![]() Artigo do colunista Paulo Silas Filho no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Feita essa cobrança que surge de supetão, os filhos se indignam. “Não diga! Senão o hospital vai fazer o que? Jogar ele na rua?!” – responde um filha, questionando ainda – “Por que não podem receber depois, como qualquer serviço?!” -, enquanto outra assim reclama: “E pensar que o pai e a mãe ajudaram tanto este hospital!...”. A secretária, porém, se limita a responder que são as normas do hospital – ou recebe o cheque caução, ou o paciente é transferido. Resignados, os irmãos discutem como farão a divisão das despesas, acatando com as normas do hospital''. Por Paulo Silas Filho Na parte especial do Código Penal há um tipo penal que trata de uma situação específica que pode vir a ocorrer em situações emergenciais no atendimento médico hospitalar, estando o crime capitulado no artigo 135-A, prevendo a pena de detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano para aquele que “exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial”.
O tipo em questão é uma espécie de omissão de socorro especializada “que só veio à tona como nova criação jurídica em virtude de ser uma situação concreta de comum ocorrência” (BUSATO, 2014, p. 183). Inserido no Código Penal em 2012, sua inclusão se deu pelo fato de que não era uma situação tão incomum a exigência para com aquele que procurasse um atendimento médico-hospitalar de emergência, para si próprio ou para um terceiro, no sentido de preenchimento prévio de formulário administrativo ou a assinatura de cheque ou nota promissória em valor determinado que funcionaria como “caução”. Tal ato prévio ao atendimento, que funcionava como condição para que o socorro fosse prestado, era justificado como sendo uma forma de proteção ou cautela financeira para o estabelecimento hospitalar, de modo que na hipótese de o indivíduo não possuir plano de saúde ou ainda no caso de negativa de cobertura por esse, o estabelecimento estaria munido de uma garantia de ordem financeira para poder realizar a posterior cobrança (SOUZA e JAPIASSÚ, 2018). O objetivo jurídico do referido tipo penal pode ser apontado como sendo a “proteção da vida e da saúde da pessoa por meio da tutela da segurança individual, no aspecto do pronto atendimento médico-hospitalar emergencial” (ANDREUCCI, 2018). Observando-se os princípios norteadores do Direito Penal – como o da legalidade/taxatividade, faz-se necessário pontuar os limites estritos do alcance do tipo penal em comento, a fim de compreender em que situação concreta de fato poder-se-ia proceder a imputação penal em decorrência da violação do bem jurídico protegido pela norma. Aponta-se aqui para um exemplo literário para servir como objeto de análise acerca do possível enquadramento de uma situação determinada no tipo penal em questão. No romance “Terra Vermelha”, Domingos Pellegrini se vale do uso de analepses para narrar a história de vida de José e sua companheira Tiana. Por meio de uma escrita simples, prosaica, o autor narra a trajetória de vida do casal protagonista enquanto acompanha a formação e desenvolvimento da cidade paranaense de Londrina. É como fosse um romance histórico, mas com uma narrativa bem leve, quase lúdica, de modo que a história de Londrina é utilizada muito mais como pano de fundo para o desenvolvimento da trama do que como foco da obra. Seja como for, tudo isso está no livro: o relato sobre a cidade e o relato sobre a história de vida do casal que funciona como personagens principais. O romance funciona com uma narrativa intercalada entre o “agora” de José hospitalizado e o “antes” da história de vida de José (e Tiana). No “agora” em que se passa a história da obra em questão, José é encaminhado por alguns familiares para o hospital por estar sofrendo os efeitos de seus últimos momentos enquanto ainda vivo. É no decorrer dos sete dias e sete noites seguintes que, mesmo inerte, José ainda respira e, portanto, vive, enquanto lembranças sobre sua vida e a formação de sua história junto ao desenvolvimento da cidade de Londrina/PR vão surgindo e sendo compartilhadas com o leitor. No “agora”, filhos e netos surgem e aparecem como visitantes do patriarca debilitado, alguns esperançosos e outros cientes de que pouco é o tempo que resta a José. Ainda no primeiro dia do internamento, a narrativa traz a seguinte passagem sobre um episódio ocorrido no hospital: “O filho mais velho ainda segura a mão do velho quando batem três pancadinhas na porta, entra a secretária do hospital, os saltos picotando o chão; bom dia, quem é o responsável pelo doente, por favor? Somos todos filhos, diz a mais velha. A secretária mexe papeis nas mãos: -Desculpem, mas está faltando o cheque de caução, é norma do hospital” (PELLEGRINI, 2003). Feita essa cobrança que surge de supetão, os filhos se indignam. “Não diga! Senão o hospital vai fazer o que? Jogar ele na rua?!” – responde um filha, questionando ainda – “Por que não podem receber depois, como qualquer serviço?!” -, enquanto outra assim reclama: “E pensar que o pai e a mãe ajudaram tanto este hospital!...”