Estreando como Colunista do Sala de Aula Criminal, Matheus Belló Moraes reflete sobre o capitalismo e as demasiadas mazelas sociais, vale a leitura! ''Tudo é naturalizado, eterno, legitimado, sempre esteve ali e sempre estará, sendo o próprio indivíduo o responsável pela sua condição social. Em uma sociedade em que tempo é dinheiro, há poucos instantes para olhar os que sofrem ao seu lado. Toda a tristeza e angústia que o coronavírus conseguiu provocar no mundo todo é um importante momento para a reflexão''. Por Matheus Belló Moraes Em diversas manifestações culturais como filmes, seriados e livros, o tema do “fim do mundo” é sempre revisitado. De invasões alienígenas a catástrofes naturais. No entanto, a famosa vertente do “apocalipse zumbi” sempre me faz pensar sobre as nossas condições de sociabilidade. Não que acredite que, de fato, existe um vírus ou uma magia que nos transformará em zumbis! A questão é que o zumbi é um ser humano incapaz de estabelecer um vínculo com seus pares, ainda que esteja a centímetros de distância deles.
Está sempre em busca de algo que não precisa, um pedaço de carne viva. Ele não precisa disso porque já está morto, não precisa se alimentar. Mas o faz para reproduzir ou garantir a existência da mesma coisa que o transformou em zumbi, seja ela um necromante que o ergueu de seu túmulo para sua proteção, ou de um vírus que o usa para sua reprodução e busca por novos hospedeiros. Age de maneira atomizada para reproduzir algo responsável pela sua condição miserável como se fosse natural. Da mesma maneira, uma vez surgidas das relações sociais e, ao mesmo tempo moldando-as, as formas sociais do capitalismo tendem a instigar ações não conforme as necessidades, satisfações e aptidões das pessoas, mas sim de acordo com as condições necessárias para a reprodução desse sistema. Aquilo que parece natural, eterno, na verdade é algo com determinada especificidade histórica. A metáfora do apocalipse zumbi, obviamente, não dá conta de toda a complexidade que é a totalidade do modo de produção capitalista, suas formas e suas contradições. No entanto, sempre me faz pensar sobre a sociabilidade do nosso tempo. Em regra, a sociabilidade no mundo capitalista é moldada pela forma mercadoria e suas derivações como a forma jurídica e a forma política. Não apenas no sentido institucional, mas muito além, uma rede vasta e estrutural colabora para divulgar perspectivas que sejam harmônicas com as formas sociais capitalistas em um determinado momento, como a cultura, os meios de comunicação de massa, igrejas, escolas etc. (MASCARO, 2013, p. 113). Assim, essas formas específicas influenciam e são influenciadas pelas relações sociais, afetando as maneiras como as pessoas se relacionam e compreendem o mundo. Dentre essas perspectivas, são identificadas tendências como a obediência ao Estado, os limites jurídicos são contemplados como os limites das possibilidades, o pensamento da vida é feito com e a partir de cálculos econômicos, anseios egoísticos, afastamento de questões políticas, autocompreensão atômica e isolada, diante da realidade etc. No contexto dessas formas sociais um sujeito que é incapaz de perceber a história, classe, causas estruturais que determinam as condições materiais e os modos pelas quais se perpetuam é o ideal. Tudo é naturalizado, eterno, legitimado, sempre esteve ali e sempre estará, sendo o próprio indivíduo o responsável pela sua condição social. Em uma sociedade em que tempo é dinheiro, há poucos instantes para olhar os que sofrem ao seu lado. Toda a tristeza e angústia que o coronavírus conseguiu provocar no mundo todo é um importante momento para a reflexão. O vírus não criou sozinho uma crise social, política e econômica. Não fez surgir em nosso espaço e tempo uma realidade descolada da anterior. Por esse motivo, é sintoma de um raciocínio limitado o pensamento que alimenta a crença de que, exclusivamente, toda a dor que o vírus foi capaz de causar no nosso contexto tenha se dado por si só, por sua mera existência e característica. Afinal, embora com vasta ciência e tecnologia, possibilidades de comunicação e propagação de informação de maneira instantânea ao redor do mundo, capacidade de produzir itens para o combate de uma pandemia em larga escala, capacidade de produção de alimentos mais do que suficiente para alimentar todo o planeta, e vários outros fatores, o impacto do vírus segue deixando um rastro de morte e agonia. Além da tristeza oriunda das mortes e quadros de saúde crítico daquelas afetados pela doença, muitas pessoas precisam assumir o risco do contágio para continuar se alimentando, se vestindo, morando etc. Enfim, sobrevivendo. A maioria das pessoas continuam expostas porque só conseguem sobreviver vendendo seu trabalho. Nem em plena pandemia com um elevado número de mortes elas conseguem deixar de vender sua força de trabalho pois precisam sobreviver. Essa realidade permanece em razão das contradições de um modelo de sociedade em que a enorme maioria das pessoas não possui os meios para satisfazer suas necessidades, e garantir suas condições de sobrevivência. Para sobreviver, dependem da venda de seu trabalho. As coisas não são produzidas com a finalidade de satisfazer as necessidades, mas sim de gerar o acúmulo de riqueza. Esse cenário é garantido, legitimado e reproduzido pelas formas sociais que surgem dessas relações e que as moldam. Tais formas sociais não são eternas, nem naturais, nem desprovidas de um conteúdo