* Contém Spoiler (depois não diga que não avisamos) Opções contra spoiler: (a) caso você seja fã de Black Mirror, mas não assistiu este episódio específico, vá correndo assistir e depois volte aqui; (b) agora, caso nunca tenha assistido Black Mirror, já está atrasado, então leia o artigo antes e depois vá assistir. Não tem erro! Black Mirror é uma série de televisão britânica que conquistou os telespectadores com os seus enredos fascinantes. Histórias ficcionais que prezam pelo enredo chocante. E esse choque se dá principalmente pela constatação de que a ficção não caminha tão distante da realidade. Cada episódio, uma história. Cada história, uma exposição social crítica do mundo em que vivemos ou que estamos fadados a viver. Muito daquilo que é contado em Black Mirror se traduz num reflexo da própria sociedade. Quando não é uma denúncia daquilo que já vivemos, é um alerta sobre a linha de chegada constante no final do caminho que estamos trilhando. O tempo é dado pelo enredo que fascina, claro, pautado na narrativa ficcional. Seja entendida como metáforas ilustrativas das denúncias feitas nos episódios, seja como um retrato fiel de algo que, se ainda não chegou, está por vir, o fato é que Black Mirror logra êxito em seu intento. Tratando-se de uma crítica social, podemos trazer as reflexões da série para o campo do Direito, principalmente ao considerar que muitos dos episódios dizem respeito a questões tratadas pelo Direito. É diante da constatação de que essas reflexões em conjunto são possíveis e necessárias que propomos fazer as abordagens que seguirão nesse e em alguns próximos textos. Sendo assim, em cada artigo, a reflexão pelo Direito com base num episódio da série. Nos acompanha? Iniciemos com “White Bear”, o segundo episódio da segunda temporada: Uma mulher acorda totalmente desorientada. Não sabe onde está. Apenas alguns flashes que surgem eventualmente em sua mente. Alguém a persegue. Há várias pessoas na rua que a tudo assistem, as quais nada fazem a não ser gravar em seus celulares o que acontece. O desespero e aflição da mulher são captados pelas lentes das câmeras do espectadores. Ninguém interage com a mulher, a não ser o seu perseguidor, o qual visivelmente tenta a matar. A angústia toma conta da situação, cabendo à mulher deixar as perguntas para depois, dando prioridade à sua própria sobrevivência. Fugir é o que resta. A perseguição que a mulher sofre é implacável e torturante, associada ao desespero de não se recordar de nada. As poucas pessoas que passam a interagir com ela dizem que tudo começou com o aparecimento da imagem de um “urso branco” na televisão. Desde então teria se iniciado um “jogo”: de um lado os perseguidores e de outro lado os fugitivos, todos acompanhados de perto pelos espectadores, com seus celulares apostos. A mulher desconfia, mas acredita. Uma luta implacável pela vida. Um cenário surreal e caótico, temperado com muito sangue, morte e tortura. Em determinado momento, depois de muito desespero, quando a mulher acha que está próxima de resolver o enigma, cortinas se abrem e ela se depara com uma plateia que aplaude a cena. A mulher descobre que todos fazem parte de uma combinação que só ela desconhece. O que ela está fazendo ali? Vem a revelação! Ela está cumprindo pena por supostamente ter participado de um homicídio. A mulher foi condenada à tortura por repetição, a passar ininterruptamente por aqueles momentos de angústia, cercada por atores (“agentes”) que criam diariamente as cenas de terror, bem como por pessoas que pagam para assistir e registrar as imagens no celular, como se estivessem em um zoológico. Encerrado o dia, limpa-se a memória da condenada e, no dia seguinte, tudo é retomado, em ciclo ininterrupto de sofrimento. Eis o “Centro de Punição White Bear”! Interessante constatar que “White Bear” guarda semelhança com a cena inicial de Vigiar e Punir de Michel Foucault, quando este descreve o “Suplício de Damiens”. Em ambas as situações se evidencia a tortura (física e psicológica) na aplicação da pena e a espetacularização pública da punição.
Agora, enquanto Foucault se refere à situação penal no ano de 1757, Black Mirror projeta perspectivas futuras. Ora, chama a atenção que uma projeção futurista, ainda que ficcional, ao invés de se afastar dos equívocos do passado, dele tende a se aproximar, apenas agregando elementos tecnológicos. Convém ponderar, não obstante, que a visão trazida em Black Mirror não é entusiasta destes aspectos obscuros de projeção do futuro, antes o contrário, aponta de forma crítica para os perigos decorrentes das linhas de pensamento massivas que vêm se desenvolvendo no seio das mais variadas sociedades. Basta dizer que muitos aplaudem, diariamente, cenas de tortura e justiçamento e se regozijam com o espetáculo do processo penal. Ainda, sem mínima preocupação, vozes se levantam contra os direitos humanos, garantias básicas conseguidas após séculos de luta. Temos que ter cuidado para que o futuro não seja um mero retorno ao passado. As perspectivas assustam, mas ainda há solução. Agora, ou retomamos o curso, ou acabaremos com um sistema penal “White Bear”. André Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Professor de Direito Penal e Criminologia Membro da Comissão de Estágio e Exame de Ordem da OAB/PR Membro da ABRACRIM Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura
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