo uma gama bem maior de bens jurídicos[4]. Cabe mencionar ainda que, para Silva Sanchez, o problema do terrorismo precisaria ser enfrentado com uma “terceira velocidade do direito penal”[5], relacionada diretamente com a proposta de Jakobs sobre o direito penal do inimigo. Nesta seriam conjugadas penas severas com garantias flexíveis. É interessante notar que Silva Sanchez procura determinar o dever-ser a partir do ser, ou seja, procura colher da disjunção operada pelo poder punitivo entre garantias e sanções para justificar seu plano de política criminal. Com isso, inverte-se a análise de legitimidade do poder estatal de punir, que precisa se dar partindo do que estabelece a Lei Maior (dever-ser) para a “práxis” (ser). Somente nesta lógica pode ser feita a avaliação da política criminal de um Estado Democrático de Direito. Aceitar as deformidades operadas no cotidiano de aplicação do poder punitivo, como base para definição da política criminal significaria aceitar a derrota do programa constitucional de balizamento do edifício “de direito”. A partir daí, todo e qualquer procedimento estabelecido para aplicação (e refreamento) do exercício de imputação penal figuraria como mera formalidade burocrática. Neste cenário, a defesa seria vista, já afirmava Ferrajoli, como um “obstáculo irritante”[6] aos ideais discursivos de “justiça” (melhor chamada neste caso de vingança estatal ou justiçamento reacionário). Voltando-nos agora para uma hipótese de análise ao que se observa hoje no processo penal brasileiro (fenômeno análogo tem sido observado também em outros países), seria possível identificar algo análogo ao proposto por Silva Sanchez? A afirmação positiva que aqui se apresenta, em breve provocação, calca-se na observação intrigante do prof. Rui Cunha Martins[7] de que, se o séc. XX foi o século da prova, século em que o debate processual centrou-se na discussão sobre a prova lícita, sobre a possibilidade do juiz em protagonizar a busca pela prova, sobre a qualidade e quantidade em que a prova seria considerada suficiente, o século XXI aparentemente será o século da delação. Partindo desta percepção (que também se afirma como prognóstico), qual será a feição do processo penal, em especial em países com forte tradição inquisitória e quase nenhuma tradição “negocial” (como o Brasil)? Rui Cunha Martins afirma que os juristas se encontram fadados a enfrentar três formas de “processo penal” distintas: processual stricto sensu (alicerçada na distinção entre evidência e prova); informal (do senso comum, com enfoque ao apresentado pela mídia e afirmado nas redes sociais – elemento externo se consideradas as fontes formais do direito, mas inegavelmente presente e com forte poder de alteração no resultado do processo, como qualquer estudo empírico pode provar[8]); negocial (ao qual o professor de Coimbra diz ser atribuído o “grau zero da prova”). O grande problema de se trabalhar num ambiente em que três modelos de processo penal são instrumentalizados (ainda dois apenas formalmente) é que não se sabe exatamente que critérios serão utilizados para a efetivação de um ou de outro. Pior, parecem não haver critérios legítimos, no paradigma do Estado Democrático de Direito, que permita tal diferenciação. Ocorre que esta “distribuição” será concretizada com base em elementos que desde há muito fundam a prática do poder punitivo, ou seja, obedecerão a determinações que crivam o direito penal de parcialidade e seletividade. Afinal, quem olvida que aos praticantes da criminalidade de massa a disponibilidade de acesso aos meios de justiça negocial estão, regra geral, obstaculizados? Não se afirma com isso que aos acusados/investigados a quem se ofereça a oportunidade seu uso seria objetável. Ao menos do ponto de vista processual trata-se de escolha (livre?) daquele que percebe diante de si um meio de defesa. O problema não está do lado de quem opta pela delação, mas de quem a oferece. Está principalmente no modo, nas condições e sob que argumentos (interesses) a oferece ou deixa de oferta-la. Seria possível observar, nesta lógica multiprocessual, algo semelhante às “velocidades”[9] propostas por Silva Sanchez? Sim, se levarmos em conta que o propósito, ao menos teoricamente, para a efetivação da disjuntiva interna (quer no direito material quer, como na questão abordada, processual) seria o argumento da eficácia para ação penal. Em ambos os casos, as garantias que precisarão ser afastadas são colocadas em segundo plano sob o manto tranquilizador da eficiência, da eliminação da impunidade, da possibilidade de se chegar a uma verdade que até então era desconhecida pela jurisdição porque complexamente ocultada através de subterfúgios utilizados pelas organizações criminosas. Sem adentrar ao mérito acerca de se o modelo formal ou tradicional de processo penal realmente impede a instrumentalização eficaz da investigação, fica a questão concernente aos efeitos que esta “relativização” opera na realidade de todos os processos. Há ainda a questão dos limites para esta “nova velocidade” do processo penal. Se ela não obedece ao regramento genérico, a que regramento obedece? Muito deverá ser debatido neste aspecto, mas cabe relembrar uma indagação pertinente, trazida por Muñoz Conde ao analisar a proposta de Jakobs sobre um direito penal do inimigo:
Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Advogado Referências: [1] ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 69 ss [2] SILVA SANCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal. Montevideo, Argentina: B de F, 2006. p. 178 ss [3] Idem, p. 159 [4] Ibid, p. 183 [5] Ibid, p. 184 [6] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. [7] Todos as referências ao pensamento do Prof. Rui Cunha Martins aludidas neste texto foram retiradas de sua palestra no 23º Seminário Internacioal de Ciências Criminais do IBCCRIM [8] Os próprios ministros do STF têm afirmado constantemente que precisam ser “sensíveis” às demandas do povo. Para ficar com um exemplo, em manifestação recente sobre a manutenção do posicionamento a favor da prisão antecipada (após condenação em segunda instância) o Min. Fux calcou sua visão neste sentido no “sentimento constitucional do povo”, sem explicitar os meios por ele utilizados para captar esse “sentimento”. [9] Os professores Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Junior tem mencionado, em seus textos e palestras, a necessidade dos juristas atentarem ao tempo do processo, ou seja, a perceberem que o processo penal obedece a uma fluidez temporal diversa, própria, que precisa ser bem compreendida, quer para que o desempenho do advogado de defesa seja bem-sucedido, quer para (e o ideal é que isso se dê concomitantemente) que o processo possa atingir seus fins constitucionalmente delineados. A conexão entre a percepção dos dois reputados processualistas e o que neste texto se apresenta seria interessantíssima – o espaço não permitirá que o raciocínio seja desenvolvido apropriadamente, mas fica o registro de que muito pode ser estudado neste respeito. [10] CONDE, Fernando Muñoz. ¿Hacia um derecho penal del inimigo? El País, 15 de Janeiro de 2003. Disponível em: https://elpais.com/diario/2003/01/15/espana/1042585218_850215.html. Acesso em 14/10/2016 CONDE, Fernando Muñoz. ¿Hacia um derecho penal del inimigo? El País, 15 de Janeiro de 2003. Disponível em: https://elpais.com/diario/2003/01/15/espana/1042585218_850215.html. Acesso em 14/10/2016 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. MARTINS, Rui Cunha. Admissão e Exclusão de Prova no processo Penal. Participação no 23º Congresso Internacional de Ciências Crimnais do IBCCRIM (29/08 a 01/09/2017 – São Paulo, SP) SILVA SANCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal. Montevideo, Argentina: B de F, 2006. ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003 Comments are closed.
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