histórico: são específicas do capitalismo. Logo, toda “constatação crítica que seja rigorosa cientificamente e fecunda só pode analisar a crise presente, exponenciada pela pandemia, tendo em vista que se trata de crise do capitalismo” (MASCARO, 2020, n.p.). Toda essa dor e angústia vividas nesses tempos de pandemia não podem ser entendidas como naturais ou meros acasos. O enorme número de mortos e infectados é um sintoma do individualismo inerente às formas sociais capitalistas. Por isso, se o que se almeja é o combate às injustiças e angústias que brotam da desigualdade desse modelo de sociedade, a crítica desse modo de produção e suas formas específicas é necessária. O destino das “lutas cotidianas”, dentro dessas formas, como o Estado ou o direito, carregam em sua história a “dissolução no varejo, seja na derrota, seja nas conquistas consentidas, aceitáveis, assimiláveis” (DUAYER, 2015, p. 116). Essas lutas se apresentam como um meio de sobrevivência dentro das contradições oriundas da exploração, mas os resultados não ultrapassam arranjos e reformas dentro das bases gerais da reprodução capitalista, que gerarão novas contradições e novas crises. A essa altura, talvez alguma leitora ou algum leitor esteja se perguntando: “ok, mas o que isso tem a ver com a criminologia, com o direito penal ou a política criminal?”. A essa mesma leitora ou leitor, respondo: tudo! A gênese do Direito Penal é o modo de produção capitalista. Não é algo eterno, que sempre existiu e sempre vai existir. Seus fracassos e massacres desde o seu surgimento evidenciam que sua permanência não tem origem em seus resultados, que são contrastantes com seus objetivos declarados pelo discurso oficial, de defesa da sociedade como um todo, mas pela sua imprescindibilidade ao capitalismo. Evguiéni B. Pachukanis, em sua obra Teoria Geral do Direito e Marxismo afirma que a “jurisdição criminal do Estado burguês é o terror de classe organizado” pois compreende que “qualquer sistema historicamente dado de políticas punitivas traz impresso em si os interesses daquela classe que o realizou” (2017, p. 172). Por isso não há crítica do sistema penal que não esteja alinhada a uma crítica da própria perspectiva de mundo do capitalismo. Reformas ou reconfigurações desse sistema continuarão a acumular pilhas de corpos em nome da manutenção da desigualdade. No Brasil, por exemplo, em plena vigência da Constituição Federal de 1988, com todo seu arcabouço de direitos positivados, vemos um encarceramento em massa e condições dignas da expressão “holocausto nosso de cada dia” (KHALED JUNIOR, 2018, p. 57). Em 2015 o STF reconheceu o Estado de Coisa Inconstitucional do sistema carcerário brasileiro no bojo da ADPF nº. 347. Contraditoriamente, nos anos seguintes foi flexibilizada a presunção de inocência, admitindo a prisão em segunda instância, ainda que por um período. Agora, em plena pandemia somos obrigados a ouvir grotescos debates sobre o uso de contêineres como prisão. Por isso reafirmo que dentre os vários “fins do mundo” que frequentemente são fantasticamente mostrados em filmes, seriados e livros, encontro no “apocalipse zumbi” um interessante ponto de reflexão sobre nossa sociabilidade dentro das formas do capitalismo, ainda que, como já dito, seja uma metáfora limitada para dar conta de sua totalidade. A maneira “zumbificada” pelas quais as formas sociais induzem ações e perspectivas, buscando estabelecer o limite do possível dentro de seus próprios horizontes, condena as classes mais vulneráveis a um verdadeiro e constante cenário apocalíptico de busca por sobrevivência. A desvantagem é que nos filmes, seriados e livros os personagens, geralmente, em algum momento, conseguem entender exatamente como enfrentar as ameaças. Na realidade, em razão das inconstâncias, crises e contradições do capitalismo e suas formas, muitas vezes as condições apocalípticas são difíceis de serem percebidas e criticadas. Por outro lado, a vantagem é que, geralmente, na fantasia, os zumbis não superam suas formas e não retomam suas consciências, enquanto na nossa realidade, é possível pensarmos num futuro mais justo e digno se mantivermos as esperanças buscando coletivamente as condições para transformar a realidade. Não suficiente, mas essencial, a crítica aos próprios fundamentos do capitalismo e suas formas sociais respectivas precisa ser exercitada e propagada para que, enfim, o antídoto possa surgir dentro de suas próprias entranhas. Esse antídoto seria uma transformação radical, uma verdadeira revolução que fosse capaz de romper com essas formas sociais. Matheus Belló Moraes Mestrando em Ciência Jurídica (UENP). Especialista em Direito do Estado (Projuris). Bacharel em Direito (UENP). Referências Bibliográficas DUAYER, Mario. Crítica Ontológica em Marx. IN Netto, José Paulo (org). Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora. 1 ed. São Paulo: Boitempo, Carta Maior, 2015. KHALED JUNIOR, Salah H. Discurso de Ódio e Sistema Penal. 2. ed. Belo Horizonte, MG: Casa do Direito, Letramento, 2018. MASCARO, Alysson Leandro. Crise e pandemia (Pandemia Capital). Boitempo Editorial. Edição do Kindle, 2020. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo, SP: Boitempo, 2013. PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Tradução de Paula Vaz de Almeida. Revisão teórica de Alysson Leandro Mascaro, Pedro Davoglio. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
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