. A secretária, porém, se limita a responder que são as normas do hospital – ou recebe o cheque caução, ou o paciente é transferido. Resignados, os irmãos discutem como farão a divisão das despesas, acatando com as normas do hospital. Essa breve passagem do romance de Domingos Pellegrini chama a atenção para um aspecto jurídico que ali parece estar, mais especificamente na questão penal, a saber, o fato descrito na narrativa ficcional configuraria o crime previsto no artigo 135-A do Código Penal? Pela leitura do tipo penal, pode-se depreender que “o legislador pretende impedir qualquer meio que dificulte o atendimento emergencial e aumente os riscos à integridade física ou à vida de quem está em situação precária de saúde” (MARTINELLI, 2015, p. 215), pelo que se constata que essa exigência deve ser prévia ao atendimento. Paulo Busato ilustra a configuração do delito a partir de um exemplo em que há a negativa feita por um atendente de hospital para receber pessoa ferida em um acidente pelo fato de essa não possuir plano de saúde, pontuando que nesse caso se “configura o tipo em questão, mesmo que a pessoa resulte salva e atendida no hospital seguinte para o qual se dirige ou, ainda, no próprio hospital em que se dá a exigência” (BUSATO, 2014, p. 184). Necessária assim a prudente observação de que a lei abrange apenas as situações emergenciais, uma vez que a própria redação do tipo penal menciona “atendimento médico-hospitalar emergencial” (ANDREUCCI, 2018). Considerando então o elemento normativo do tipo ‘atendimento emergencial’, tem-se como abrangidas pela norma aquelas situações em que o atendimento deve ser prestado de forma imediata, de modo que em caso de protelação de tempo se tem como consequência o aumento do risco de vida do sujeito ou a progressiva perda da condição de saúde, sendo a parada cardíaca, a hemorragia severa e a parada respiratória exemplos concretos dessas situações (BUSATO, 2014, p. 185). Por assim ser, necessário pontuar que “emergência não é o mesmo que urgência e, assim, o atendimento de urgência não se enquadra no tipo” (MARTINELLI, 2015, p. 215). Quanto ao sujeito ativo do delito em questão, tem-se como sendo aquele que figura como “a pessoa responsável pela recepção de emergências médico-hospitalares” (BUSATO, 2014, p. 188), não podendo ser assim definido aquele que não exerce qualquer função nesse sentido no estabelecimento hospitalar. Diante das breves considerações aqui apresentadas, tem-se que no caso do exemplo literário acima ilustrado não parece existir o ajustamento da conduta ao tipo penal do artigo 135-A do Código Penal. É que o paciente já havia sido atendido, tendo recebido os cuidados médicos necessários, quando a secretária do hospital solicitou o “cheque-caução” aos seus familiares. O sujeito estava internado, ocupando um leito. Por mais que a postura da funcionária do estabelecimento hospitalar possa ser entendida como inconveniente ou de alguma forma afrontosa, não se amolda ao tipo penal em análise, tratando-se de fato atípico. Nesse sentido, Ricardo Andreucci assim explana: Em uma situação de emergência, por óbvio que a entidade de atendimento médico-hospitalar privada deve prestar o atendimento imediato, dispensando o tratamento necessário ao paciente, até mesmo em observância ao princípio da boa-fé contratual. Entretanto, cessada a situação emergencial, a entidade tem todo o direito de ser paga, recebendo a contraprestação financeira pelos serviços prestados, inexistindo mácula à obrigação de pagamento pelo que foi despendido (ANDREUCCI, 2018). Assim, a contraprestação pelo atendimento médico-hospitalar, por óbvio, é devida, devendo ser arcada em momento posterior, “a menos que se trate de abuso ou aproveitamento da situação desfavorável do paciente, oportunidade em que o negócio jurídico padeceria de vício, por estado de perigo, inviabilizando o pagamento.” (ANDREUCCI, 2018). O tipo penal capitulado no artigo 135-A do Código Penal deve então ser analisado e interpretado no âmbito de sua redação legal expressa, observando-se assim o devido respeito ao princípio da legalidade no Direito Penal. Referências: ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Condicionamento de atendimento médico-hospitalar emergencial. Empório do Direito. 2018. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/condicionamento-de-atendimento-medico-hospitalar-emergencial. ISSN: 2446-7405. Acesso em: 16/06/2022. BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal: parte especial 1. São Paulo: Atlas, 2014. MARTINELLI, João Paulo O. Da periclitação da vida e da saúde. In: MACHADO, Costa (org.); AZEVEDO, David Teixeira de (coord.). Código Penal Interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 5ª Ed.Barueri: Manole, 2015. PELLEGRINI, Domingos. Terra Vermelha. São Paulo: Geração Editorial, 2003. SOUZA, Artur de Brito Gueiros; JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. Direito Penal: volume único. São Paulo: Atlas, 2018. Paulo Silas Filho Mestre em Direito (UNINTER); Especialista em Ciências Penais; Especialista em Direito Processual Penal; Especialista em Filosofia; Pós-graduando (lato sensu) em Teoria Psicanalítica; Bacharelando em Letras (Português); Professor de Processo Penal e Direito Penal (UNINTER e UnC); Advogado; Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR; Membro da Comissão de Assuntos Culturais da OAB/PR; Membro da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/PR; Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura; E-mail: paulosilasfilho@hotmail.com
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