O presente trabalho tem como finalidade realizar uma breve análise da política de cotas étnico-raciais na reserva de vagas em vestibulares, a estudantes que se auto declaram afrodescendentes, no que tange ao ingresso em universidades públicas através de uma perspectiva jurídico sociológica aplicada ao direito constitucional, passando pela diferenciação entre os aspectos formal e material do princípio constitucional da igualdade e a sua efetivação por meio de políticas públicas de promoção da equidade social.
O trabalho aqui desenvolvido se iniciou com a pretensão de se demonstrar não só a conformidade constitucional da política de cotas, como também a sua legitimidade, sustentada em um retrospecto histórico e em breve análise dos quadros sociais atuais. Tomando por base que para os direitos terem capacidade de serem efetivados, ou seja, exercerem efeito no meio social ou alcançarem certa materialidade, torna-se imperioso o uso de mecanismos efetivadores, nesse sentido surge a política de cotas. Desenvolveu-se o presente sob a base da flagrante desigualdade social brasileira no que tange às oportunidades de ascensão social, sobretudo, no que se constitui, talvez, no primeiro estágio desta, qual seja, o ingresso no ensino superior. Nesse sentido, procurou-se desenvolver sucintamente o atual panorama social brasileiro, como a tentativa de assegurar a legitimidade de tais políticas afirmativas, passando por todo um retrospecto histórico, evidenciando a condição de submissão social em que os povos africanos trazidos ao Brasil com a finalidade de serem usados como mão de obra escrava e quais são as reais consequências, diretas e indiretas, que esse evento na história do Brasil, produziu nos dias atuais. Ainda, usam-se como parâmetro de análise os números referentes à quantidade de negros nas instituições de ensino superior, especialmente em cursos tidos tradicionais, como Medicina, tendo em vista que nesses cursos a disparidade social é ainda mais agravada, ao passo que têm processos de seleção ainda mais rigorosos e consequentemente, pela forma como é desenvolvido, mais excludentes. Diante disso, busca-se promover o debate acerca da legalidade e da legitimidade de tais ações afirmativas, como mecanismo de promoção da igualdade, como meio a se atingir uma sociedade mais justa, equânime e equilibrada socialmente. Em síntese, ação afirmativa pode ser conceituada como aquelas políticas implementadas em um contexto social, que tem por finalidade a atenuação de um quadro social segregador, onde um grupo de indivíduos se encontra em uma condição de inferioridade de condições e oportunidades em relação aos outros. Sabe-se que as primeiras manifestações do se conceitua como políticas de ações afirmativas deu-se nos Estados Unidos e na Índia com a finalidade precípua de interferir no processo de desigualdade estrutural nas relações individuais desses países. Quando se fala em políticas de ação afirmativa, tal qual as políticas de cotas no Brasil, muito se questiona sobre a legitimidade destas em uma suposta relação de igualdade entre os indivíduos, contudo, o que se percebe é que muito pouco se conhece do processo histórico a que o Brasil fora sujeito, quais as condições a que foram submetidos os povos de matriz africana trazidos ao Brasil como mão de obra escrava e menos se sabe ainda da condição material a que estudantes de escolas públicas dispõem para competir em relação de igualdade com alunos oriundos de instituições privadas de ensino em processos seletivos de ingresso na universidade, como o vestibular e o Exame Nacional do Ensino Médio. Quando o senso comum se ocupa da discussão da implementação das políticas de cotas étnico raciais, o argumento de que todos são iguais perante a lei e que a implementação dessas políticas instituiria a própria desigualdade, torna-se recorrente, mesmo quando as políticas de cotas se justificam justamente na desigualdade a que os indivíduos estão historicamente submetidos. Ademais, certo é que interpretar as relações inter-raciais no Brasil como uma relação de igualdade, não é outra coisa senão a negativa dos processos de discriminação, de marginalização da população