O título não é sugestivo, tão menos autoexplicativo. Não levem ao pé da letra. Na verdade, também podem levar, pois a obra literária que dá o pano de fundo para o presente texto tem como protagonista um “morto não morto”.
Imagine se você se desse conta que ao acordar está morto? E se você descobrisse que os vivos não cumpriram com o que foi estipulado de acordo com sua última manifestação de vontade? E se constatasse que seu corpo foi contrabandeado, constatação essa quando retomada a consciência numa sala escura, com seu corpo mergulhado em formol, dentro de uma universidade, a fim de servir como aula prática para os estudantes? É a reunião de tais elementos presentes no protagonista do livro (o morto não morto) que dá o mote da obra “Alegres Memórias de um Cadáver”, do escritor Roberto Gomes. Gregório, o cadáver insepulto, por mais que transtornado com a situação que lhe foi imposta (afinal, o destino de seu corpo não foi aquele conforme combinado enquanto em vida), aproveita o seu novo estado “vivo-não vivo” para perambular pelos corredores da universidade e acompanhar muito do que se passa nessa sua nova morada. O livro retrata o regime autoritário vivenciado à época em que se passa a história. E é justamente em tal ponto que se situa o outro cerne da narrativa ficcional: uma exposição crítica (de maneira jocosa) da ditadura militar então existente, já que o romance se dá no período em que tal regime autoritário se fez presente no Brasil. Vale a leitura! Mas e o corpo, para onde vai depois que se morre? Ou para onde deveria ir? Depende da vontade da pessoa. Mas de que pessoa? Do falecido ou de seus familiares? Qual é a vontade que deve ser respeitada? Não arriscarei respostas. A Lei n.º 9.434/97 regula a dispõe sobre remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, além de estipular outras providências. Esbarrei ainda por acaso numa outra legislação que parece tratar de parte do tema, a Lei n.º 8.501/92. Mas observemos pelos costumes, pela cultura, pela tradição. Corpos são preparados, velados e enterrados. Ou cremados. Mas e aqueles que se destinam ao estudo? Como os cadáveres chegam até aqueles lugares que se destinam ao estudo do corpo humano? Como isso é regulado? De que forma se acompanha esse processo? Há algum tipo de controle eficaz? Novamente, fico somente com as perguntas. Digo apenas que a disposição do corpo (depois da morte) é válida, pois possui amparo legal. Preceitua o artigo 14 Código Civil que “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte”. Carlos Eduardo Nicoletti Camilo, ao comentar o mencionado dispositivo, aduz que “essa disponibilidade pode se dar em vida ou post mortem” – cada forma ao seu próprio modo devidamente regulamentado. A regulamentação da questão é necessária por vários motivos. Daí a lei atual que regula a matéria – Lei n.º 9.434/97 -, a qual possui fundamento constitucional, vez que, nos dizeres de Guilherme de Souza Nucci, houve uma “preocupação do constituinte com o tema relativo à remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo para fins de transplante, pesquisa e tratamento”, decorrendo daí a conclusão de que “deve a lei dispor a respeito, buscando facilitar essa prática e jamais impedi-la ou conturba-la”. Notem que a menção feita é mais abrangente que a exposição base do presente escrito, já que a regulamentação se dá para com a disposição de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para determinados fins. Mas aquele corpo que teve o seu destino desviado daquilo que anteriormente fora estipulado? Para Gregório, o cadáver ambulante, não restou muita opção. Teve de se contentar com seus reclamos para si mesmo. Combinou em vida que seu corpo deveria ter determinado destino. Mas não foi o que ocorreu. Descobriu o engodo da pior maneira possível. Quem foi o responsável? Ou quem foram? Com quem deveria reclamar sobre a quebra de contrato (sua ordem enquanto em vida foi no sentido de que o corpo fosse doado para o Hospital das Clínicas, não para a universidade)? Infelizmente, para Gregório, não existia mais capacidade civil ou qualquer legitimidade para reclamar a quebra do acordo entabulado. E para onde vai o corpo depois que se morre? Depende. Para Gregório, não foi para o local que queria. E o seu, para onde vai? Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Memnbro do Conselho Editoria do Sala de Aula Criminal BIBLIOGRAFIA CONSULTADA: GOMES, Roberto. Alegres Memórias de um Cadáver. Curitiba: Inventa, 2014 FUJITA, Jorge Shiguemitsu. [et al.]. Comentários ao Código Civil: artigo por artigo. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 105 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. (Volume 1). p. 519 Comments are closed.
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