negra, da formação de quilombos como mecanismo de resistência a essa realidade, o que seria injustificável. As cotas raciais se fundamentariam não na implementação de uma desigualdade, pois isso suporia que o status quo ante seria, necessariamente, de igualdade, o que está longe de ser, mas estas se sustentam justamente na tentativa de estabelecer mínimas condições de igualdade entre a população negra e a população branca na disputa pelos espaços de poder. O argumento de que todos são igual perante a lei [conceito formal de igualdade] é plenamente válido. O que se ignora por aqueles que são contrários às cotas é que estas encontram base constitucional no conceito material de igualdade, consubstanciado na expressão tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual na medida de sua desigualdade, portanto, se a população negra não se encontra no mesmo patamar social do restante da população, no que diz respeito às oportunidades, como de fato, certo é que as políticas de cotas são plenamente legítimas. No Brasil, cerca de 53,3% da população total são compostos por negros e pardos, ou seja, a população afrodescendente é maioria na formação da identidade étnica do país, o que, em condições de normalidade, suporia essa mesma proporção de negros e pardos nas universidades, no serviço público, nos cargos diretivos das corporações e afins, repito, em condições de normalidade, em condições mínimas de igualdade, fato é que somente 12,8% dos jovens negros, entre 18 e 24 anos, ocupam vagas universitárias. No curso de medicina, caracterizado pela tradição elitista, os números de estudantes negros são ainda mais alarmantes, representando assombrosos 2,7% das cadeiras universitárias[1]. Em que pese o gradativo aumento da porcentagem dessa parcela da população no espaço acadêmico, resultado esse que se deve, fundamentalmente, à implementação das cotas étnico raciais, de modo mais relevante, no ano de 2005, comparado ao dado de que esta mesma parcela social representa a maioria da população brasileira, esses números se revelam ainda demasiadamente baixos. De outro lado, lançando olhos ao sistema carcerário brasileiro, que abriga o alarmante e vergonhoso pódio de terceira maior população carcerária do planeta[2], se constata que negros compõem 60,8% das vagas[3]. Nesse sentido, evidencia-se, sem maiores esforços, por uma correlação lógica, que o recorte étnico-racial e econômico desse sistema é, fundamentalmente, negro e pobre, por uma infinidade de determinações criminológicas e também pela característica essencialmente seletiva do próprio sistema.[4] Veja-se bem, o que se diz não é que estudantes negros têm menor capacidade intelectual ou cognitiva que alunos brancos. Não é disso que se trata. O que se diz é que se há uma disparidade real, manifesta, entre indivíduos brancos e negros, a implementação de políticas públicas pelo Estado não representa outra coisa senão medida assecuratória do princípio constitucional da igualdade em seu viés material. Desconsiderar que 358 anos de extermínio, massacre, atraso social, negativa de direitos elementares à cidadania, no último país a abolir o regime escravocrata nas Américas, dirigidos a um único povo, foram capazes de influenciar, ainda que indiretamente, o quadro social que se apresenta na atualidade, é ilógico, inocente ou produto da leviandade daqueles que o fazem. Igor de Moraes Cardoso Graduando em direito pelo Centro Universitário Dinâmica das Cataratas Presidente do Centro Acadêmico X de Maio Estagiário no escritório Trento Poncio & Braga advocacia. Referências: [1] https://guiadoestudante.abril.com.br/universidades/negros-sao-minoria-entre-formados-no-ensino-superior/ [2]http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/12/1941685-brasil-ultrapassa-russia-e-agora-tem-3-maior-populacao-carceraria-do-mundo.shtml [3] http://www.seppir.gov.br/central-de-conteudos/noticias/junho/mapa-do-encarceramento-aponta-maioria-da-populacao-carceraria-e-negra-1 [4] https://canalcienciascriminais.com.br/sobre-a-seletividade-do-direito-penal-ou-como-o-estado-escolhe-quem-quer-punir/ Comments are closed.
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